4 - Linhas do passado
Ao parar a moto na frente do prédio onde Lorena estava morando, Vinícius esperou que ela descesse para tirar o capacete.
— Vou te esperar entrar. Daí eu vou embora.
— Não — ela protestou, balançando a cabeça, o cabelo sujo de tinta e cola se movendo para os lados. — Te manchei com a tinta. Suba comigo. Vou te dar uma toalha para você se limpar antes que isso grude de um jeito que não saia mais.
Pensou em contra-argumentar, mas algo lhe dizia que a enteada da sua irmã não era alguém que aceitava facilmente um "não" como resposta. Além disso, ele não tinha certeza se Artur a machucara ou não antes de sua intervenção. Precisava confirmar que ela estava bem antes de partir.
— Tudo bem.
Assim, eles subiram juntos. Ela abriu a porta, acendeu a luz e entrou primeiro. Vinícius a seguiu em silêncio, mantendo as mãos nos bolsos da calça. O apartamento era delicado, pequeno, simples e feminino.
Em um piscar de olhos, Lorena desapareceu e surgiu com uma toalha para ele.
Vinícius começou a se limpar, deixando os pensamentos vagarem para um terreno perigoso, imaginando o que teria feito se Artur houvesse mesmo encostado a mão naquela garota. Ele não era uma pessoa violenta, às vezes se achava quieto e passivo demais, mas, no momento em que Artur tinha avançado para cima de Lorena, foi como se o sangue dele entrasse em uma ebulição jamais experimentada antes.
Olhou para o lado, prestes a perguntar outra vez se ela estava bem.
E então piscou.
Lorena estava lambuzando o cabelo com óleo de cozinha.
Ao capturar seu olhar curioso, ela sorriu.
— O óleo ajuda demais a remover a cola do cabelo. Minha mãe sempre fazia isso quando eu chegava com o cabelo todo grudento depois de uma aula de Artes da escola. Acidentes aconteciam porque eu sempre fui muito agitada e nunca parei quieta.
Vinícius segurou o sorriso.
Qualquer um que olhasse para ela deduziria aquilo.
E não precisaria de muito mais do que cinco minutos para chegar à tal conclusão.
— Agora vou me enfiar embaixo do chuveiro para tirar o resto da tinta e da cola. — E riu sozinha. — Acho que vou acabar com meu vidro de condicionador. Fique à vontade. Já volto.
Ela fazia as coisas tão rápido que Vinícius mal conseguia processar.
Nem soube contar quanto tempo o chuveiro ficou funcionando.
— Saiu quase tudo — ela falou do banheiro. — Vou ver se tiro o resto aqui na pia mesmo e consigo desembaraçar os fios.
Junto da voz dela, Vinícius escutou a água corrente da torneira.
Quase pensou em oferecer ajuda, mas então se lembrou de que ela poderia estar enrolada apenas em uma toalha.
O caminho daquele pensamento que não deveria estar ali fez um calor considerável subir por seu rosto, e ele travou o corpo no sofá, temendo até mesmo respirar.
— Você tá me ouvindo?
Ele agitou a cabeça.
— Não. Desculpa. O que você falou?
— Perguntei o que você está cursando na UFSC. A Josi já me falou, mas eu esqueci.
— Psicologia. Último ano.
— E não quis participar da recepção dos calouros do seu curso?
— A principal festa de boas-vindas do pessoal de Psicologia sempre acontece na República Capô de Fusca — Vinícius falou, escutando Lorena soltar um risinho baixo, provavelmente por causa do nome do lugar. — Gente embriagada, música alta e trotes que, às vezes, passam dos limites. Prefiro ficar quieto no meu apartamento, estudando ou adiantando algum relatório do estágio.
— E você só estava no campus hoje por minha causa?
Vinícius arqueou as sobrancelhas.
— Por que eu...
Escutou a risada de Lorena sendo abafado pela água corrente da pia.
— Vai me dizer que a tia Josi, sua querida irmã mais velha que é casada com meu pai super protetor, não te pediu para ficar de olho na enteada que está longe da família pela primeira vez na vida?
— Acha que ela me pediria isso?
— É óbvio. Não precisa mentir para mim.
— Por que acha que estou mentindo?
A cabeça de Lorena surgiu no vão da porta. Os cabelos molhados dela pingavam pelo chão.
— Meu pai é investigador. Minha madrasta é investigadora. Minha mãe não trabalha na área criminal, mas tem aquele olhar que detecta mentiras e faz qualquer um se contorcer até dizer a verdade. Gosto de pensar que aprendi um pouco com cada um deles.
Vinícius ficou em silêncio, optando por deixar a dúvida no ar, incapaz de conter um meio sorriso quando ela voltou para o banheiro.
Apesar de não conviver tanto como sua meia-irmã como gostaria, principalmente por estar estudando em outro estado, sempre escutava as histórias de Josiane sobre a família, o marido, o filho e a enteada.
Lorena Mendes.
Vinícius não poderia afirmar que a conhecia.
Ela era a enteada de Josiane. Ele dançara com ela em sua festa de quinze anos, a pedido da irmã. Haviam conversado uma vez ou outro nas raras vezes em que ele conseguira uma folga do estágio e viajara para Belo Horizonte.
Assim, não era como se ele conhecesse Lorena de fato.
Mas, mesmo assim, nas poucas vezes em que a vira e nas histórias que ouvira, já conseguia pintá-la em sua cabeça.
Talvez ela vagasse entre uma personalidade divertida para alguns, irritante para outros — mas ele não podia negar que Lorena Mendes era muito mais espirituosa do que qualquer outra garota que conhecia.
— Bom, bancando o espião ou não, não conte para a tia Josi sobre esse probleminha que já tive com um dos veteranos. — Lorena retornou para a sala, com roupas limpas e com o cabelo livre da cola. — Meu pai iria surtar e pegar o primeiro avião que conseguisse para cá.
Outra vez, Vinícius não confirmou nem negou nada.
Ela andou pela sala de um lado para o outro, o cheiro do seu perfume e do xampu se espalhando pelo ambiente e enlaçando os sentidos dele de uma forma para a qual não estava preparada.
Vinícius engoliu em seco, correu os dedos pelos cabelos, o peito inflando e murchando embaixo da camiseta.
— Você tá morando sozinha aqui?
— Só até encontrar alguma garota legal para dividir o aluguel. — Ela parou no meio da sala; o aroma do perfume dela parecia ainda mais acentuado, mais chamativo. Vinícius não quis entender a razão pela qual aquela fragrância fez sua pulsação acelerar. — Vou pegar um salgadinho para você. Um agradecimento pela carona e por ter colocado o idiota no lugar dele. Mas ainda sinto que vou ficar te devendo uma e te compensarei pela ajuda. É uma promessa, tá bom? Você come essas coisas ou é do tipo mais saudável?
— Pode ser.
— Vou interpretar isso como um "sim, aceito o salgadinho".
Feito um furacão, ela correu para a cozinha conjugada com a sala, abriu os armários, pegou dois pacotes de salgadinho, lançou um para ele e se jogou no outro sofá. Vinícius tinha certeza de que tudo aquilo fora feito em quarenta segundos.
Ele abriu o pacote em silêncio, jogando alguns salgadinhos para dentro da boca. Dali, conseguia escutar o movimento da rua, a agitação do bairro que se abria mais uma vez para receber universitários de todo o país.
Ergueu os olhos devagar, fitando Lorena, dizendo para si mesmo que estava apenas se certificando só mais uma vez de que aquele idiota do Artur não a tinha machucado.
Ela deslizou os dedos pelos cabelos molhados, jogando-os por cima do ombro esquerdo; algo naquele gesto simples mexeu com o sangue dele, lançando uma ansiedade súbita e atordoante em suas mãos.
E ele, que não era alguém de muitas palavras, se viu quase desesperado para quebrar aquele silêncio palpitante.
— E por que você escolheu cursar Direito? — perguntou, encontrando uma pontada rouca na voz.
Um sorriso que fez o coração dele falsear surgiu nos lábios dele.
— Sinto que a advocacia é uma carreira que combina comigo e que pode me ajudar a alcançar meus objetivos.
— E quais seriam eles?
— Quero fazer a diferença. Quero deixar minha marca no mundo. Para sermos lembrados, precisamos ser impactantes e relevantes. Não necessariamente quero ser famosa ou milionária. Eu quero ser lembrada pelas minhas palavras, pelas coisas que fiz, pelas pessoas que ajudei, pelos casos que defendi. — Os olhos dela brilhavam de um jeito tão entusiasmado que Vinícius se pegou sorrindo para aquela sinceridade genuína. — Quero ser conhecida pelos meus atos. Eu não quero ser só a filha e a enteada dos investigadores que...
E então, a voz de Lorena diminuiu.
O olhar entre eles se prolongou e ondulou, carregado por mais palavras do que o silêncio poderia suportar.
Vinícius fitou o salgadinho, sentindo o familiar nó no estômago.
— Pode falar. Não tem problema.
Os lábios de Lorena se entreabriram, cautelosos, cuidadosos.
— ...Não quero ser só a filha e a enteada dos investigadores que prenderam e desmontaram toda a seita da Promessa Dourada.
— A seita criminosa que a minha família fazia parte.
Uma quietude densa e tensa se espalhou pela sala.
Vinícius baixou os olhos, a mente voltando para quatro anos atrás, o eco das notícias que encheram as mídias e as redes sociais ecoando em sua cabeça em um looping infinito.
Ele estava apenas com dezessete anos naquela época.
E não fazia ideia do mundo sombrio e obscuro do qual a sua família fazia parte.
Seu pai, um deputado conservador que tinha uma filha fora do casamento, entrara na Promessa Dourada visando as eleições. Pelo que a mídia e os mais próximos relatavam, seu pai acreditara, em um primeiro momento, que aquele era um grupo formado por membros da elite — políticos, empresários, chefes de segurança, grandes banqueiros.
As coisas mudaram quando seu pai descobriu o verdadeiro propósito da Promessa Dourada.
Eles defendiam o fim da corrupção através de uma destruição total, pregando uma restauração através de atos terroristas que abalariam o país, dizimariam vidas, queimariam cidades, eliminariam os governos vigentes — tudo isso através da implantação de bombas em vários pontos do país.
Assim, seu pai havia se juntado com um deputado liberal para derrubar a seita quando tomou ciência do planejamento dos atos terroristas.
E pagara com a própria vida.
Quem fora o algoz de seu pai?
Vinícius engoliu em seco.
Minha mãe. Minha própria mãe.
Sua mãe era uma das principais cabeças da Promessa Dourada. Sua mãe havia matado seu pai quando ele tentara deixar a seita e entregar a todos para a polícia. Sua mãe também havia quase matado Josiane em um confronto feroz. E sua mãe havia morrido ao ser baleada por um tiro disparado pelo pai de Lorena, o investigador que chefiava a operação contra a Promessa Dourada.
Já fazia quatro anos.
E aquela mancha, aquele espectro, ainda o perseguia.
"Como é viver sabendo que sua mãe matou seu pai?".
"O que você pensa de seus pais terem feito parte de uma seita terrorista?".
"Você se ressente dos membros da polícia que mataram sua mãe, mesmo ela sendo uma terrorista psicótica?".
"O que você teria feito se sua mãe tivesse matado sua meia-irmã?".
"Você acha que seu irmão mais velho, que ainda quer seguir carreira política, vai trilhar os mesmos passos sombrios dos seus pais?".
Vinícius sabia que os jornalistas adoravam cutucar suas feridas sempre que o encontravam, pois dor e tragédia vendiam bem.
— Desculpa, eu não queria tocar nesse assunto — Lorena sussurrou, visivelmente constrangida, puxando-o de volta para a realidade.
— Não tem problema. Já faz quatro anos. — Sua voz nada mais era do que um fio frágil e fraco. — A terapia e o tempo me ajudaram a assimilar tudo o que aconteceu.
— Eles eram seus pais.
— Eles não pensaram em mim e no meu irmão quando se juntaram à seita. Principalmente minha mãe.
Lorena abriu a boca, mas nenhum som saiu.
Vinícius virou o rosto e fitou a janela.
O simples fato de mencionar aquela história fazia a alma dele se partir em mil pedaços doloridos e amargos. Achava que aquela dor jamais desapareceria, que aquele sentimento de ser traído pelos pais que deveriam protegê-lo jamais sumiria.
Deixou o ar escapar ruidosamente dos seus pulmões.
— Ela não pensou em ninguém quando estava disposta a espalhar bombar e matar inocentes, ou quando tirou a vida do meu pai. Ou quando quase tirou a vida da Josi. — Ao dizer aquilo, ele ficou em pé. A sensação era de que não conseguia respirar direito. — Tenho que ir. Já está tarde.
— Você tem certeza de que...
— Sim, estou bem.
Lorena o acompanhou até a porta, apoiando as mãos no batente.
— Obrigada de novo. Nos vemos pelos corredores da universidade?
Ele se limitou a assentir. A luz externa da rua escorregava pela janela lateral, deslizando sobre Lorena, permitindo que Vinícius observasse os detalhes dos traços dela; a cor forte dos olhos, a curva da boca, o movimento sutil que o cabelo molhado fazia ao descer pelos ombros, esparramando-se pelas costas dela de um jeito que a deixava mais vibrante, mais marcante do que a menina de quinze anos com quem ele tinha dançado.
Limpando a garganta, ele se despediu com um gesto de cabeça, mas só deixou o corredor depois que Lorena fechou a porta.
Ao sair do pequeno apartamento, atravessar o hall e caminhar em direção à sua moto, Vinícius apanhou o celular. Havia uma mensagem de Josiane ali.
Josi: E aí? Como foi? Você a viu?
Sentindo a brisa noturna soprar em seus cabelos, e com o pedido de Lorena circulando por sua mente, Vinícius digitou e enviou a resposta.
Vini: Eu a vi sim. Ela tá super bem.
Vini: A recepção dela foi tranquila. Deu tudo certo.
A resposta de sua irmã chegou logo em seguida.
Josi: Obrigada mesmo por ficar de olho nela por mim e pelo Tomás.
Vini: Se precisar, é só pedir.
Josi: Digo o mesmo. Nunca se esqueça de que estou aqui por você também. Te amo, irmãozinho.
Vinícius leu e releu a mensagem; e então, enfiou o celular no bolso, subiu na moto, deixou o motor roncar pela rua e dirigiu para os braços da noite, torcendo para que aquela angústia, um dia, desaparecesse.
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