Telefonemas

   Por mais que houvesse diversão em alterar o curso natural da vida, Paulo, às vezes, pegava-se distraído com a ideia de um tempo de folga. Desde que as pesquisas tinham voltado a todo vapor, quando os agentes responsáveis por vigiar os pacientes avisaram que suas adaptações começavam a aflorar, o homem não tinha um dia sequer de descanso. Quase cinco meses de trabalho árduo e contínuo, que estava longe de chegar ao fim; afinal, a pesquisa nunca estivera em um nível tão avançado e em uma velocidade tão acelerada.

   Entretanto, isso não significava que as situação estava fácil. Paulo via seus nervos aflorarem à pele cada vez que se lembrava da maldita cena do Leonardo  em seu show dentro do estádio. O filho do homem que um dia fora seu maior aliado não negara a raça, tinha se tornado uma imensa pedra em seu sapato, arrumando, a todo momento, uma forma de atrasar o andamento do Projeto. Assim como fizera o pai. Porém, o garoto tinha ido além, feito o que o pai desejou fazer e não conseguiu, exposto o Projeto para o mundo.

   Agora, a imprensa estava sedenta por novidades sobre o assunto mais comentado da semana; e Paulo conseguia imaginar o quão contentes estariam seus superiores, assistindo ao desenrolar daquele espetáculo.

   — Paulo, tenho novidades sobre o testes da área de oncologia — Andréia surgiu, com dezenas de relatórios nas mãos, esbanjando a animação que tinha de trabalhar ali.

    Ele se endireitou na cadeira, retornando a mente para o que fazia. Andréia se sentou ao seu lado, folheando rapidamente a papelada. Seu perfume empesteou a sala sem grandes esforços; um aroma suave e refrescante. Paulo analisou a colega, que de vez em quando, levava o dedo a boca para facilitar o serviço de passar as páginas; o batom vermelho sempre irretocável.

   — Notícias boas, eu espero — pediu ele, fazendo a mulher sorrir.

   — Bem, eu não diria que são boas. Analisando a estabilidade genética dos tecidos dos pacientes, conseguimos ver que há uma proliferação celular bem mais acentuada do que em humanos normais, em tecidos que nem estão envolvidos em suas adaptações. Mas o mais interessante é a taxa de células com grau de alterações que podem levar a uma malignização. É muito grande.

   — Então… eles vão ter câncer em breve?

   — Aí é que está! — Andréia folheou mais algumas páginas, e indicou o que estava escrito para o amigo. — O sistema imunológico deles é excepcional. Eles são saudáveis, mas os corpos trabalham dez vezes mais para manter a saúde. Não vão ter câncer tão cedo, mas provavelmente morrerão disso no futuro. Porém se você levar em conta que soldados geralmente morrem em campos de batalha…

   — Não vai fazer muita diferença — ele completou, recebendo um sorriso concordante de Andréia.

   — Doutor Paulo? — uma menina o chamou na porta da sala.

   A moça era sua nova secretária particular, que havia assumido o posto após a morte de Mirna. Paulo ainda não havia se acostumado a não ter a loira lhe atormentando a cada minuto. Porém, Mirna tinha merecido ser deixada para trás durante a rebelião no centro de pesquisas; suas atitudes insensatas foram a prova de que tinha chegado a hora de descartá-la.

   A nova secretária lhe entregou um telefone.

   — Uma ligação para o senhor. É do governo.

   Paulo, com um suspiro profundo, pegou o aparelho. Fechou os olhos, imaginando todas as possíveis perguntas que seriam feitas e tentando, mais que depressa, encontrar boas respostas para cada uma delas. Olhou para Andréia, que o observava com a cara preocupada. Não era para menos; fazia muitos anos que o governo não se envolvia pessoalmente no andamento das pesquisas. Mais uma conseqüência dos atos do jovem Casteliori.

   — Pois não? — atendeu, miudamente.

   Do outro lado da linha, Paulo ouviu um pigarro. O som grave de uma voz masculina.

   — Olá, doutor Paulo Ricardo Ribeiro, sou o secretário do governador do estado de Goiás e… bem… o senhor já deve saber o porquê da ligação — o homem falava com deboche, como craques em um esporte costumavam lidar com amadores.

   Contudo, Paulo não era um amador.

   — Na verdade, não — retrucou. — Pelo que ficou conversado sete anos atrás, quando o Projeto Gênesis entrou na fase de platô, foi que o governo fingiria muito bem que nada disso estava acontecendo… Acho até engraçado que, milagrosamente, o governador tenha se lembrado de nossa humilde pesquisa.

   O secretário riu.

   — Temos que concordar que ficou um pouco complicado ignorar que um de seus cobaias tenha surgido para cinquenta mil pessoas, sem contar a transmissão da tevê. O governador está se perguntando… Como a situação chegou a esse ponto?

   — Já estamos controlando a situação, se é o que ele quer saber — Paulo mentiu, segurando a ira que o circundava como uma serpente.  

   — A questão não é o que está sendo feito. O mundo não precisa saber disso — usando de um tom bastante imperativo, o homem falava cada frase de boca cheia. Paulo percebeu que o secretário estava aproveitando a situação para que tivesse a quem subjugar. — Mas também não tem mais como fingir que nada aconteceu. A imprensa não vai deixar, até que encontrem uma desculpa para o que ocorreu. Precisamos de uma, nem que seja a mais fajuta de todas.

   O cientista suspirou novamente.

   — O que vocês querem? Aposto que já pensaram em tudo, então me digam logo o que querem.

    — Uma coletiva de imprensa — o homem falou de forma direta.

   — Mas…

   — Mostrar para a mídia que, sim, o Projeto Gênesis ainda existe e funciona perfeitamente. Mas afirmar que a pesquisa continua sendo uma pesquisa como outra qualquer e que o tal garoto Leonardo não passa de uma ilusão de ótica, um show feito por um maluco ou algo do tipo.

   Foi a vez do pesquisador rir, por mais que não estivesse vendo nenhuma graça naquela situação.

   — Não vão acreditar nisso.

   — Achamos que é o suficiente para entretê-los até que a notícia esfrie.

   Paulo olhou para Andréia, que esperava afoita para saber o conteúdo da conversa.

   — Uma coletiva de imprensa… — disse, alto, para que a mulher entendesse o motivo de seus suspiros e risadas irônicas. Andréia, assim como o colega, impressionou-se com a ideia. Qualquer um daquele centro de pesquisas ficaria impressionado; o  plano não era nada ardiloso. Porém, Paulo se via em um estado em que não poderia se recusar, precisava manter os ânimos de seus superiores calmos, e o governador, por mais que fosse o menos relevante, ainda sim era seu superior. — Tudo bem… Marque a coletiva de imprensa pra semana que vem.

   — Está marcada para amanhã a tarde.

   Não restava ao doutor, outra opção senão rir da forma mais sarcástica que conseguisse. Desejava poder usar de seus soldados para dar fim àquele secretário, ao governador, ou a quem mais se intrometesse. Porém, o que estava ao seu alcance era apenas a aceitação.

   — Tudo bem… Eu darei a coletiva amanhã.




   Pela primeira vez depois de muito tempo, a manhã chegou calma e silenciosa. As coisas estavam andando devagar, porém, era isso que eles queriam, que as ideias surgissem naturalmente, não que fossem forçadas a saírem imaturas e necessitando de tratamento intensivo. Esperariam até que o momento oportuno apontasse no horizonte e, enquanto isso, aproveitariam como pessoas normais o tempo que tinham; começando por aquela terça-feira.

   Léo permanecia enrolado em seus cobertores, com uma descomunal preguiça de se levantar. Ao seu lado, sentado na cama de Pedro, Sandro já se encontrava de pé e pronto para o dia que se seguiria, enquanto o dono da cama escovava os dentes no banheiro do quarto. Victor ainda não tinha acordado, aproveitava o sono no quarto ao lado, o qual Cristina havia organizado para os dois novos hóspedes. Janaína ainda não havia aparecido, contudo, Léo se perguntava se aquilo não era consequência do tamanho da casa, que poderia muito bem causar desencontros.

   — Então… Cê acabou ficando mesmo foi com a Janaína? — Sandro perguntou, sorrateiro.

   — O quê? Não! — Léo se surpreendeu com a conclusão do amigo.

   — Então voltou com a Amélia?

   — Na verdade, não tô com ninguém. A Amélia não me perdoou ainda… Nem sei se um dia vai me perdoar.

   Aquele assunto sempre o deixava deprimido. Lembrava-se claramente da face de raiva e desapontamento que a garota usava para se dirigir a ele, após o término do namoro; o  que o fazia perguntar se Amélia ficaria feliz em vê-lo de novo ou não.

   — Bom… — Sandro arrumou o corpo, inclinando-se mais para frente; estava interessado na conversa. Coçou a asa esquerda do nariz, antes de prosseguir, com um certo riso malandro nos lábios. — Só tenho uma pergunta a fazer: cê já percebeu como a Janaína te olha?

   — Sim!! — Pedro intrometeu-se, gritando de dentro do banheiro. Pelo som quase indecifrável que saia de sua boca, Léo concluiu que o amigo deveria estar no meio da escovação, com pasta voando para todos os lados após aquele grito animado. — Ele não me escuta!

   O loiro balançou a cabeça, desconcordado.

   — Isso é bobeira — afirmou ele. Porém, a ideia ainda vagava na mente, averiguando se era possível em cada detalhe dos últimos dias. — Ela só tá sendo mais educada, por estarmos aqui, na casa dela. Mas ela continua me tratando com a indiferença de sempre. Cêis estão enlouquecendo.

   Sandro abriu um sorriso debochado.

   — Olha, Léo, não faz nem um dia que eu cheguei e já percebi tudo que tá acontecendo, mas, pelo jeito, você ainda não percebeu… Tô começando a te achar meio sonso.

   — Finalmente alguém que me entende! — Pedro voltou a pronunciar.

   Léo revirou os olhos, começando a se incomodar  com rumo daquelas brincadeiras. As recordações da última vez que tinha se deixado levar pela sedução de Janaína ainda lhe causavam bastante desconforto. Se Amélia não estava ao seu lado naquele momento, muito se devia àquele beijo inesperado. Porém, ele continuava tendo a certeza de que não tivera culpa no ocorrido. Havia sido uma grande surpresa para ele também; e Amélia se negava a entender o seu lado da história.

   Talvez significasse que era hora do fim.

   — Enfim… — Sandro, para seu alívio, resolveu mudar de assunto. — Eu tava pensando no nosso próximo passo. E cheguei a conclusão de que temos que continuar atiçando os jornalistas, já que você começou a fazer isso. Tudo que eles sabem até agora são meias-verdades e especulações. Temos que dar, no mínimo, mais pistas.

   — Chutar o balde de vez — concluiu Pedro, saindo do banheiro com o rosto enfiado em uma toalha.

   — Sim… Chutar o balde ainda mais.

   Léo ouvia a tudo com bastante atenção, mesmo que nenhuma resposta lhe viesse à cabeça.  Teria que pensar em algo, pensar bem, como Sandro desejava. Sem precipitações.

   E, como se para afirmar que o momento não era propício para encontrar respostas, seu celular começou a tocar, levando a sua atenção para milhas de distância do que Sandro falava. A foto de sua mãe surgiu na tela, pela primeira vez desde sua aparição em público; e, junto a foto, um frio na barriga, percorrendo suas tripas como um carro de corrida em uma pista sinuosa. Entretanto, aquele quadro havia se postergado muito e era hora de jogar todas as cartas na mesa. Pegou o celular, deu um pulo da cama e correu para o corredor. Precisava de privacidade.

   Atendeu. Os olhos piscavam, frenéticos de tanta ansiedade e de um certo medo. Botou o aparelho no ouvido e esperou. Esperou por uma bronca, ou por uma lamentação, quem sabe um pedido implorado para que ele aparecesse. Mas Marília parecia também esperar algo, pois permaneceu, assim como o filho, em silêncio absoluto nos primeiros segundos.

   — Oi… — ele disse, por fim, baixo e receoso.

   Ganhou, como primeira resposta, um longo suspiro do outro lado da linha.

   — Por que não me contou tudo? — ela questionou, com um desapontamento visível.

   Léo percebeu que a conversa não seria fácil, e que tinha motivos para todo aquele frio que invadia sua barriga. Começou a andar pelo corredor, sem rumo certo, sem ter como fugir.

   — Aquela foi a forma que arrumei de contar pra todo mundo, mãe. Pra senhora também.

   — Onde cê tá?

   — Tô na casa de uma amiga. Estamos seguros, não se preocupe.

   Ela riu. O garoto conseguia imaginar bem as expressões que deviam ter ganhado forma no rosto da mulher.

   — Não me preocupar… Ainda tô tentando entender o que tá acontecendo, Léo — desabafou. — O que foi… aquilo?! Tudo o que cê disse é realmente verdade?

   Ele caminhou pelo corredor, olhando os diversos quadros e retratos, e depois  continuou sua perambulação  para o corredor que dava para a sala.  De todo modo, o garoto tinha que agradecer por aquele momento; era a sua chance de redenção, de provar para sua mãe que ainda tinha um filho em que podia confiar.

   — Sim… Comecei a descobrir tudo faz pouco mais de um mês, no dia em que a família da Amélia foi assassinada.

   — Meu Deus! Como?! Por que você não me contou desde o início?!

    Aquelas respostas estavam na ponta da língua, afinal, ele tinha passado mais um mês respondendo as mesmas perguntas para si mesmo.

   — Eles mataram os pais e o irmão da Amélia na minha frente! O que acha que eles fariam com a senhora?

   — Não importa o que eles fariam, eu tinha o direito de saber! — Contudo, ele não esperava que fosse receber  aquela contrargumentação. Marília não tentava esconder sua raiva, o momento também era de extravasamento para ela. — Como seu pai fez isso? Como ele teve coragem de fazer isso com você?!  

   Léo parou no meio do corredor que dava para a sala, de frente a uma grande janela de vidro, a qual deixava transparecer o lindo quintal da casa, com as plantas ornamentais, que cresciam aos montes no condomínio, e uma grande e atraente piscina, que refletia o sol da manhã.

   — Ele não planejou que eu fizesse parte disso, foi um acidente para ele — contou ele, lembrando-se do dia da exposição, quando tudo começou. — Mas ele sabia que isso ia acontecer com outras crianças… Ele e o tio Paulo planejaram tudo, mãe. O único imprevisto foi eu tá lá no dia errado.

   Um longo silêncio tomou a ligação, como se fosse tanta coisa para ser dita, que as frases não se formavam de forma clara. Tantas perguntas, que uma se encaixava na outra, e tornava-se um emaranhado de dúvidas que só crescia mais e mais. Por fim, Marília puxou uma ponta do emaranhado, buscando uma forma de continuar:

    — Léo, vem pra casa… — a voz ganhou um tom choroso. — Agora não tem mais motivos para você fugir de mim, e eu não queria que você ficasse longe nesse momento difícil, meu filho…

   E enquanto a mulher dava tudo de si para encontrar argumentos que convencesse o rapaz, uma Janaína mais afoita que o normal surgiu no corredor. Vindo da sala, a loira tinha os olhos arregalados; quase corria em direção a Léo.

   — Vem comigo, cê precisa ver isso! — ela afirmou, enquanto puxava o garoto pelo caminho que tinha surgido.

   Léo, por um instante, esqueceu-se de que conversava com a mãe. Marília permanecia argumentando do outro lado da linha, porém, mesmo se ele estivesse realmente ouvindo, sua resposta não seria diferente: ainda não era boa hora para voltar.

   Em um piscar de olhos, chegaram na sala. Janaína apontou para a televisão, que, já ligada, mostrava imagens de um homem o qual ele reconheceria a um quilômetro de distância.

   — Olha aquilo! — ela pediu.

   — Léo, você tá me ouvindo? — Sua mãe permanecia na ligação.

   Porém, tudo que a mente do garoto queria era prestar bastante atenção no porquê de imagens aleatórias de Paulo Ricardo, antigas e atuais, passavam na tevê local.

   — … a coletiva está marcada para às quinzes horas desta terça, quando o geneticista irá explicar melhor o envolvimento da sua pesquisa, até então dita como encerrada, nos últimos acontecimentos que mexeram com a curiosidade de todos os goianienses e de grande parte dos brasileiros — dizia um repórter.

   E de repente sua consciência se iluminou, como um grande trovão que ilumina a escuridão, mostrando o caminho a seguir. A resposta que ele tanto queria.

   — Mãe… Tá aí?

   — Sim, não tá me ouvindo?! Volta pra casa, Léo. Deixa eu te ajudar.

   — A senhora realmente que ajudar? — Os pontos se encaixavam em sua mente.

   — Claro que sim!

   Ele fitou Janaína.

   — Eu tenho um plano.

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