Velhos tempos
Depois de sete anos de total sutileza, fazendo de tudo para que nada — absolutamente nada — parecesse estranho aos olhos do mundo, tudo tinha ido por água abaixo em poucos dias. Paulo sentia que tinha passado todo aquele tempo segurando uma taça de cristal que estava fadada a cair mais cedo ou mais tarde; e que cortaria, com seus estilhaços, quem quer que estivesse próximo. Ele já conseguia sentir os cortes; pareciam mais profundos à medida que o carro estacionava no local onde estava marcada a coletiva de imprensa.
O geneticista sabia que aquela coletiva era apenas o começo de uma imensa dor de cabeça. Não queria sequer imaginar as explicações que teria que dar aos seus superiores; aos que realmente importavam, não ao governador do estado. Por outro lado, já tinha se conformado com a situação. Não poderia fugir dos repórteres que lhe esperavam, assim como também não podia passar aqueles últimos minutos lamentando toda a lambança que Leonardo havia causado. Era hora do show.
Manoel estacionou o carro, onde, nos bancos detrás, estavam o pesquisador e sua mais nova assistente pessoal. Paulo sabia que estaria desprotegido durante a coletiva, e que seria um alvo fácil para um de seus pacientes revoltados. Por isso, a companhia de seu mais fiel soldado era de extrema importância. Manoel, mesmo de trajes informais e sem a habitual vestimenta negra, guardava na cintura um revólver e estaria pronto para defender seu chefe a qualquer sinal de algum adaptado nas proximidades.
Por mais que o plano fosse a contragosto de Paulo, não significava que iria deixar de se importar com os mínimos detalhes. Tudo estava bem organizado e continuaria assim com o decorrer da coletiva.
Descerem do carro e caminharam, os três, em silêncio até o prédio. Haviam estacionado nos fundos do edifício, de modo que evitassem contato prévio com os jornalistas. Dentro do prédio, já nos bastidores, encontraram uma grande produção; uma meia dúzia de assessores que trabalhavam diretamente para o governador tinham sido convocados para a missão. Paulo riu. Aquilo deixava evidente que o governo não poupara esforços para organizar a coletiva; estavam desesperados para que o escândalo fosse cortado antes mesmo que fincasse raízes.
— Doutor Paulo Ricardo Ribeiro? — um homem engravatado, de voz grave e tez arrogante, perguntou, aproximando-se do cientista, afoito.
Paulo encarou o homem, procurando reconhecê-lo de suas remotas reuniões com o governo, contudo não conseguiu. Mas algo não lhe era estranho. Olhou para a nova assistente em busca informações, mas a moça aparentava estar mais perdida do que ele.
— Sim, sou eu — confirmou.
O homem estendeu a mão.
— Conversei com o senhor por telefone ontem.
Analisando o suposto secretário do governador, Paulo recordou-se na conversa ríspida que tivera com o homem no dia anterior e da ira que tinha alimentado contra ele, mesmo não o conhecendo pessoalmente. O secretário não era muito diferente do restante da classe política, pensou o pesquisador; o mesmo sorriso dúbio, a mesma face ironicamente solidária, o mesmo olhar inescrupuloso. O homem era o que Paulo imaginara durante o telefonema: um rato de gravata.
Ainda com a mão estendida, o homem percebeu que ficaria a ver navios. Sutilmente, abaixou o braço, com um riso incomodado.
— Bem… Estão todos esperando pelo senhor — prosseguiu o secretário, ignorando a antipatia do cientista.
Paulo fitou Manoel, reafirmando com o olhar todas as ordens que haviam sido dadas ainda no centro de pesquisas. Em seguida, acompanhou o secretário por um corredor, sendo acompanhado por Manoel, logo atrás, e pelos olhares dos assessores.
Não demorou muito para que chegassem ao decisivo local. Pela porta fechada, era possível ouvir o burburinho dos jornalistas, todos afoitos para destrinchar o máximo de informações de um homem que há muito não se dava ao luxo de aparecer publicamente. Entretanto, Paulo estava confiante. Tinha aprendido, durante o período em que a pesquisa era vinculada à Cooperação, a inventar boas histórias, que conseguiam ludibriar os mais aguçados repórteres. Conseguira, até, envolver-se com uma jornalista sem que ela descobrisse nada.
Seria como nos velhos tempos…
— Lembre-se — o secretário deu o último toque. — O governo não tem nada a ver com essa história. Isso é o essencial nessa entrevista.
Sem ânimo para retorquir, Paulo concordou com a cabeça. Respirou fundo, concentrou todas as suas energias em seu objetivo ali dentro, apaziguou as expressões, esboçou um leve sorriso e deu o primeiro passo.
A porta se abriu, deixando a mostra o enxame de jornalistas; uma sala cheia deles, que, como mortos-vivos ao encontrar uma vítima, viraram-se todos para a chegada do pesquisador. Flashes, câmeras, microfones de todos os tamanhos e formatos. Cada jornalista procurando uma cadeira mais próxima ao pequeno tablado. A movimentação, de início, assustou Paulo; não esperava que fossem tantos, nem que estivessem tão interessados no Projeto. E, por um lado, aquilo era ruim, pois significava que teria um maior trabalho em convencê-los da história armada, mas, por outro, a sensação de novamente ter todas as atenções voltadas para si era a mais pura e bela das boas sensações. Resolveu aproveitar; o sorriso, antes forçado, tornou-se natural.
A tempestade de perguntas veio assim que ele colocou os pés no tablado, onde havia apenas uma mesinha alta, na qual estava colocado o seu microfone. Várias perguntas, um amontoado de vozes e palavras, que nem mesmo a pessoa com os ouvidos mais aguçados conseguiria distinguir de onde cada uma vinha.
— Um de cada vez — pediu, em meio a um leve chiado do aparelho pelo qual falava. — Um de cada vez.
Uma jornalista levantou a mão, e Paulo apontou para ela, deixando que fosse a primeira a fazer suas indagações:
— É verdade que o Projeto Gênesis continua ativo?
— Era pra ser uma surpresa, mas depois dessas mentiras todas… — ele começou, depois de um longo suspiro. Queria demonstrar toda a chateação que sentia. — Sim, o Projeto Gênesis permanece na ativa. Na verdade nunca parou. O que aconteceu foi que… naquela época, existia uma pressão muito grande sobre nossas cabeças em conseguirmos resultados logo. Mas isso não veio e foi bastante frustrante. Decidimos, então, deixar a pesquisa oculta, para que pudéssemos trabalhar em paz, em busca dos avanços no tratamento de pessoas deficientes, que sempre foi o nosso intuito. E estamos quase lá.
— Quer dizer que a pesquisa está dando frutos? — outro jornalistas questionou.
Paulo segurou o contentamento ao perceber que seu plano estava dando certo; conseguia aos poucos levar o foco da coletiva para outro assunto.
— Sim sim! — fingiu uma animação extraordinária. — Em breve anunciaremos os resultados e o mundo inteiro poderá se beneficiar dos nossos avanços. É o trabalho de uma vida, eu tô bastante feliz com tudo que conseguimos fazer.
— Mas e o garoto? — sem rodeios, a mesma jornalista que fizera a primeira pergunta voltou a falar.
E, instantaneamente, o cientista recordou-se do rosto do rapaz em todos os canais de tevê, em todas as mídias possíveis. Uma raiva brotou de seu íntimo, ganhando força e tamanho em escala exponencial. Contudo, o sorrisinho continuava estampado, como se engessado na face.
— Só mais um adolescente louco no mundo — ironizou, fazendo com que alguns jornalistas também rissem. — São tantos que até me admira que seja surpreendente a reação dele. Mas… Essa é a alma da juventude, né? E é o que o Projeto Gênesis quer alcançar: que todos os jovens, independente da deficiência congênita que o tenha afetado, tenha a chance de uma vida normal, que possa fazer as loucuras que a adolescência permite.
Uma outra jornalista levantou a mão.
— Mas como o senhor explica todas as declarações que foram feitas por ele durante a aparição no estádio?
— Ele não disse nada de mais. Todas as informações que ele deu sobre o Projeto, tirando as mentiras, eram públicas. Tava na internet! Vocês mesmos pesquisaram sobre para estarem aqui hoje. Ele apenas mascarou o showzinho fantasioso dele com uma história verdadeira.
— E a transformação? Como você explica ele ter se transformado em uma fera ao vivo?
— Uai, mas esse é o mistério da semana! — Riu, confiante. — Eu não conheço a tecnologia que ele usou para aqueles efeitos, e sou telespectador assim como todos vocês. Admito que estou curioso para descobrir como ele fez aquilo. — Olhou no olho de alguns de seus entrevistadores, sentindo a vitória. Aos poucos conseguia convencê-los do contrário. — Mas eu garanto, como pesquisador na área da genética, que aquilo lá não foi real. E como coordenador das pesquisas do Projeto Gênesis, garanto que o nosso projeto não quer fazer um X-men no Brasil.
Foi o suficiente para que grande parte dos jornalistas caíssem nas graças do geneticista; podia-se ver nas expressões de cada um, que, antes desconfiadas, agora pareciam dispostas a ouvir de bom grado tudo que ele dissesse. Aquilo fez com que Paulo se recordasse da jornalista que entrara em seu caminho há sete anos. Se agora ele sabia lidar com aqueles profissionais, muito se devia a prática adquirida com Ana. Percebeu que era como andar de bicicleta; uma vez aprendida a técnica, jamais se esqueceria.
— Mais alguma pergunta? — inquiriu ele, tendo a certeza de que, no fim das contas, aquela coletiva tinha servido e muito para a popularidade da sua pesquisa.
— Eu só queria que o senhor explicasse direito, doutor Paulo Ricardo — uma voz saiu da multidão. Uma voz feminina, familiar; que já não ouvia fazia muito tempo. — Porque eu tô por fora de alguns detalhes. Um pesquisa tão renomada quanto o Projeto Gênesis se esconder por sete anos por causa da pressão da mídia? Acho uma desculpa bastante fraca pra tentar enganar esses jornalistas.
Paulo arregalou os olhos, desacreditado do que via. De todas as pessoas do mundo, entre todas as ameaças possíveis, sua imaginação jamais teria previsto que Marília poderia tentar algo contra ele. A mulher tinha amadurecido com os anos, mas boa parte das rugas que ele enxergava era de ira. Ele ficou em alerta. Vasculhou entre os jornalistas o filho de Marília, mas não o encontrou. Sem exitar, olhou para o canto da sala, onde Manoel se encontrava junto a sua nova secretária, e, com um aceno, ordenou que o soldado investigasse mais a fundo. Manoel, imediatamente, iniciou sua caça; se algum dos seus pacientes estivesse ali, seria pego.
Entretanto, Marília já era problema o suficiente. Sua presença significava, unicamente, que Leonardo havia ganhado mais uma aliada. Ela o fitava, o peito erguia com a respiração pesada, a testa tensionada, a mandíbula travada. Como Paulo tanto temia, a sua fala tinha afetado os jornalistas, que, agora, voltavam a ter o olhar desconfiado, investigativo.
— Não estou mentindo. O que trago são fatos, minha senhora — ele tentou se reerguer.
— Fatos? Ótimo! Eu também tô a fim de dar fatos para eles.
— Se não há mais perguntas, acho que essa coletiva não tem mais o porquê continuar. — Sentiu o controle da situação escapar de suas mãos, se esgueirando pelos dedos como água.
— Ainda não. Tem muita coisa pra ser esclarecida aqui. — O timbre suave da mulher, que ele recordava bem de ouvir nos jantares que Fernando dava em sua casa, havia ganhado um ar de amargura.
— Marília — era sua última tentativa. —, não queira se envolver nessa história.
— Isso foi uma ameaça? — ela perguntou. Paulo observou os jornalistas, que acompanhavam a discussão atentos. — Eu já estou envolvida, Paulo. Sete anos envolvida! Faço parte de tudo isso desde o momento que você usou meu filho como cobaia da sua pesquisa!! — Os jornalistas se exasperaram. Ela se virou para as câmeras. — Eu sou Marília Costa Casteliori, viúva de Fernando Casteliori, co-autor das atrocidades dessa pesquisa, e mãe de Leonardo Casteliori, o garoto que apareceu no estádio.
O barulho na sala foi ensurdecedor. Cadeiras sendo arrastadas, pessoas sendo empurradas, tudo para que pudessem captar com alta definição o que mulher tinha a dizer.
— Não só o meu filho, como mais vinte crianças são cobaias do Projeto Gênesis — prosseguiu ela. — Incluindo a filha do arquiteto morto há um mês, Amélia Teodoro, e a filha do empresário Lúcio Sonnenberg, Janaína Sonnenberg.
— Ela é maluca! Quero ver provar essa babaquice toda! — Ele a encarou, usando de sua expressões mais ameaçadoras, contudo ela estava distante de ficar intimidada.
Marília continuou:
— Eu tenho aqui duas listas. — Retirou da bolsa dois papéis. — A primeira é a lista de crianças que estudavam na quarta série do Colégio Estadual Antônio Augusto em 2007, e que sofreram um suposto acidente com um gás misterioso durante uma visita ao Projeto, mas que na verdade foi quando se iniciaram as pesquisas usando elas como cobaias. A segunda lista são os nomes dos adolescentes que foram vítimas da onda de sequestros esse ano. São as mesmas pessoas! E não é só isso. Se vocês forem procurar por esses adolescentes, vão descobrir que a maioria já se encontram desaparecidos novamente. — Marília apontou o dedo para Paulo. — Eles estão fazendo de tudo pra tentar manter essa história em segredo, mas a verdade é que esse sempre foi o propósito da pesquisa!
Com um olhar perdido, o geneticista foi se afastando do microfone. A raiva era tanta, a surpresa era tamanha, que não era capaz de elaborar uma desculpa, sequer uma frase, para tentar contornar a situação. A bela face do Projeto tinha sido arrancada de forma definitiva pela mulher, como um membro amputado a força, sem remorso.
— Tem algo a declarar, doutor? — um jornalista insistiu.
Porém, Paulo nada disse. Estava tudo perdido, ele tinha certeza. Não era capaz de ver sua expressão, mas conseguia imaginar que não era das mais amigáveis; percebia isso no rosto dos jornalistas, que perdiam as expressões de dúvida e ganhavam ares inquisidores. Definitivamente, não tinha mais o que fazer ali. Nos próximos segundos, Marília continuaria contando o que sabia, detalhando mais a sua história e consolidando-a na cabeça da mídia. E ele não estava disposto a ficar naquele lugar, imaginando como seriam as capas dos jornais, os títulos, as acusações.
Virou as costas para a multidão e saiu pela mesma porta que entrara, deixando para trás uma chuva de flashes caindo sobre si. Bateu a porta e encostou-se na parede, relevando os olhares tensos que os assessores do governo deixavam escapar.
— O que foi isso?! — o secretário apareceu, sobressaltado.
Colocando a cabeça no lugar, Paulo sentiu seu ódio ser alimentado; um banquete imenso de sentimentos ruins. Olhou para o secretário, a vontade de matá-lo o corroendo por dentro.
— Pergunta pro governador se ele tá feliz agora — disse, apenas, segurando-se ao máximo e saindo logo em seguida.
Não demorou muito para que escutasse os passos apressados de sua secretária particular logo atrás, tentando alcançá-lo. Alguns segundos depois, Manoel também apareceu.
— Eles não vieram, doutor. Ela veio sozinha — afirmou o soldado.
Paulo olhava para frente, alimentando mais e mais o seu ódio à medida que fazia o trajeto até onde tinha deixado seu carro.
— Vocês sabem onde eles estão escondidos, não sabem? — ele perguntou a Manoel; a voz centrada, fria.
— Sim, senhor.
— Quero que pegue todos eles, então. O mais rápido possível.
— Mas, senhor… — o moreno interviu. — Eles estão na casa de Lúcio Sonnenberg, amigo do governador, isso vai chamar muita atenção.
O cientista riu. Os passos continuavam firmes, o olhar rente a sua frente.
— Acabou a discrição. Acabou. Não há mais como esconder. — Respirou fundo. A imagem de um Leonardo sorridente ganhou seus pensamentos: mais alimento para seu ódio. — Pegue todos eles. O Projeto acaba de entrar na fase de exposição.
...
Consegui!! Capitulo durante o período letivo!! Uma grande vitória... Tô muito feliz kk
Espero que tenham gostado. Deixem suas opiniões, isso é muito importante pra mim!
Vamos torcer pra q eu consiga escrever mais antes das férias hehe :)
Vlw, pessoal!!
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