Preparativos

    — E então? Como estou? — quis saber Márcia, colocando-se em frente ao garoto com as mãos na cintura. A loira de cabelo joãozinho girou trezentos e sessenta graus, como em uma passarela de moda, para que ele tivesse uma vista total de suas roupas.

   Deitado no sofá de sua sala, Léo analisou as novas vestes da menina, cedidas generosamente por Clara, para que Márcia não precisasse usar as camisetas e os calções de seu hospedeiro. O tamanho era o mesmo, porém as roupas de Clara não combinavam em nada com o estilo mais delicado da garota alada. A melhor amiga de Amélia possuía um guarda-roupa repleto de cor e estampas — não passava despercebida mesmo se desejasse — e seu vestidinho de ares tropicais acabou por deixar Márcia, branca e inegavelmente loira, parecida a uma turista gringa.

   — Ficou bom! — o garoto mentiu, escondendo o riso que tentava se formar.

   Márcia se alegrou; seu sorriso ainda guardava uma inocência infantil, por mais que sua aparência já não condissesse com aquilo.  Ela esticou o pescoço para que ela mesma pudesse opinar:

   — Também gostei. É diferente de tudo que uso, mas acho que vou adotar o estilo. — Léo não era um excelente mentiroso, mas a garota também não parecia ter uma percepção muito aguçada das pessoas; caso contrário, não teria dificuldades em perceber o que ele realmente achava de sua aparência. — Ah! — ela mudou o assunto. — Posso usar o telefone? — Apontou para o aparelho, na pequena mesinha no canto da sala, entre um jarro de flores de plástico e fotos da família.

   — Claro! Fique a vontade.

   Ela agradeceu com um sorriso e correu em direção ao aparelho.

   — É rapidinho. Só quero ligar pro meu pai. Ele deve tá preocupado e eu preciso inventar alguma desculpa — explicou-se.

   Nos minutos que se seguiram, Márcia preocupou em acalmar o pai, criando uma história plausível de seu paradeiro e de seu irmão. Léo permaneceu deitado no sofá, focado na televisão ligada em um canal aleatório e ouvindo as justificativas de sua hóspede, ditas ao pai com uma voz embargada que fez o garoto se sentir mal. Durante todo aquele tempo, ele não havia se importando em conhecer a realidade da menina, em saber como era sua família, se estava triste em estar longe de sua casa, muito menos se poderia fazer algo para amenizar seu sofrimento.

    No fundo, questionava sobre seu egoísmo em sempre achar que sua dor era maior que a dos outros adaptados, como se ninguém mais tivesse que mentir para os familiares, temendo pela integridade das pessoas que tanto amavam. Ao ouvir a garota segurando o choro ao afirmar descaradamente para o pai que tudo permanecia bem,  ele percebeu que sua história era apenas mais uma em meio àquele turbilhão de acontecimentos; e sentiu-se ridículo, afinal, o que o fez achar que, com ele, as coisas eram diferentes, especiais? Estavam todos no mesmo barco, entretanto sua angústia era sempre maior que a de seus amigos, possuía, toda vez, uma importância singular; Léo se deu conta de que era realmente ridículo a forma como via as coisas e não pôde deixar de se perguntar qual seria a visão que seus colegas tinham de si. A sensação de repúdio de seu próprio jeito de pensar poderia ter sido ainda maior, caso as batidas na porta não o tivessem reanimado.

    Deixando a crise existencial de lado, ele correu até a porta para atendê-la. Estava um pouco nervoso, mas não era em consequência dos últimos instantes de autopercepção. Não havia motivo aparente para tal; o nervosismo, agora, fazia parte de sua personalidade, não era preciso muita coisa para que seu humor se alterasse. Talvez, pensou, a ansiedade fosse a culpada dessa vez. A ansiedade por ter que esperar seus amigos para a reunião que havia marcado naquela tarde, a mais importante dos últimos dias.

   Com um sorriso recepcionista na face, o rapaz abriu a porta, deixando que o vento frio da tarde chuvosa penetrasse o recinto. Porém, ao se deparar com Janaína, sacudindo o guarda-chuva para que escorresse a água, seu sorriso se desfez e sua animação se esfriou junto ao ar. A loira o observou durante um breve instante e logo se voltou para o guarda-chuva outra vez. O cabelo sacolejava com os movimentos brutos; sua cor se intensificava perante o cinza do dia e o elegante cachecol vermelho. Janaína era uma garota espetacular, precisava de pouco para permanecer bonita, mas seu comportamento hostil era o que a enfeiava.

   — Olá, Leonardo — ela disse, como se esperasse que ele tomasse a iniciativa de cumprimentá-la.

   — An, oi — Léo falou, em meio a um pigarro. — É… Entre! Por favor.

   — Obrigada. — Janaína entrou, observando a casa de cima a baixo. Seguindo-a visivelmente sem jeito, Léo acompanhou o olhar crítico da menina sobre a decoração e os móveis. Ele sabia que sua casa não era das mais feias, mas certamente a moça de nariz arrebitado conhecia dezenas de lugares mais belos e luxuosos.  — A Mônica ainda não chegou?! — perguntou ela, ao encontrar, na grande sala, apenas Márcia, que encerrava a ligação com pai, emocionada.

   — Devem tá chegando já — Léo respondeu.

   Ela bufou, levantando uma mecha de cabelo com o sopro. Colocou o guarda-chuva em um canto e se dirigiu para os sofás. Léo, inconscientemente, acompanhava cada passo seu. Era como se, desde o dia em que houvera o fatídico beijo, ainda no macabro centro de pesquisas, Janaína tivesse um certo domínio em seu corpo. Sentia que era vulnerável àqueles olhos de gruta e isso lhe amedrontava, tirava sua zona de conforto. Tinha a impressão que ela estava constantemente persuadindo sua mente, usando  de forma discreta sua adaptação, confundindo seus pensamentos, transformando a raiva que sentia por ela em um sentimento contra ele mesmo.

   — Cheguei! — A porta se abriu rapidamente, assustando o loiro de tal forma, que seu corpo se encolheu em meio à arrepios e a sensação de alerta. Era Pedro; o garoto (assim como Léo também fazia na casa do amigo) costumava entrar sem cerimônias. O menino também encostou seu guarda-chuva no canto da parede, sem se dar o trabalho de escoar o excesso de água no lado de fora.  — Meu Deus, que chuva é essa?! Não vai parar mais!  

   A entrada de Pedro teria sido normal — apenas uma das muitas vezes que tinha agido da mesma forma —, caso Léo não estivesse tão focado na visita mal-vinda sentada em sua sala. Mesmo com o susto, continuava a fitar Janaína da forma mais discreta possível, e poderia permanecer daquele jeito caso o assunto daquela reunião não fosse de tamanha urgência. Além do mais, Pedro, hora ou outra, acabaria por perceber os olhares sutis; e a conclusão em que chegaria, com toda certeza, não agradaria em nada o amigo.

   Pedro não viera sozinho; seus passos molhados eram seguidos pelos de Clara e Mônica. As duas riam de alguma piada, enquanto Mônica penteava o cabelo com os dedos, desembaraçando os fios molhados pela chuva. Léo balançou a cabeça, concentrando-se no motivo de todos estarem ali. Preparou o peito, sugando ar suficiente para explicar a todos o que se passava, contudo suas palavras ainda mudas foram cortadas por Clara, que, com um gritinho animado tipicamente feminino, pôs-se a falar:

   — Oh, meu Deus! Ficou ótimo em você! — ela se aproximou de Márcia, vidrada em seu vestido que, agora, pertencia a loirinha. Porém, a alegria demonstrada por Clara não transpassou para sua colega; Márcia permanecia triste e seus olhos, vermelhos e inchados. — Hei! O que houve?

   — Não é nada… Vou ficar bem. — Márcia arriscou um riso apagado.

   — Gente, por favor, prestem atenção aqui! — Aquela maldita falta de paciência lhe importunava a qualquer descuido. Léo se concentrou e reiniciou a fala, mais calmo: — É muito importante que entendam tudo, não quero que façam nada sem tarem cientes das coisas.

   — E a Camila? — Pedro interrompeu. — Ela não vem?

   Mônica se sentou ao lado da amiga, no sofá cinza e aveludado, onde havia espaço de sobra para os seis garotos, e no qual Pedro não tardou em pegar para si um pedacinho em que também pudesse se sentar.  Márcia e Clara permaneceram em pé, apoiadas no encosto do móvel. De onde estava, levantado e de frente para seus colegas, Léo poderia observar a expressão de cada um. Abaixou o volume da tevê; certificando-se de que nada iria irritá-lo.

   — Ela ainda tá trabalhando no sanatório, Pedro. Não quer sair de lá sem antes ter certeza de que a jornalista não tem mais serventia, acho que ela vai te explicar isso depois. Ela também sabe o que vou perguntar para vocês, foi ela mesma quem pediu essa reunião.

   — Tá me deixando nervosa… — declarou Mônica, em um misto de brincadeira e desabafo.

   — Calma, ouça com atenção. — Camila fazia falta em momentos como aquele. Certamente, a ruiva saberia explicar de um jeito mais confortável, entretanto Léo estava longe de ser alguém que trazia conforto. Pelo contrário, seu pavio curto não incomodava somente ele, mas sim a todos. — A pista do Tomás era verdadeira, o endereço realmente é de um centro de pesquisas. Não podemos perder tempo, eles estão agindo muito rápido.  A Camila ficou de pensar em uma forma de entrarmos lá. Não pareceu ser muito difícil, eles não estão tão preparados quanto os blacks do outro centro de pesquisas.

   — Como assim? — Márcia questionou, séria e concentrada.

   — A impressão que passa é que o lugar não foi feito para esconder os adaptados. Como se fosse improvisado, sem muita segurança. Talvez seja fácil entrar, mas não podemos contar com isso.

   — Ceis acha que é seguro invadir assim, com tanta pressa? — disse Janaína, empregando um tom de alerta que, para Léo, não ajudou em nada, apenas aumentara a tensão entre eles.

   — Não sei se é seguro… — admitiu, já estressado. — Mas isso não é o que importa agora. Nossos amigos estão lá, precisando da gente. Sem falar que, se não fizermos nada, a nossa hora vai chegar rapidinho, rapidinho. Hoje mesmo o Victor avisou que o Matheus também sumiu; mais um. — A sensação que lhe tomava ao fitar os olhos da loira enquanto argumentava não era boa, contudo era necessário passar confiança, como Camila havia instruído.  — Acho que todo mundo concorda que não tem como ficar parado, né?

   — A Amélia, pessoal! — lembrou Clara. — Ela precisa da gente!

   Léo deixou que um pequeno prazo de silêncio se instaurasse na sala; sentiu que todos precisavam analisar o plano, pois sabia que atacar os pesquisadores de forma repentina tinha seus prós e contras. Entretanto, não fora fácil permanecer quieto durante aquele tempo, fingindo manter uma calma que sequer existia.

   — E então?

   — Cara, — Pedro fora o primeiro a responder. — sabe que por mim não precisava nem tá perguntando, né? Tô super dentro.

   Léo sorriu; não esperava outra resposta, pois tinha a absoluta certeza que podia confiar no amigo. Diferente de Janaína, em que Léo não depositava confiança nenhuma. A loira, por sua vez, encarou a amiga e, segurando sua mão esquerda, afirmou, decidida:

   — Bem… Nós estamos fora.

   — Oi? — Mônica retirou a mão que a colega de tantos anos segurava. — Estamos fora?

   — A gente não vai entrar nessa encrenca agora, Mônica. Não precisamos disso. Não é você que quer tanto ter uma vida normal?!

   Mônica negou com a cabeça, com a face carregada de desapontamento. Não queria acreditar que sua melhor amiga poderia pensar apenas no seu próprio umbigo em uma situação como aquela.

   — É… Não precisa de briga, meninas — Clara interferiu, tentando apaziguar a discussão que se iniciava. — Mas eu tô dentro também — disse, sendo apressadamente emendada por Márcia:

   — Eu também.

   — Eu também! — Mônica assegurou, sem retirar o olhar incrédulo de Janaína. — Lógico que vou ajudar!

   — Mônica, isso é burrice…

   Parado em frente às duas, Léo permaneceu calado, apenas observando o desenrolar da pequena desavença.

   — Se cê quer ficar, fique. Mas eu vou ajudar. Só lembre que a Amélia não pensou duas vezes antes de ir salvar você e o Léo, quando precisaram. — Mônica possuía um quê de garota mimada, não era atoa que se dava tão bem com a loira sentada ao seu lado, entretanto também guardava um coração bastante generoso e empático.

   Já sua amiga, como todos sabiam de cor, não possuía tais qualidades invejáveis e Léo não se surpreendera em nada com sua decisão; sentira um alívio, até, pois significava que seu julgamento era correto.  Contudo, ele também sabia que Mônica era a única pessoa capaz de fazer com que Janaína voltasse atrás em alguma atitude. A história do beijo roubado no Centro de Pesquisas era uma prova disso; ele não tinha dúvidas de que Mônica tinha um dedo no ideia da Janaína procurar Amélia e contar a verdade. E não seria diferente ali. Janaína, vendo que a morena ao seu lado não iria entender seu ponto de vista, desistiu. Seu ombro caiu, junto ao soltar de um suspiro furioso. O olhar baixo, fixo em um ponto do piso.

   — Se a Mônica vai, eu vou.

   — Muito bom, cê pode ajudar muito a gente lá, Janaína.  — Léo não suportava a garota, mas seria hipocrisia dizer que ela não era de grande valia. E, naquele momento, não importava suas rixas; quanto mais aliados conseguisse, melhor seria. — Será amanhã a noite. Vamos entrar, salvar nossos amigos e sair. Sem grandes brigas, sem muitas mortes dessa vez. — A apreensão devia estar evidente em seu rosto, pois, ao observar seus amigos, todos estavam fechados e preocupados. — Vai dar tudo certo. — Forçou um sorriso. Apegou-se àquelas últimas palavras, como se fossem a única coisa que pudesse mantê-lo mentalmente são: — A gente vai conseguir.

...

Olá leitores! Desculpem pela demora, mas é porque era para o capítulo ser maior, só que resolvi fazer dois capítulos com o texto que estava escrevendo. A boa notícia é que o próximo está quase pronto graças a isso.

Bem... Deixem sua opinião sobre o desenrolar da história. O que estão achando? Lembrando que estamos apenas no começo de tudo.

Enfim... Espero que estejam curtindo. E espero que possamos conversar mais, pessoal! Vcs andam muito calados...
:( Kk

Até o próximo capítulo.

Vlw! ;)

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top