Sob penumbra
Camila movimentou as mãos, mas era o máximo que conseguia mover. Os pulsos permaneciam atados aos braços de uma cadeira metálica, e os pés, aos pés anteriores da mesma; conseguia, unicamente, abrir e fechar as mãos e girar o pescoço, para analisar a sala vazia. Contudo, não era a mesma sala onde acordara dois dias atrás, essa agora possuía iluminação, era totalmente branca e estava fazia de móveis, com exceção da cadeira onde sentava e do cavalete que segurava um retrato diante de seus olhos. A única coisa que quebrava a inércia das paredes brancas, era o enorme vidro negro por onde, ela sabia, vigiavam-na enquanto davam ordens por um autofalante.
Ela arfava, esgotada. O corpo doía com os espasmos constantes.
O black entrou na sala pela sétima vez. Foi até em frente a menina, trocou o retrato que estava exposto a ela e saiu, sem pronunciar uma palavra sequer. Ela estudou o novo retrato; não era mais uma mulher, como o antigo, mas sim um homem negro, olhar sério, cabelo curto.
- Faça a metamorfose, paciente 01 - a voz feminina ecoou pelo recinto, ordenando pela sétima vez que fizesse a mesma coisa.
E Camila fez. Fechando as pálpebras e buscando forças onde jamais imaginou encontrá-las, a ruiva foi deixando de ser ruiva, o tom de sua pele escureceu-se, os fios de cabelo diminuíram, os lábios tornaram-se mais carnudos, o nariz fino se tornou mais rombo. O corpo cresceu, mas não muito; a segredo de sua adaptação estava em sua epiderme, não em seus tecidos conjuntivos. Seu couro era quem fazia a maioria do trabalho de transformação. Abriu novamente os olhos, já castanhos. Em poucos segundos, Camila estava idêntica ao retrato, uma cópia tão leal, que poderia se passar pelo original sem esforços.
Entretanto, já tinha ficado claro que os pesquisadores não estavam ali para assistirem, admirados, seus dotes em ação; não era um showzinho particular, muito pelo contrário. A garota se preparou, pois o pior estava por vir.
- Paciente 02, já sabe, aguente o máximo que conseguir - a voz mandou.
Um pequeno choque elétrico percorreu o seu corpo, causando, pela sétima vez, os repulsivos espasmos musculares. Porém ela permanecia transformada, aguentando firme, obrigando seu organismo a ignorar a agressão que sofria. A corrente elétrica era de baixa intensidade, porém contínua. Trinta segundos, quarenta, cinquenta... Foi o máximo. Suas células estavam parando de responder, sua cor foi clareando, seus fios de cabelo foram crescendo e enrubescendo. Mas os choques continuavam até que não houvesse chances de repostas celulares; até seu esgotamento total.
- Parabéns, Camila - agora, era uma voz masculina. A voz de Paulo. - Você é realmente tudo aquilo que imaginávamos. Agora, voltaremos para seu alojamento.
No instante em que ouvia a voz daquele homem, uma ira descomunal engolia todos os sentimentos bons que haviam dentro de si. Seu corpo estava programado para matá-lo assim que tivesse a oportunidade; podia vislumbrar a deliciosa sensação de tirar a vida daquele crápula.
- Onde tão meus amigos? - perguntou ela, irritada. - Por que eu não posso ficar junto com eles?!
Silêncio. Camila encarava a vidraça, sabia que estavam todos ali, olhando de volta para ela com suas expressões doentias. Sim, considerava-os todos doentes, não podia haver outra explicação. O silêncio se prolongou, até que o típico chiado do altofalante anunciou que alguém falaria:
- Você é ardilosa, Camila - Paulo começou, irônico. - Possui uma mente estrategista muito boa para uma moleca de quinze anos. Te deixar junto com os demais é o mesmo que incentivá-la a planejar um plano de fuga. - Enquanto falava, dois blacks adentraram na sala, colocando a tornozeleira elétrica e desprendendo a garota para que pudesse ser levada. - Te deixar com os outros pra você incitar a raiva deles? Não...
- Eles não precisavam de mim pra isso!
- Será que eles sabem disso? - ironias e mais ironias. - De todos os pacientes, a sua turminha é a que está me dando mais trabalho. E você é uma das grandes culpadas por isso.
- Fico feliz, então - não se colocaria inferior, por mais que seu coração estivesse em taquicardia.
Paulo riu.
- Vocês estão achando que sairão ilesos dessas rebeldias... Não perceberam que não importa o que façam, vocês sempre irão acabar aqui? Não adianta aparecer em rede nacional, se mostrando para o país inteiro, pedindo por ajuda - falou, de forma misteriosa. - Sempre daremos um jeito de contornar a situação. Sempre. Essas ações só farão com que fiquemos com mais raiva e perdamos o pouco de dó que ainda nos resta.
Sem despedidas, os blacks se puseram a arrastá-la para fora do lugar. Empurravam-na para frente, ao mesmo tempo que apertavam seu braço ao ponto dela se perguntar se a sua circulação permaneceria saudável após os apertos.
Os corredores eram extensos, esticavam-se e se dividiam para todos os lados; formavam uma construção labiríntica que só quem perambulava por ela há muito tempo saberia se guiar sem se perder. Durante o tempo que caminhava forçadamente até o sua cela, via passar dezenas de pesquisadores, todos com o mesmo jaleco com o símbolo de uma fita de DNA bordada no peito. Alguns a olhavam curiosos, como se ela fosse um jóia das mais preciosas, outros a admiravam, como se vissem nela o sucesso de um trabalho árduo, muitos outros sequer a olhavam, focados demais em seus papéis e anotações. Haviam, também, muitos blacks, que se dispunham em todos os corredores, fazendo a guarda. Era um local movimentado, porém podia ser visto que não havia sido construído para alojar os adaptados, como era o outro centro de pesquisas; ali sim era um legítimo centro de pesquisas, a quantidade de doutores não deixava dúvidas.
Andou até chegar ao subsolo, uma área a meia-luz, silenciosa e deserta. Era como se o centro de pesquisas tivesse um porão, onde eram guardados as tralhas que não tinham grande serventia, ou que espantariam os visitantes caso fossem vistas no meio da sala de recepção. E Camila era uma dessas tralhas. Ela continuou pesquisando os corredores daquela área, acabando por perceber que se tratavam de corredores mais finos. A ventilação ali era reduzida, o que dava ao lugar um clima abafado não muito agradável. Além dos corredores, salas, dezenas delas; muitas eram iguais, pareciam celas de uma cadeia. A única diferença estava nas grades das celas, que não existiam e eram substituídas por imensas paredes de vidro de aparência resistente.
Eram numerosas, porém estavam todas vazias. Todas, com exceção de uma. Camila mal conseguiu ver, tivera que prestar muita atenção para identificar o espectro humano sob a penumbra da cela. Teve que olhar depressa, pois os blacks não a deixavam parar um instante sequer. Contudo, apesar da rapidez, pôde enxergar com certeza que havia alguém naquela cela. Um velho, encolhido na cama e virado para o canto da parede; a barba comprida, os cabelos grisalhos e a face escondida. Vestia a mesma roupa que ela, uma espécie de uniforme de quem se hospedava naquela caverna; os pés, descalços. Estava sozinho, continuou imóvel mesmo com a movimentação no corredor. Poderia até ser confundido com uma estátua, caso não estivesse em um local tão inapropriado.
A cela logo ficou para trás, e Camila prosseguiu sendo empurrada, perguntando-se quem era aquele senhor e o que teria feito para que fosse necessário sua interdição. Três corredores depois, pararam. A menina fitou a sua nova residência, uma cela idêntica às demais; ficaria tão sozinha e isolada quanto o velho que tinha visto.
- Entre - um dos blacks ordenou, ao abrir a porta. Camila o fitou, recusando-se a seguir em frente. - Anda, garota, entra logo! - ele se estressou. Pegou a ruiva pelo braço e a jogou dentro da sala.
Ela cambaleou, até conseguir retornar seu equilíbrio. Mas quando o fez, era tarde demais; ouviu-se novamente a tranca da porta se fechando. Camila encarou o lugar, uma perfeita cela de prisão, com uma cama, uma pia e uma privada, uma mesa, uma cadeira, um criado-mudo e uma presidiária. Não existia trilha sonora que se encaixasse melhor, senão o silêncio.
...
Amélia perambulava pelo recinto. Analisava os livros e histórias em quadrinhos dispostos em uma pequena prateleira, enquanto conversava com o mais novo amigo que tinha feito ali dentro. A área de descanso não era muito grande, bem menor que a do antigo centro de pesquisas, não tinha um jardim, sequer um jarro de flores pra quebrar a monotonia das paredes brancas. Sem árvores e arbustos, não era necessário haver um teto de vidro que servisse de estufa, o que significava que os pesquisadores não cometeriam o mesmo erro de deixá-los em um local tão desprotegido como ocorrera. Contudo, o local era grande o suficiente para que pudessem conversar sem intrusos.
Mais ao longe, no outro canto da área de descanso, Graziela e Matheus, os amigos de Camila, conversavam distraídos. Não muito distante, Élida, Ariel e Guilherme também tinham feito sua própria roda de prosa. Além dos jovens, alguns blacks se postavam nos quinas das paredes; eretos e indistraíveis como guardas ingleses, podiam ser considerados quase parte da mobília.
- Sabe o que eu tava pensando? - perguntou Alex, deitado sobre o carpete da área de descanso. Olhava para o teto, com os braços e pernas posicionados como se preparasse para fazer um anjo na neve, contudo permanecia estático; havia muito tempo que estava nessa posição.
- O quê? - inquiriu ela, largando os livros e seguindo para as poltronas as quais circundavam o carpete. Prendeu os cabelos ondulados; o calor começava a incomodar, mas nada que saísse do habitual do verão do centro-oeste.
- Essas adaptações que temos... Não foi algo planejado, né? - Alex sentou-se, de modo a encarar a menina. - Tipo, a gente foi exposto pelas mesmas coisas, os mesmos fenômenos. As mutações ocorreram de forma aleatória, eu acho. - Esperou por uma resposta da garota, mas ela parecia preocupada demais em analisar aquela indagação para proferir uma opinião, então continuou: - Acho que... que é como se existisse um número x de possibilidades de mutações e qualquer uma delas poderia ter corrido com a gente.
Amélia sorriu.
- Muito interessante, a sua teoria, doutor Alex - brincou ela, dando motivos para que ele também sorrisse. - Então isso significa que existem mais possibilidades que ainda não foram usadas, bem como também é possível que as possibilidades já usadas se repitam.
- Exatamente! - ele disse, animado. O rapaz ainda tinha alguns hematomas do dia de sua captura, mas os inchaços no rosto perdiam espaço cada vez mais; estava com uma aparência bem melhor. - Por isso eles querem tanto estudar as nossas adaptações. Eles querem saber lidar, caso elas voltem a acontecer nos soldados. Nós não somos tão importantes para a guerra em si, apenas para a pesquisa... - fitou-a, os olhos abertos ao máximo. Parecia extasiado em seus devaneios, totalmente diferente da menina, que se pegou tendo pensamentos pessimistas.
- Então, o que acontece depois que eles descobrirem tudo sobre a gente?
Alex comprimiu os lábios, botou o ar para fora do pulmão e respondeu:
- Todo aparelho obsoleto é descartado. - Amélia se encolheu na poltrona. - Desculpe, eu não queria te assustar. É que... no outro centro de pesquisas, eu e o Sandro ficávamos o tempo todo tentando descobrir o que tudo isso significa, o que se passa na mente desses malucos.
- Tudo bem, não se preocupe. No fundo eu acho até legal - apaziguou ela. - É só que... Não sei, tem trem errado nessa sua teoria. Se eles podem fazer outros com o mesmos dons, então não faz sentido eles se darem ao imenso trabalho de nos pegar. É um serviço que demanda tempo demais para eles fazerem sem ser necessário, não acha?
O rapaz botou a mão sobre o queixo.
- Tem razão, doutora Amélia - também brincou. - Preciso pensar mais um pouco, então - ele concluiu, voltando a se deitar na mesma posição de antes, de forma espalhafatosa, com os braços e pernas abertos no carpete.
- Não acha estranho não saber o rumo que sua vida tá tomando? - ela questionou, aflita ao imaginar como estaria um mês pra frente, ou um ano.
O loiro gordinho abriu a boca, iria comentar sobre sua pergunta, porém antes que o som fosse emitido de suas pregas vocais, o barulho da porta se abrindo ganhou todo o protagonismo para si. Amélia se levantou em um pulo da poltrona; e antes que os blacks passassem pela porta, já estava focada no que acontecia.
Surgiram, pela passagem, três homens com seus trajes negros. Um deles, o que estava no meio, Amélia conhecia muito bem; era o black que comandara sua captura, Manoel. Contudo, por mais assustadoras e inquietantes que fossem suas presenças, estavam longe de serem os alvos da atenção. O que eles traziam era bem mais preocupante, afetava muito mais o emocional dos garotos.
Uma menina baixinha, de traços delicados e ares de impotência. Uma loirinha de cabelo joãozinho, os olhos inchados e vermelhos, a feição tão pálida que um arrepio subiu pela espinha de Amélia ao imaginar o que havia acontecido à novata. Entretanto, algo mais sutil tinha ganhado o foco de Amélia; seus olhos repousaram na roupa da menina, na blusa de estampa florida e na bermuda de cores quentes. Aquela roupa... Amélia poderia até estar sonhando ou imaginando coisas onde não tinham, mas tinha quase certeza de que pertenciam a Clara. Era difícil encontrar meninas que gostassem daquele estilo alegremente hippie de se vestir, não podia ser coincidência aquela garota desconhecida com as mesmas roupas de sua melhor amiga.
- Mana! - Guilherme correu até a pobrezinha, usando da sua mísera rapidez humana. Abraçou-a com bastante força e olhou para Manoel, com ira nos olhos, como se afirmasse que ninguém tocaria na garota. Ela, encolhendo-se no corpo do garoto, começou a chorar; o choro se intensificando até virar soluços.
- São gêmeos - Alex explicou, prevendo que Amélia estaria confusa. - Ela é a Márcia.
- Cê tá bem? Fizeram alguma coisa com você? - Guilherme afagava a irmã, ao mesmo tempo que a levava para longe dos blacks. - Te machucaram?
Os soluços ecoavam por toda a área de descanso. Todos assistiam calados.
- Não. Eu. Tô. Bem - dizia, entre uma fungada e outra. - Mas... - Ela tentou se acalmar. Segurou as lágrimas e olhou nos olhos do irmão. - O papai está morto - voltou a urrar.
O garoto fitou o nada, inexpressivo.
- O quê? - Largou a irmã, afastando-se dela com as lágrimas começando a ensopar sua vista. Olhou para Manoel, que acompanhava tudo, imóvel, próximo à entrada. A feição inexpressiva dando lugar ao mais puro ódio. - Desgraçado!
E por um minúsculo instante, Amélia viu Guilherme avançar contra o black usando de sua adaptação; tão veloz, tão rápido, que por um momento o garoto se transformou em um vulto diante de seu nariz, trazendo uma leve esperança de que conseguiria alcançar seu objetivo. Entretanto, o fenômeno não durou mais do que um minúsculo instante, e antes que ele pudesse tocar Manoel para desferir o primeiro golpe, a tornozeleira elétrica fez seu trabalho. Guilherme parou, já caindo no chão, sentindo os efeitos da eletricidade percorrer seus músculos, dando-lhe espasmos múltiplos, travando sua respiração. Humilhado diante dos assassinos de sua família; Amélia sabia bem o que ele estava sentido.
Ele não se levantou, mesmo após a tornozeleira concluir sua tarefa, apenas escondeu o rosto e ficou ali, deixando que os movimentos do seu tórax dedurassem o seu pranto. Manoel e os outros homens saíram; não falaram uma palavra sequer. O show se encerrou tão depressa quanto seu início. Só restava a Amélia e os outros consolar os gêmeos, até que a dor aprendesse a se comportar dentro do peito dos dois.
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