O cerco
Por mais que ninguém ali presente tivesse medo da noite, a negridão que englobou a casa não deixou de eriçar os pelos, nem de elevar o estado de alerta. Era como estar na porta do inferno, Janaína interpretou; onde as sombras ganhavam força, os pecadores lamentavam suas feridas — assim como os blacks lesionados — e os demônios espreitavam, preparados para atacar.
Aquela sensação, com toda a certeza, era a pior; a sensação de não saber o que esperar dos próximos segundos, de estar a mercê do destino, como numa correnteza que antecede a queda de uma cachoeira. Queda essa que não tardou em chegar.
Enquanto a loira tentava adaptar a visão para a escassez de luz, gritos ecoaram pela casa, sobrepondo os lamentos dos blacks que se encontravam vivos no cômodo ao lado. Os gritos eram de mulheres e viam da cozinha, no outro lado da casa. Só então Janaína se recordou de que, além de seus pais, haviam empregadas alí, que provavelmente já estariam desesperadas àquela altura do campeonato. Contudo, aqueles gritos eram de susto, de total surpresa.
— Estão vindo pela cozinha! — Janaína anunciou alto, para que todos se antecipassem para o ataque iminente.
Acabando com suas previsões, contudo, o que se seguiu antes da investida vinda da cozinha, foi uma batida na porta de entrada da casa. Algo extremamente pesado se chocou a porta, que, cumprindo o seu papel de forma majestosa, não cedeu passagem no primeiro momento. Mas outra pancada veio logo em seguida, escancarando o acesso para quem quisesse entrar. A iluminação externa do condomínio transpôs a porta, deixando tudo sob penumbra.
Os primeiros blacks surgiram com armas em punho, ansiosos para o novo assalto. O segurança, cumprindo as ordens da jovem patroa, não esperou receber o primeiro tiro para que apertasse o gatilho em direção aos mascarados. Pedro fez o mesmo, aproveitando das sua vantagem de não precisar se aproximar de seus adversários.
A defesa era feito com destreza pelos garotos, mas Léo não se sentia seguro ali. Sua audição aguçada de felino lhe anunciava que o perigo se aproximava, vindo da cozinha. Caso chegasse até as salas, estariam cercados; a ratoeira se fecharia por completo.
— Precisamos sair daqui… — disse, para si mesmo, para, logo em seguida, repetir em alto e bom som: — Precisamos sair daqui! — Olhou a saída que dava para a piscina. — Pros fundos! Vamos pros fundos!! — fez sua voz grave reverberar pelos cômodos.
— Vamos! — Victor se fez ouvir, em meio ao estrondo dos disparos.
A falta de luminosidade deixava tudo mais complicado, principalmente para Victor, Pedro, Janaína e o segurança, que, ainda na sala de estar, tinham que se defender dos blacks que entravam enquanto caminhavam em direção a saída do quintal. Não podiam dar as costas aos inimigos, mesmo que isso significasse esbarrar em tudo o que era tipo de obstáculo. As cenas de morte que preencheram os últimos minutos voltaram a se repetir sob a meia-luz; Pedro fazia de suas mãos uma metralhadora de espinhos, que, de tão negros, brilhavam mesmo com a claridade precária. O segurança, por sua vez, gastava comedidamente as suas balas, com tiros certeiros que confirmavam a qualidade de seu trabalho.
Com grande custo, alcançaram Sandro e Léo, e transpuseram o caminho para fora no instante em que os blacks que adentravam pela cozinha chegaram a sala, prontos para fecharem o cerco. Eram muitos homens, mas, mesmo com a vantagem, a emboscada tinha falhado.
Era o que Léo pensava enquanto saia para o jardim. Contudo, suas suposições se mostraram frustradas nos primeiros metros que percorreu. O cerco não tinha sido desarmado; pelo contrário, se fecharia ali, sob a luz do luar. Rapidamente, os jovens formaram um círculo, para que pudessem se defender do que estava por vir.
— É hora de se entregar, pacientes 10, 11, 15, 17 e 21 — Manoel disse, prostrado em pé na beira da piscina. Vestia as roupas características de seu bando, diferenciando, somente, na ausência da máscara. Tinha coragem e confiança o suficiente para que não temesse mostrar o rosto. A fera sentia emanar do black comandante a mesma energia ruim que transpirava de Mirna e de seu tio Paulo. — Chega de brincar, não? — indagou, sarcástico.
— Quero só ver… — Léo retrucou, voltando ao seu estado humano enquanto falava. — vocês explicarem essa história pro mundo. Não vai ter mais historinha que vai fazer eles acreditarem em vocês!
Lucas riu. Estava ao lado do comandante, já transformado no canídeo.
— Coitado do nerdzinho, ele realmente tá achando que fez um belo ato de heroísmo… — zombou o animal, com a marcante voz áspera, que causava asco em Léo.
O garoto olhou em volta. Estava mais claro ali, o que possibilitou que ele visse o paredão de homens que os rodeava sem deixar sequer uma fresta por onde pudessem escapar. Ao lado de Manoel e do lobisomem em que Lucas se mutava, também estavam João e Tomás, ambos com as adaptações inativas.
— Cê não achou que uma pesquisa desse tamanho iria ficar escondida pelo resto da vida, achou? — Manoel encarnou o papel que tio Paulo tanto gostava de atuar: o do chefe poderoso e sem piedade. — Vai ser até mais fácil fazer as coisas sem ter que ficar limpando a sujeira depois. — Levantou as mãos, apontando para a toda a circunstância. — Não estaríamos aqui se não fosse pelo seu empurrãozinho. Parabéns, Leonardo.
Mesmo sabendo que as palavras do comandante eram proferidas com o intuito de atordoá-lo, o garoto não pôde deixar de estudar aquelas informações. Já não tinha tanta certeza de que fizera o correto ao aparecer para a televisão. Diante de seus adversários, do cansaço de seus amigos e da sangria que tomava o lado de dentro da casa, suas decisões pareceram as piores que podia ter tomado.
Léo observou os blacks, todos com as armas de tranquilizantes nas mãos e as de fogo na cintura. Observou João, que, tão maluco quanto seu melhor amigo, mostrava seu aparelho em um sorriso repleto de maldade. Por último, analisou Tomás e sua inseparável ambiguidade; o olhar caído, a feição séria, como se desconfortável em se pôr naquela situação, mesmo sendo a situação que ele mesmo escolhera estar.
— Sandro. Victor… — Lucas chamou. — Parem de lutar. Cêis não fazem parte desse grupinho de cabeças-duras. Cêis sabem que o Projeto é forte demais. Temos que aceitar que a nossa vida agora é no centro de pesquisas. Já passou da hora de vocês aceitarem. Não há como sair daqui, estamos em maioria.
— Cê só se esqueceu de uma coisa, meu brother. — Victor deu um passo à frente, sorrindo. — Eu sou vários.
Todo cheio de si, o rapaz iniciou a brotação de suas cópias com uma agilidade que Léo admirou-se ao ver; quatro de uma única vez, nascendo na direita, esquerda, no dorso e na frente, cada uma de um lado. Era como galhos que saíam do tronco principal, desprendendo-se cada vez mais, até que novos indivíduos estivessem inteiramente construídos. E depois dos primeiros quatro, outros quatro começaram a sair sem espera.
— Atirem! — Manoel ordenou, dando o aval para que seus homens se posicionassem para a saraivada de sedativos.
Nos segundos que se sucederam antes dos primeiros disparos, os adaptados se colocaram a ativar seus dons. Léo voltou para seu estado felino, ao passo que via Lucas vir em sua direção, sedento por mais uma revanche. Janaína girou a cabeça no rumo dos guardas mais próximos, ativando a sua incandescência o mais forte que sua mente permitia fazer. Como resultado de seu esforço, viu três de seus raptores virarem a mira contra seus próprios companheiros, presos a hipnose, e começarem a atirar o sonífero. Os soldados ficaram desnorteados com a rapidez com que a garota tinha possuído a mente dos amigos; não sabiam mais para onde atacar, pois se virassem as costas para os hipnotizados e focassem em derrubá-la, acabariam sedados ou mortos.
O muro de blacks foi atingido em outras partes além do perímetro próximo a Janaína. Pedro logo iniciou a tempestade de espinhos, encarregando-se de acabar com os blacks mais distantes, que se posicionavam além da piscina. E enquanto suas agulhas atacavam pelos ares, as cópias de Victor iam por terra, recebendo dezenas de dardos tranquilizantes em vão, já que estariam transformadas em cinzas em poucos minutos. Era uma situação perfeita para os garotos, que atacavam livremente, sem necessitarem de se defender.
Sob o céu que se enchia de espinhos e o gramado que começava a tingir-se de escarlate, Léo e Lucas se chocaram como dois animais famintos. As patas traseiras arrancavam tufos de grama, e as dianteiras certificaram de que aconteceria o mesmo com tufos de pelo. As bocas se contorciam, em busca de uma forma de alcançarem os pescoços, porém a força descomunal das duas feras também auxiliavam-nas na defesa. Rosnados e rugidos ecoavam para além do condomínio, alarmando o coração de todos ali. Não adiou para que começassem a rolar, engalfinhados um ao outro, pelo chão coberto de gramíneas e pelo piso que margeava a piscina. O que quase atrapalhou as cópias de Victor, que corriam desgovernadas para de encontro aos homens de preto, loucos para cumprirem a mais nova ordem de sua mente progenitora: derrubar os blacks e roubar-lhes as armas.
Seguiam sem parar, sendo bombardeados pelos tranquilizantes, mas sem darem muita importância para aquele fato. Cada qual escolhia um soldado e partia para cima, com socos, pontapés e o que mais fosse preciso para que a ordem fosse cumprida com precisão e velocidade. Estavam lidando, contudo, com homens treinados, que tinham vantagem na luta e que não se entregavam antes que todas as forças estivessem esgotadas. Entretanto, por mais que a vitória para as duplicatas não estivesse garantida, já faziam um grande serviço mantendo os inimigos ocupados. E eram muitas cópias, Sandro analisou; já passavam de vinte indivíduos idênticos ao colega ao seu lado, e mesmo assim Víctor continuava rente na missão de criar mais quatro dos seus.
Sandro olhou em volta, para a guerra que estava finalmente instaurada, e percebeu que as coisas só se encerrariam quando um dos lados estivesse com o triunfo em mãos. Mirou Manoel, que, da beira d'água, dava as ordens e observava todo o desenrolar. O garoto sabia que sem ele os outros blacks não saberiam como prosseguir, o comandante era um alicerce importante para seus adversários, e precisava ser derrubado.
— Victor! — ele chamou, despertando a atenção do rapaz topetudo, para pedir logo depois: — Ataque o chefe!
Concordando no primeiro instante, Victor colocou suas novas cópias para cumprir a tarefa, enquanto Sandro punha-se a correr para a sua batalha. Sem muita vontade de escolher adversário, rompeu uma batalha com o primeiro homem que viu pela frente, atirando-se em seus costas e buscando uma maneira de arrancar-lhe a máscara.
— Moleque disgramado! — o black exclamou, com um tom que mesclava raiva e medo, enquanto largava a arma e brandia de forma descontrolada.
Porém Sandro estava fixado em seu dorso; puxava a máscara com todas as forças, mas a posição não o favorecia. A mão estava úmida como nunca antes, podia sentir a toxina se aglomerando em sua palma, criando gotículas. Já conseguia imaginar os efeitos que aquela dose de veneno causaria no pobre coitado. Contudo, os efeitos ficaram em sua imaginação, apenas. Sandro viu todo o seu plano frustrado quando uma grande mão escamosa e com garras cortantes o agarrou, puxando-o para trás.
Tomás, usando sua adaptação, segurou o tronco do rapaz como se seu peso fosse ínfimo e o jogou pra longe. Lançado ao ar como um travesseiro, Sandro teve tempo, somente, para se preparar para o pouso pouco confortável; chocou-se com arbustos espinhosos que ornamentavam o jardim, os quais o presentearam com arranhões e rasgos em sua roupa. Tentando ignorar a dor e alimentando-se dela ao mesmo tempo, ele se ergueu devagar. Fitou o lagarto, que o esperava a alguns metros a frente; a cauda balançava sinuosamente, a língua bifurcada era exposta com frequência, as escamas brilhavam com a iluminação deficiente. Era um ser magnífico, surpreendente, mas Sandro só conseguia encará-lo como um rival naquele momento. Um rival que precisa ser abatido.
Disparou em direção ao réptil gigante, como se nada mais importasse. Ignorou os gritos, as ordens, os rugidos. Não interessou o que aconteceria com a batalha de Léo e Lucas, que se embolavam ao seu lado, muito menos com os olhos esplendorosos de Janaína, que obrigava os blacks a lutarem contra sua própria equipe. Tudo que queria era alcançar seu oponente.
Enquanto corria, viu Tomás lançar em sua direção dois grandes jarros de barro, os quais serviam de canteiro para flores. O jarros se assemelhavam a duas bolas de canhão, pronta para destroçar o que se posicionasse no caminho. Mas, apesar das escoriações, Sandro era ágil o bastante para se esquivar dos objetos e continuar o ataque. Nunca tivera medo de Tomás, não seria ali que passaria a ter.
Os jarros lançados seguiram adiante. Um se chocou aos mesmos arbustos onde Sandro havia aterrissado, enfiando-se em meio aos galhos espinhosos e desaparecendo. O outro, porém, encontrou um local mais trágico. Atingiu Victor, o original, que, centrado demais em produzir mais exemplares de si, não enxergou o perigo que se aproximava. A pancada fora forte; terra, cacos de cerâmica e flores voando para todos os lados. O garoto rolou, desacordado.
Contudo, os clones estavam em pé, e permaneciam ativos e empenhados nos confrontos. Eram seres semi-independentes, que, após dadas as ordens, não necessitavam da inspeção da consciência central; prosseguiam como se nada tivesse ocorrido, enquanto a energia restante desse. Tombavam os blacks, roubavam-lhes as armas e usavam-nas a seu favor, sem se apegarem ao detalhe de que arma adquiriam; tanto fazia se era um resolver de dardos ou de balas.
Manoel continuava tendo que se desvencilhar dos ataques dos quatro clones, em uma luta que encontrava-se em desvantagem, apesar da superioridade de sua técnica. O treinamento do Projeto era pesado, todos os soldados passavam por um teste de habilidade minucioso e intenso; afinal, lidavam com armas vivas, os adaptados eram a aposta de metade do planeta para o aprimoramento dos exércitos. Contudo, a experiência com testes pré-programados era totalmente inútil quando se deparava com as cópias de Victor, que não seguiam um padrão de ataque, muito menos uma sequência lógica nas atitudes. As cópias estavam alheias a quaisquer vícios de comportamento que humanos comuns costumavam ter, o que as tornava imprevisíveis. E eram quatro oponentes, que não demonstravam cansaço, que não se importavam com os golpes levados e que faziam de tudo para ferí-lo.
Tentou usar os dardos, mas quando percebeu que o sedativo não teria o efeito desejado, buscou o revólver na cintura. Entretanto, no curto espaço de tempo no qual sua atenção se voltara para a sua bainha, as réplicas se juntaram para golpeá-lo. Com o golpe, o comandante caiu, deixando escapulir a arma de suas mãos. Majestosamente, o objeto escorregou pelo piso circundante à piscina, terminando em um belo mergulho nas águas cristalinas.
— Filhos da puta! — ele praguejou, enquanto libertava-se dos oito braços que o envolvia. Viu-se, então, numa situação que não imaginou encontrar: desarmado e sem uma estratégia de combate. Precisa pensar. E rápido!
Movido pela necessidade, o black descobriu um jeito de improvisar no minuto em que bateu o olho sobre as cadeiras de praia, ainda dispostas, milagrosamente, de forma organizada em suas devidas posições. Manoel se esquivou dos garotos e saiu correndo em direção aos móveis, chutando a mais próxima como se o sucesso da missão dependesse daquilo. O móvel, que era feito integralmente de madeira, cedeu com a força do impacto; transformando-se em gravetos e lenha em um piscar de olhos. Abaixou de forma rápida quando percebeu que as duplicatas investiam em um novo ataque; apanhou um pedaço de madeira — um que a rachadura havia formado uma estaca desuniforme —, esperou que se aproximasse com toda a imprudência típica e cravou-o na barriga do primeiro que o alcançou, fazendo um furo com extrema facilidade, aprofundando o buraco do umbigo. A cópia, pega desprevenida, o encarou com uma expressão de dúvida; e como se fosse um vampiro das histórias do cinema, se desfez em cinzas diante do instrumento sagrado.
Manoel sorriu, agarrando novamente a estaca.
— Só faltam três — ponderou, otimista, e partiu para cima, em busca de vingança pelo revólver perdido.
No ápice em que se colocou a atacar, as outras duas cadeiras de praia às suas costas também foram transformadas em gravetos, esmagadas pelo peso de Lucas quando Léo o derrubou de costas, desferindo mordidas por onde a boca alcançava. O lobo, por seu lado, rosnava e tentava se proteger como podia; as garras deslizavam como gilete na couro espesso do inimigo, talhando fatias generosas de derme e pelo, o que fazia minar sangue de dezenas de regiões.
Sentindo o peito arder com os cortes, o felino se afastou para verificar seu estado; o pelo amarelo manchado de vermelho, grudado pelo sangue que secava rápido com o calor do verão.
Aproveitando-se do momento, Lucas o golpeou. Os dentes à mostra deixavam claro o ódio que sentia e o desejo de morte do qual se nutria. Léo cambaleou para trás, parando apenas quando seu tronco se apoiou em uma das palmeiras-jerivá que sombreavam as tardes do local, entortando o tronco da planta com a colisão. Sem titubear, a fera se recompôs em um salto, voltando a se atrelar com o outro animal. Uma muvuca de unhas, dentes e saliva, em movimentos tão velozes que os seres se tornavam vultos; um cinza e outro amarelo.
Enquanto digladiavam, presos ao ímpeto de vencer, acabaram por tropeçar. A queda, contudo, fora um mergulho dentro da piscina. Apesar disso, a luta não esfriou. Continuaram, com a água a bater em seus troncos, atrapalhando os movimentos. Rapidamente, o líquido cristalino começou a ser sujado, pintando-se de sangue, pelos, folhas e grama. O que antes parecia um espelho, refletindo a lua e o ambiente, mais lembrava agora uma enchente, com a água encardida extravasando para os lados.
Com as garras travadas, Léo atingiu o focinho do canídeo, para receber um soco de revide logo em seguida. Mas o garoto não estava disposto a permanecer naquela enrolação por muito tempo. Diferente de Lucas, o qual Léo sabia que se divertia com o enfrentamento e via a situação como uma forma de se autoafirmar, ele não encontrava graça na rixa que tinha sido criada entre os dois. Tudo que o loiro desejava era salvar seus amigos, deixar sua mãe longe dos constantes massacres e voltar para a sua vida normal de outrora. A verdade era que estava cansado de tudo aquilo; exausto com o jogo de tabuleiro, no qual sua vida era apenas mais uma peça sem grande importância. Era assim que enxergava a situação, e o irritava ver Lucas agir como se a vida estivesse seguindo o curso mais natural possível.
Possesso pela pura emoção de desânimo, ele saltou sobre o lobo, derrubando-o e o levando para baixo da água. Jogou o peso do corpo para cima do adversário, para impedir que se levantasse e prosseguisse com aquela amostra de superioridade. Lucas, por outro lado, percebeu de forma ligeira as intenções do felino, o que o levou a chacoalhar o corpo para que se soltasse. As ondas aumentaram de tamanho, a água se tornou mais turbulenta. Contudo, Léo seguiu firme na sua decisão; manteria o rapaz preso, submerso, enquanto fosse necessário.
Os segundos foram passando. Vinte, trinta, quarenta… Os movimentos de Lucas foram ficando mais raros, foram perdendo a força, até que cessaram por completo. Léo agradeceu pela turvação da água, que o poupara de ver o desespero do rapaz. No instante certo, arrastou-o para fora da água. Desacordado, havia voltado para a forma humana; o corpo repleto de machucados, as roupas rasgadas e maltrapilhas, como Léo também costumava ficar após uma transformação.
Largando o garoto para o lado, pouco se importando, no fundo, com a sua saúde, Léo verificou o quadro das coisas ao seu redor. O que viu foi um jardim irreconhecível, com mais gente caída do que em pé. Porém, acima de todo o caos, o que prendera sua atenção fora o que aconteceu ao seu lado, com seu melhor amigo.
Pedro permanecia atento em debilitar ao máximo o exército de blacks, e fazia o trabalho com uma dedicação que era de encher os olhos. O seu foco, entretanto, foi o motivo de sua queda. Não percebeu que estava sendo cercado por João, que aproximava-se sorrateiramente com seu ferrão peçonhento munido para o bote. E aconteceu em um relance, como um verdadeiro escorpião faria; a cauda artrópode era cumprida, dando a possibilidade de um golpe a média distância. Pedro encerrou sua ofensiva, sentindo a repentina dor da ferroada, que não demoraria a se agravar para uma paralisia muscular. Diante da cena, Léo foi em direção a João, pronto para vingar a derrota do parceiro, apesar de encharcado e cansado. Contudo, com o garoto escorpião a tática precisava ser diferente; aproximar significava se expor ao alcance do ferrão, a cautela era crucial.
O cansaço tinha, também, chegado para Manoel, que, com grande destreza, enfiava a estaca no último dos quatro clones que tinham lhe dado trabalho. Apreciou, ofegante, a pele do rapaz ganhar uma textura arenosa e converter-se em cinzas. Apoiou-se no chão, com o tronco curvado, para recuperar o fôlego perdido. O descontentamento escorria de seus poros, juntos ao suor, ao perceber que aquele confronto estava longe de ter saído como o planejado. Era duro admitir que os soldados do Projeto não possuíam a qualidade necessária para tais missões, que acabavam fracassadas com frequência. Mais duro ainda era aceitar que a culpa era sua, que insistia em tentar uma captura sem mortos.
Todavia, nem tudo estava arruinado. Não ainda.
— Armas de fogo! — esgoelou-se ele, para seus homens. — Armamento de fogo agora!
Não haviam mais tantos soldados para ouvirem seus comandos, alguns gatos pingados, apenas, mantinham-se ocupados com as sobras das cópias de Victor, enquanto outra meia dúzia permanecia no encalço de Janaína.
A garota e seu mais novo escudeiro, o segurança, junto a dois blacks hipnotizados, tentavam abater os soldados que, escondidos atrás da mureta da área da churrasqueira, conseguiam resistir ao desenrolar da luta. O segurança tinha uma excelente pontaria, e aproveitava do fato de que o lado oposto evitava o uso de balas. Mas aquela situação se inverteu com a nova decisão de Manoel, ao dar permissão para que ferissem fatalmente os adaptados.
Janaína e o segurança assistiram a primeira ofensiva perigosa dos blacks, que atingiram seus companheiros hipnotizados em uma atitude imoral e fria. Os dois homens caíram, tendo as vidas esmaecidas aos poucos. O segurança tentou atirar; não podia permitir que ganhassem confiança, pois, do contrário, ele e a menina seriam duramente fuzilados. Estavam, diferente dos invasores, em local aberto, no meio do amplo gramado. Contudo, a sorte pareceu abandoná-lo no momento mais decisivo. Apertou o gatilho várias vezes, negando-se a acreditar no que acontecia.
— Minha munição acabou… — explicou para Janaína, com a voz abarrotada de preocupação.
Apesar disso, seus olhos acharam a solução no segundo seguinte, na cintura dos blacks que tinham acabado de morrer. Agaixou de forma ágil para pegar a arma do corpo mais próximo. Precisava apenas de uma fração de tempo para se armar. Porém, como se para afirmar que a sorte não o ajudaria mais, não teve o tempo desejado.
Enquanto se abaixava, um dos mascarados se levantou, pegando Janaína de surpresa, sozinha e desprotegida. Ergueu-se com o revólver em punho, pronto para alvejar.
Atirou.
Mas seguindo o padrão de rapidez dos acontecimentos daquela noite, algo surpreendente ocorreu. Janaína vislumbrou o segurança se levantar no susto, como se tivesse percebido o que sucederia a ela, e se colocar a sua frente. Os braços abertos tentaram ocupar uma maior área; estava realmente disposto a servir de escudo para salvar a filha de seu patrão.
O projétil não alcançou a loira. Foi barrado pelo corpo do homem, que, com um curto gemido de dor, segurou a postura durante alguns segundos, certificando-se de que não haveria outro disparo. Porém, não suportou por muito tempo e logo caíra, sentindo o enfraquecer gradual.
Janaína também se deitou, tomada por um sentimento que não imaginou sentir tão cedo novamente. As cenas da morte de Mônica voltaram a assombrar sua memória, levando-a para um estado de desespero e medo. Olhou em volta, os blacks saiam do esconderijo e andavam em sua direção, cautelosos. Fitou o outro lado, onde, em um canto, Léo rodeava João em busca de uma posição para atacar, como verdadeiros leões fariam, e Sandro montava no réptil gigante, procurando uma forma de injetar sua toxina através da couraça do animal.
— Se entregue, menina — o segurança pediu, ainda acordado. — Se entregue ou senão eles vão atirar em você.
Os blacks já estavam próximos, agiriam a qualquer instante. Ela levantou as mãos e abaixou a cabeça, sobressaltada.
— Eu me rendo! — exclamou, a contragosto.
A respiração era arfada, segurava uma imensa vontade de chorar e uma indignação que não sabia sequer dimensionar. Mas não queria terminar como mais um corpo estirado no gramado de sua casa; não queria terminar como Mônica. Estava decidida a se entregar.
Até que ouviu as risadas dos blacks por detrás da máscara negra; um riso de vitória, de superioridade, ignorando todo o sangue que era derramado no perímetro ao redor. Só então ela percebeu o óbvio. A vida de ninguém ali tinha valor para aquela corja, nem mesmo a de seus próprios combatentes. Fanáticos, malucos, ambiciosos, ideologistas… Janaína não sabia adjetivá-los, entretanto, sabia que não mereciam aquela vitória. Eram podres demais; sujos demais.
Sentiu os olhos arderem, com a sua adaptação implorando para ser ativada, porém não podia se precipitar. Aguardou que dessem mais alguns passos, para que todos estivessem bem perto e não pudessem fugir de seus olhos. E então, quando achou que era o momento, levantou a cabeça e abriu as pálpebras. As íris brilhavam como faróis acesos diante da luz faltosa; um azul de exuberância magnética.
E como o ponteiro de uma bússola que sempre busca o norte, os blacks buscaram admirar a luminescência quase fantástica dos globos da garota. Ficaram presos a ela automaticamente; esqueceram-se de todas as responsabilidades, das suas obrigações como soldados do Projeto. O que pensavam em fazer era, unicamente, captar e cumprir o que fosse imposto pelos olhos de beleza ímpar.
Janaína, séria e ainda envolvida pelo sentimento de repulsa pelo comportamento daqueles homens, não teve pena ao dar a ordem. Não precisou proferir em voz alta, apenas pensou no que desejava ver. Os blacks, da forma mais natural, apontaram a revólver para a cabeça de seus colegas, cada um apontando para o outro, de modo que nenhum ficasse sem ser alvo. Janaína respirou fundo antes do comando final. Como em uma coreografia muito bem ensaiada, os seis tiros foram ouvidos simultaneamente, produzindo um único estrondo.
O barulho despertou a atenção de Manoel, que olhou para seu local de origem a tempo de assistir os corpos caindo no gramado. Ele praguejou a perda, enquanto se aprumava do chão. O cansaço pela briga com as cópias ainda lhe fazia companhia, mas era preciso se mover caso quisesse vencer naquela noite.
Perto de onde ele estava, Léo tentava emboscar João, que permanecia atento aos movimentos da fera e não deixava haver uma aproximação. Em outro lado, Tomás era vencido por Sandro, que havia conseguido esfregar sua toxina no canto da imensa boca de dentes em serra que o adversário possuía. Estava tudo indo por água abaixo, mas as chances de vitória ainda sobreviviam.
Aproveitando que ninguém acompanhava seus passos, o comandante correu até o corpo de seu soldado mais próximo, morto por perfurações de cinco longos espinhos, e catou para si o revólver. Depois, deitou-se de forma confortável no gramado, em uma posição onde poderia aguardar a hora exata de agir. Para o momento, só restava-lhe acompanhar a batalha, até que o alvo estivesse na mira. Não seria uma tarefa fácil, pois, prevendo que João o acertaria caso ficasse parado, Léo mantinha-se sempre ativo, não parava para nada.
— Já tô me cansando dessa ciranda — João disse, após uma bufada. — Tá com medinho de chegar perto, tá?
Mas Léo não se importou em ouvi-lo. As pupilas dilatadas evidenciavam a sua concentração no ataque; a fera caminhava em volta do rapaz, com as quatro patas bem apoiadas no solo encharcado de água da piscina. Os seus músculos queriam trabalhar, a boca salivava com a ideia de ter mais uma presa, mas precisava ser um golpe perfeito, sem oportunidades de contra-ataque. Apressou o passo, buscando uma falha na defesa do garoto. Ninguém era capaz de se manter infinitamente intocável e João estava distante de ser o adversário mais ardiloso daquela noite.
Quando menos esperava, encontrou espaço para atacar. Não sabia como conseguia reconhecer, mas algo no seu interior sabia; era instintivo. Preparou a investida, inclinou as patas e…
Um estouro reverberou pelo jardim. A fera rugiu de dor, sentindo a bala acertar sua coxa. Tirando vantagens das circunstâncias, João desferiu uma picada em uma das patas anteriores, fazendo com que a fera caísse. Contente como se fosse um caçador diante do animal abatido, João riu; o ferrão movia-se constantemente, quase de forma involuntária.
A batalha estava vencida.
Entretanto, Sandro parecia ainda não saber daquela informação e, servindo-se da desatenção do rapaz que já se autodeclarava vitorioso, saltou em sua costas, atrelando-se a ele.
— Agora é a sua vez… — ameaçou o garoto escorpião, cheio de confiança. Buscou uma posição para inocular seu veneno.
— Léo! — Sandro gritou. — Léo, me ajude!
A fera vislumbrou a cena e, com as esperança renascidas, começou a se levantar. Fora difícil ignorar uma pata totalmente paralisada e o sangue que escorria da outra, mas as forças pareceram renovadas com a perseverança de Sandro. Por sorte, a adrenalina o livrava de qualquer dor, o que tornou menos sofrido o seu caminhar. Léo ouviu mais um barulho de tiro, contudo a bala pareceu não encontrar carne onde pudesse se alojar. Não importava quem atirava; Sandro precisava de ajuda.
João também não estava inclinado a se entregar. Seu ferrão encontrou o dorso de Sandro, em um bote certeiro próximo a medula espinal, fazendo com que o garoto caísse com o corpo instantaneamente paralisado. Mas, apesar de sua mira admirável, era tarde demais. A fera já estava muito perto e era impossível uma reação.
Com apenas um golpe, direto na cabeça, Léo jogou o garoto para escanteio. João rolou pelo terreno; o corpo mole e a adaptação sendo desativada.
Contudo, Léo ainda não estava satisfeito. Virou-se para trás, para onde ele sabia que o atirador estava a postos, e não se surpreendeu ao encarar Manoel. A expressão de pavor ganhou forma na face do black, enquanto a fera, meio cambaleante, corria até ele. Tentou atirar uma terceira vez; a pontaria, contudo, deixou a desejar.
E em um segundo, o animal o levantou do chão, apertando as garras no pescoço, olhando profundamente em seus olhos. O medo o cobriu do pé a cabeça, mas ainda teve coragem de sorrir.
— Finalmente vai vingar a morte da sua amiguinha… — falou, esbanjando uma calma inexistente.
O bicho, por sua vez, ficou confuso.
— O quê? — questionou, com a voz arrepiante. Até que compreendeu o que a frase significava. — Foi você… Você matou a Mônica… — Mostrou os dentes. — Você matou a Mônica!
A fera apertou a cabeça do homem, preparando-se para a execução, e a imagem do morte de Mirna surgiu de suas memórias; era inevitável lembrar. Aquele homem teria o mesmo fim.
— Léo, não! — pediu Janaína, correndo até ele. — Não mata ele!
Parando o movimento decisivo, a fera rosnou, descontente.
— Ele matou a Mônica!
Manoel voltou a sorrir.
— Eu sei… — ela falou, com a voz embargada. — Mas eu tenho um plano. E precisamos dele.
Léo queria olhá-la nos olhos, para que tivesse certeza de que não devia completar o serviço ali mesmo, naquele instante. Contudo, quem garantiria que ela não tentaria persuadi-lo? Matar o black acabaria com boa parte de sua raiva e de seus problemas.
— Léo, confia em mim…
Ele rugiu, sem saber o que pensar. Janaína não merecia aquele voto de confiança, ele tinha certeza daquilo. Toda a sua intuição sabia daquilo. Contudo, pela segunda vez, ele decidiu não ouvir a sua intuição.
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