O portão

    Aquele dia tinha sido incrivelmente longo, de uma forma que Léo jamais pensou que um dia poderia ser. O relógio insistiu em prolongar as voltas que dava, como se soubesse da ansiedade que o garoto guardava. O tempo estagnara; até o momento em que Camila aparecera em sua casa, no fim daquela tarde, pronta e disposta a colocar o plano em ação. Somente então Léo percebeu que o tempo estava lhe guardando do que viria pela frente, a noite que se seguiria não seria a das melhores e qualquer instante a mais de preparo se mostrou bem vindo.

   Porém, como havia estupidamente desejado durante todo aquele dia, a hora de agir estava próxima e se aproximava em uma velocidade aterradora. Seu peito se comprimia a medida que o táxi avançava em direção ao centro de pesquisas e seu estômago revirava com a vontade crescente de possuir o tempo que tanto regeitara.

   Uma sensação ruim tomava todos dentro do veículo, até mesmo o motorista havia percebido a tensão entre os garotos; e certamente, pensou Léo, não estaria sendo muito diferente no outro táxi, que vinha logo atrás com Camila, Pedro e Márcia. Léo repassava as ideias da ruiva, enquanto imaginava as melhores e as piores coisas que poderiam acontecer. Eram muitas hipóteses, e quanto mais ele tentava se preparar para elas, mais surgiam novas hipóteses.

   O céu limpo, com uma lua apagada pelas luzes da metrópole, destoava do vento úmido que entrava pela janela aberta. O barulho externo parecia distante da realidade; a vida havia perdido o sentido durante aquela sexta-feira. Ninguém fora capaz de agir naturalmente durante as horas de espera, não eram estúpidos para subestimar aquela situação.

   — Parece até que tamos indo pra um funeral… — Mônica tentou quebrar a tristeza que tinha se instaurado, porém o comentário não surtira efeito.

   Pelo retrovisor, Léo observou as três garotas no banco de trás; Clara olhava para fora, para as lojas que passavam por eles, e Mônica e Janaína fitavam uma a outra, como se conversassem com os olhos. A ligação entre as duas parecia tão forte quanto a que ele possuía com Pedro.

   — Isso é loucura… — Janaína  cochichou, contudo alto o bastante para que todos ouvissem. Ainda não estava conformada com a decisão que Mônica tinha tomado. A todo instante balbuciava pequenas frases de pessimismo, sem perder as esperanças de que poderia fazê-la mudar de opinião.

   Mas o olhar de decisão da morena permanecia vivo em seu rosto e estava longe de desaparecer. Mônica segurou a mão da amiga, acalentando-a da maneira que podia.

   — Vai dar tudo certo — falou, sussurrando, porém antes que pudesse terminar sua fala, os fios loiros de Janaína já estavam chacoalhando com o balançar da cabeça em negativa.

   — Ainda dá tempo da gente voltar — ela rebateu; o que fez Léo revirar os olhos de onde estava.

   Mônica não respondeu, não adiantaria em nada argumentar, aquilo tinha sido conversado e reafirmado dezenas de vezes durante todo aquele dia e a decisão não mudaria ali, a alguns poucos quilômetros do confronto.

   — E então? — o taxista cortou o silêncio, após alguns minutos. — Aquela região não é muito frequentada, ainda mais a noite. — Referia-se ao complexo industrial para onde se dirigiam. — O que vão fazer lá?

   Léo sorriu. Com todas as mudanças que o projeto havia causado, uma coisa permanecia como antes: eles ainda eram meros adolescentes aos olhos da sociedade — coisa que até ele se esquecia de vez em quando. E nada mais normal que questionar o motivo de crianças estarem indo para um local tão isolado como aquele complexo. Afinal, como adolescentes, eles deveriam estar em casa, preocupado-se apenas em terminar de ler a famigerada Carta de Caminha para a aula de literatura.

   — É uma festa… No antigo trabalho do meu pai — respondeu ele, tão casualmente quanto a situação pedia.

   — Uma festa num frigorífico?! Esse povo chique inventa cada moda! — O taxista riu, antes de acelerar o carro para ultrapassar um caminhão e adentrar na avenida que dava acesso ao bairro industrial. — O trânsito a essa hora é o inferno. Mas… Então por que não estão indo com seus pais?

   — Vamos mais cedo. Precisamos colocar algumas coisas em ordem lá. — O táxi contornou uma rotatória e seguiu pela rua onde, não muito longe, encontrava-se o frigorífico. O frio na barriga se intensificou, crescendo à medida que os metros se findavam. — Festas sempre dão trabalho…

  O táxi parou. E o desligar do motor soou como  uma sirene de guerra para Léo. Não muito  a frente, o centro de pesquisa fantasiado  de frigorífico permanecia como da última vez: quieto e aparentemente desprotegido. Era uma ilusão, tanto ele quanto os outros sabiam que ali dentro se encontravam dezenas — senão centenas — de blacks, como marimbondos dentro de sua caixa, esperando apenas que o sinal de alerta fosse aceso. Mas o fato de não haver segurança externa era uma ótima vantagem, não poderia deixar de agradecer ao destino por esse presente.

   Sem delongas, os taxistas foram pagos e despachados, deixando ali, sobre a estrada que os levava para uma briga sem destino, apenas os rostos  visivelmente tensos dos sete garotos. Era difícil separar o frio produzido pela umidade do que vinha com o medo do inesperado. A iluminação era falha, alguns postes pingavam em pontos distantes, o que dava um toque sombrio às suas silhuetas.

   — Então aqui é o bendito lugar…? — Pedro se aproximou do amigo; nem mesmo ele conseguia permanecer inabalado​ pela situação, o cenho franzido deixava notório isso. — Não acha vazio demais?

   Léo observou mais uma vez a entrada do centro de pesquisas, buscando qualquer detalhe que ainda pudesse ser novo. Apenas dois guardas distraídos na portaria, tagarelando sem parar, alto o suficiente para que pudessem ouvir de onde estavam suas risadas.

   — Como da última vez — Léo afirmou, vestindo a desconfortável fantasia de confiança. — Tudo em perfeita ordem.

   — Tá, mas e agora? — Clara questionou. Com a respiração já alterada, olhava vidrada para os guardas desatentos.

   — Agora a gente precisa desativar o sistema de segurança, como fizeram no último Centro. Com o sistema desligado, será mais fácil entrar e sair. — Enquanto falava, Léo observava Camilla se preparando. A ruiva, séria, checava a munição de seus dois xodós, amarrava os cachos em um coque firme e despedia-se de seu namorado. — Ficaremos esperando o sinal.

   Camila confirmou com a cabeça, antes de dar as últimas instruções:

   — Fiquem atentos, por favor. Caso eu não volte, não permaneçam aqui e não tentem entrar — ordenou, fitando Pedro. — Quando o sinal for acionado, talvez demore um pouco para que a gente se encontre lá dentro, mas cada um já sabe o que tem que fazer… Clara, — aproximou-se da garota, entregando-lhe um de seus revólveres.  — cê é a única que  não possui maneiras de se defender, acho que vai precisar. — A pequena garota agradeceu sorrindo e analisando o objeto; as aulas de tiro ao alvo que tivera dentro do Centro de Pesquisas viriam a calhar naquele momento. Camila inspirou, buscando a concentração necessária. — Vai dar tudo certo​. — Um último beijo em Pedro e um sorriso para os outros; e, em um piscar de olhos, ela desapareceu.

   — Boa sorte… — desejou Mônica, encolhida junto a Janaína, fugindo do frio úmido da noite.

   Entretanto, não houve resposta; o silêncio só não era total, pois alguns carros passavam ao longe. O cricrilar dos grilos os mantinha consciente de que aquele ainda era o mundo real. Camila já estava indo em direção a entrada e restava-lhes a dura tarefa de esperar o momento oportuno.  

   Léo aproximou de Pedro, envolvendo o amigo com o braço sobre seu ombro. Todos estavam nervosos, isso era incontestável, contudo Pedro tinha razões bastantes para ser o mais preocupado. O pobre garoto não tirava os olhos do portão, certamente desejando acompanhar os passos de sua amada; saber se ela havia conseguido entrar ou se ainda estava se aproximando do frigorífico.

   — Ela sabe se virar, mano.

   — Eu sei disso — concordou, abaixando o olhar. — Mas alguma coisa dentro de mim ainda não sabe. Essa sensação ruim tá me consumindo desde ont…

   Um grito, vindo junto a um pequeno clarão, interrompeu seu desabafo; um grito seco, afiado como uma lâmina virgem, cortando a noite e produzindo um arrepio, que percorreu as vértebras de Léo antes mesmo que percebesse o que acontecia. Em uma velocidade impressionante, todos se voltaram para o portão do frigorífico, antes que o clarão se dissipasse por completo. As pupilas prontamente dilatadas, a procura de respostas. Não tardaram em aparecer.

   Correntes elétricas saiam do chão, de diferentes lados, concentrando todas em um pequeno ponto, no centro da rua pacata. Em Camila. A ruiva contorcia-se em espasmos musculares, enquanto as últimas correntes percorriam a distância entre seus pontos de origem e seu corpo trêmulo. Não conseguiu manter a adaptação ativa; sequer conseguiu se manter em pé. Desmoronou no asfalto gelado, o corpo mole e indefeso, como jamais Léo imaginou vê-la um dia.

   — Camila? — Pedro começou a dar pequenos passos em direção a namorada, que logo se tornaram passos longos e, por fim, uma corrida desesperada. — Camila!! — gritava, afastando-se mais e mais do restante da turma,  que continuou parada sem reação.

   — Meu Deus, o que houve? — Márcia indagou, aflita.

   Mas Léo só tinha olhos para seu amigo, correndo além do que suas pernas eram capazes de correr, e para os guardas do portão. Os guardas… Léo estudou os dois homens. Estavam em pé, observavam o corpo de Camila caído no chão, conversavam com  alguém pelo telecomunicador  e riam. Estavam rindo.

   — Filhos da puta — Léo esbravejou, começando a correr em direção a Pedro. — Pedro! Para!! Pedro, é uma armadilha! Eles sabem que estamos aqui!

   Dezenas de luzes se acenderam e a estrada, antes a penumbra, se tornou tão clara quanto ao sol de meio-dia. Pedro parou; sua feição perturbada se repetia em todos os outros. Léo sentia o coração bater contra sua caixa torácica e a mão tremer autonomamente. Havia luzes para todos os lados, ao ponto de cegá-los.

   — Precisamos sair daqui!

   O sinal de alerta soou e um enxame de blacks surgiu  pelo portão, como vespas negras. Sedãs surgiram pelo mesmo caminho que haviam feito para chegar até ali, cercando-os de todos os lados.

   — O que é isso?! — Clara não sabia mais para onde olhar.

   — Permaneçam parados! — uma voz vinda de algum alto-falante reverberou pela rua, anunciando o que todos tanto temiam. — Vocês estão cercados.

   — O que vamos fazer? — Os olhos de Pedro imploravam por uma resposta. A urgência pairava no ar, como uma neblina corrosiva e densa. — Léo!

   E por  um instante, toda a realidade se desfez aos olhos do loiro. A adrenalina alimentando o inevitável, o cérebro suplicando pelo óbvio, o tecidos já estavam preparados antes mesmo que chegasse a uma conclusão. A transformação nunca fora tão desejada pelo seu espírito, jamais fora feita com tanta rapidez e afinco. Era como se a fera estivesse ali o tempo todo, a espreita, esperando o momento de aparecer.

   — Vamos lutar! — anunciou, em um misto de voz e rugido.

   O momento havia chegado.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top