6 - Um plano

UMA HORA E meia mais tarde, as caixas de pizza quase vazias se espalhavam sobre a mesa da sala do apartamento de Tomás.

Josiane olhou para os pratos e talheres; o jantar que havia planejado fazer sozinha em seu quarto de hotel, enquanto relia todas as informações obtidas sobre o caso dos deputados, havia se transformado em um momento surpreendentemente agradável com Lorena e Tomás. Nada sobre trabalho, investigação, suspeitos ou pistas foi falado; apenas assuntos triviais tiveram um lugar à mesa.

— Quer mais um pedaço da pizza de marguerita, tia Josi? — Lorena perguntou, segurando o cortador.

Josiane riu e balançou as mãos no ar.

— Se eu comer mais um pedaço, acho que vou explodir.

— Ora, ora. — Sentado de frente para ela, Tomás apoiou os cotovelos na mesa, as mãos entrelaçadas, capturando seu olhar. — Você já foi melhor do que isso, investigadora Josiane Monteiro.

Ela não soube se foi a forma como ele a olhou, ou o jeito como pronunciou seu nome; mas, de repente, tudo o que Josiane conseguia ouvir era um zumbido ao redor da cabeça, como se o mundo houvesse se desconectado e a deixado à deriva.

— Tia Josi, não deixe barato. — Lorena a cutucou. — Pegue o pedaço de pizza agora mesmo.

Antes que pudesse pensar em uma resposta à altura da provocação de Tomás, o celular dele tocou. Josiane observou-o pegar o aparelho, fitar o visor e suspirar profundamente.

— É sua mãe, Lorena. Licença, vou atender. — E pressionou o aparelhou contra a orelha. — Aconteceu alguma coisa, Valéria?

A mulher reclamou de algo do outro lado da linha.

Assim que ele se levantou da mesa, não demorou para que Josiane captasse o princípio de uma discussão se instaurando através da ligação.

Lorena fez um gesto de cabeça para Josiane, chamando-a para ir até o seu quarto. A investigadora se levantou e a seguiu, lançando um olhar por cima do ombro. Podia ver que todo o bom humor de Tomás estava sendo drenado com aquela ligação.

— É sempre assim. — Lorena bufou, encostando a porta do quarto. — Minha mãe liga, grita, meu pai tenta ser paciente, tenta segurar as pontas, mas a situação vai se descontrolando.

— E isso te deixa triste?

Lorena encolheu os ombros e se sentou na beirada da cama.

— Sei que eles não vão mais ficar juntos. Nem quero que eles voltem. Não seria bom. Já estão separados há anos e minha mãe sempre está saindo com alguém diferente. Mas eu queria que as brigas não acontecessem com tanta frequência. Por que eles precisam agir assim?

Gentilmente, Josi se sentou ao lado de Lorena. Seu olhar treinado percorreu o quarto, captando os pôsteres de banda na parede e os títulos nas lombadas dos livros deixados em cima da escrivaninha.

— Tem horas que é impossível entender nossos pais, Lolo.

— Seus pais também brigam?

— Fui criada pelos meus tios, que são como pais para mim. Eles são as pessoas mais incríveis do mundo. Bom... — Josiane tocou o próprio queixo, fingindo estar pensativa. — Mas, uma vez, quando eu era mais nova, vi minha tia correndo com uma vassoura atrás do meu tio, tentando acertar a cabeça dele.

Lorena riu.

— Por que ela fez isso?

— Não faço ideia. E achei perigoso demais perguntar.

— Imagino. — Lorena riu outra vez, cobrindo a boca com a mão. — Por que você foi criada pelos seus tios?

— Minha mãe me teve quando era bem nova. E meu pai não quis saber de mim. — Josiane meneou a cabeça, tentando não engolir em seco. — Então, meus tios me criaram e minhas primas viraram as minhas irmãs e melhores amigas.

Lorena suspirou.

— Queria ter uma irmã. Seria bom para dividir a atenção dos meus pais. Principalmente a do meu pai.

— Tomás fica muito no seu pé?

O jeito como a adolescente bufou fez Josiane rir.

— Meu pai checa os antecedentes de todos os meus amigos. E os antecedentes dos pais dos meus amigos.

— Acho que você está exagerando, Lolo.

Lorena lhe lançou um olhar enviesado.

— Bom... Talvez eu consiga imaginar seu pai fazendo algo do tipo. — Se fosse ser sincera, Josiane conseguia imaginar Tomás fazendo muito mais do que aquilo. — Mas é porque ele conhece o pior lado da humanidade. Nós vemos coisas terríveis no nosso trabalho. Todos os dias. Tomás só está preocupado com você.

— Eu sei. — Lorena se jogou contra o colchão, abrindo os braços, os cabelos cor de café se espalhando pelo lençol. — Mas preciso de liberdade, tia Josi! Liberdade! Como vou encontrar meu príncipe, se meu pai não me deixa respirar?

— Príncipe? — Josiane arqueou as sobrancelhas. — Que história é essa de príncipe?

— Meu aniversário de quinze anos está chegando. Vou ter uma festa com valsa e todas essas coisas das festas de quinze anos. Quero dançar a valsa com meu príncipe. E quero que seja algum menino especial, e não um dos meus primos. Mas como vou encontrar um príncipe para dançar comigo, se todos os rapazes da escola e das redondezas, tem medo do meu pai?

Josiane pensou em algum argumento para acalmar a adolescente, mas, no fundo, conhecia Tomás direitinho. E sabia que, às vezes, ele podia ser protetor demais com a filha.

— Conversei com as minhas amigas, tia Josi, e elas me deram algumas ideias do que posso fazer para meu pai sair um pouquinho só do meu pé.

— Ah, é? — Josiane estava mesmo curiosa.

— Sim. Tenho um plano e... — De súbito, os olhos de Lorena brilharam. Ela se levantou, ficando sentada sobre o colchão, e encarou Josiane. — Você trabalhou anos com o meu pai. Pode me ajudar no meu plano.

— Qual plano?

Um sorriso triunfante cresceu na boca da garota.

— Vou arrumar uma namorada para o meu pai.

Se estivesse bebendo ou comendo alguma coisa, Josiane tinha quase certeza de que teria se engasgado.

— Como?!

— Pensa comigo, tia Josi. — Empolgada, Lorena segurou sua mão, como se houvesse encontrado a solução mágica para o mundo. — Se meu pai começar a namorar, vai ficar menos tempo em cima de mim, e mais tempo com a namorada. Além disso, seria bom para ele. A rotina dele é trabalho-casa, casa-trabalho. Ele precisa se divertir mais. Desde o divórcio, que foi há um tempão, não me lembro de ver meu pai com mais ninguém.

Josiane podia chutar que Tomás evitava novos relacionamentos por ter tido um casamento estressante com Valéria — que ainda o estressava —, mas guardou o palpite para si mesma. Jamais criticaria ou falaria mal da mãe de Lorena na frente da garota. Seria algo baixo e deselegante demais.

— E você pode me ajudar, tia Josi.

Mesmo receosa, ela arriscou fazer a pergunta.

— E aonde eu entraria nessa história?

Lorena a encarou como se ela houvesse perguntado por que os porcos não voam.

— Você é uma das pessoas que mais conhece meu pai, tia Josi! São amigos há anos. Pode me ajudar a encontrar a namorada certa para ele. Alguém que ele vai gostar bastante. O que acha?

Josiane abriu a boca para responder.

Não havia nada demais naquilo; era uma travessura de uma adolescente querendo arranjar alguém para o próprio pai.

Mas... Mas...

Mas, de repente, não conseguiu se lembrar de como fazia para conectar as palavras e formar uma frase coerente.

— Bom... Hã...

Lentamente, o sorriso conspirador de Lorena foi dando lugar a um semblante questionador e analítico.

Minha nossa.

Josiane sempre a achara parecida com o pai, mas, naquele momento, era como se estivesse a versão feminina do implacável investigador Tomás.

— Me ajudar com o meu plano secreto te incomoda de alguma forma, tia Josi?

A expressão "salva pelo gongo" nunca foi tão bem-vinda quanto no momento em que Tomás abriu a porta do quarto de Lorena.

— Ei, pai! — a adolescente pigarreou. — Tem que bater primeiro.

Josiane virou a cabeça, fitando Tomás. Quase contraiu os lábios. A expressão dele era a de alguém que tinha acabado de voltar da guerra.

— Desculpa ter saído da mesa.

— Sem problemas — Josiane o tranquilizou, sentindo uma vontade absurda de tirar aquela tensão dos ombros dele. — Por sinal, está ficando tarde e o dia foi cheio para todos nós. Vou ajudar com a louça e depois voltarei para o hotel.

— Não precisa. A Lorena cuida da louça e eu te dou uma carona.

A garota bufou, se jogando contra a cama outra vez.

— Sempre sobra para mim...

— A vida é injusta, não é, filha?

— Injustíssima, pai.


*******************


Josiane só soltou o ar que não percebeu que estava prendendo quando Tomás parou o carro em frente ao hotel.

Mantendo as mãos sobre as coxas, tentando não contrair os dedos que queriam apertar, esmagar ou segurar alguma coisa, ela olhou para ele e colocou um sorriso no rosto.

— Obrigada pelo jantar. E pela carona.

— Não foi nada sofisticado.

— Foi sim. Pizza é a oitava maravilha do mundo. A Lolo não errou com a sugestão do cardápio.

— Sabe como a Lorena é. Quando inventa algo, faz acontecer.

O comentário de Tomás fez com que a mente de Josiane voltasse para o plano secreto de Lorena sobre arranjar uma namorada para o pai. Mas que droga; por que não conseguia tirar aquilo da cabeça?

— Bom... — Josiane empurrou uma mecha do cabelo para trás da orelha. — Vou te deixar descansar. Mais uma vez, obrigada. Se você ou o pessoal precisarem da minha ajuda na investigação, sabem onde me encontrar. Boa noite, Tomás.

Ela se inclinou, beijando sua bochecha em um gesto de despedida, ao mesmo tempo em que inspirava o cheiro de sua colônia. Foi fugaz, singelo; mas o toque dos seus lábios na pele dele e a sensação da barba rala de Tomás roçando em seu rosto causou uma reviravolta conflituosa, quente e inesperada dentro dela.

A mão de Tomás se ergueu, os dedos dele envolvendo seu pulso em um aperto suave. Ela afastou o rosto, os olhos buscando pelos olhos dele, o peito esquentando, a respiração desacelerando; o peito palpitando como se ela houvesse sido capturada ali, atada à imagem familiar que era ter Tomás diante dela.

As íris âmbar de Tomás, sempre atentas, sempre expressiva, pareciam ter adquirido uma nota mais escura sob a baixa luminosidade; e, pelo que não durou mais do que um segundo, Josiane teve a impressão de que os olhos dele desceram para sua boca; um movimento tão rápido que ela não soube dizer se havia sido real ou se havia alucinado.

E então, lentamente, os dedos dele libertaram seu pulso, o olhar ainda se sustentando ao seu.

— Boa noite, Josi.

Sem romper o contato entre seus olhos, Josiane deslizou a mão para o lado, procurando pela maçaneta da porta do carro.

— Boa noite, Tomás — ela repetiu, tentando não gaguejar.

— Boa noite, Josi — ele repetiu também.

Céus, o coração dela não batia; ele rugia dentro do peito.

O que está acontecendo aqui?!

Antes que o clima ficasse ainda mais estranho, Josiane abriu a porta do carro em um rompante e desceu. Acenou rápido para Tomás e, girando nos calcanhares, avançou para dentro do hotel, lutando para normalizar sua respiração descompassada.


********************


Assim que entrou em seu quarto, Josiane correu para o banheiro e se enfiou embaixo do chuveiro. Deixou que a água caísse sem barreiras por seu corpo, como se pudesse levar para o ralo toda a montanha-russa que aquele dia havia sido.

A ligação não atendida do deputado, o retorno para Belo Horizonte, o inquérito do delegado, o reencontro com Tomás, o jantar, o momento estranho que haviam tido no carro...

Josiane comprimiu os olhos.

Não podia perder tempo tentando entender o que diabos havia se passado entre Tomás e ela naqueles minutos efêmeros e palpitantes.

Muitas coisas estavam em jogo.

Amaldiçoou a ligação.

Amaldiçoou o deputado.

Se aquela ligação nunca tivesse acontecido, ela não precisaria estar ali, enfrentando uma tempestade, um maremoto e um furacão.

Mas agora dois deputados estavam mortos.

E ninguém tinha uma pista sequer do responsável pelas mortes.

Era hora de arregaçar as mangas e trabalhar.

Você vai conseguir resolver tudo, garota, disse para si mesma. E então, poderá voltar para Blumenau. Poderá ficar com seus tios e suas primas. Poderá cuidar da sua família. Você só precisa desvendar o que aconteceu.

Mais inspirada, ela fechou o chuveiro, se enrolou na toalha e voltou para o quarto. Abriu a mala, procurando por uma regata preta, uma calça preta e um par confortável de tênis.

Enquanto se vestia, repassou mentalmente seus próximos passos.

Ela não poderia participar de forma oficial da investigação.

Mas isso não significava que ficaria parada.

Não quando apenas ela sabia tudo o que estava em risco.

Assim que terminou de se vestir, Josiane prendeu o cabelo em um coque firme e alto, apanhou a mochila com os utensílios que precisava, checou se a lanterna estava ali, pegou sua arma, verificou a munição, enfiou a arma no coldre e jogou a mochila no ombro.

— Certo — murmurou para si mesma, parando diante de espelho e encarando os próprios olhos. — Vamos fazer isso.

E, tomando um longo suspiro, deixou seu quarto para trás, atravessou o corredor e saiu do hotel, rumando para a escuridão que seria a única testemunha do que estava prestes a fazer.

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