Mortos e feridos

   — Se entreguem sem lutar e ninguém sairá ferido! — em algum canto, a voz ampliada pelo alto-falante tentou barganhar.

   Contudo fora prontamente ignorada pelo garotos; mesmo que estivessem dispostos a fazer um acordo, suas mentes estavam cheias e atordoadas demais para que analisassem os berros dos blacks, que se aproximavam mais e mais, rodeando suas vítimas como um bando de hienas famintas pelo monte de carcaça no centro.  Só não haviam atacado ainda, pois a fera de mais de dois metros era um alvo que merecia cautela. Sabiam o poder de destruição que Léo adquiria quando transformado.

   Sem desperdiçar tempo, as garotas se aproximaram dos dois rapazes. Os olhares se cruzando, dizendo mais do que as bocas poderiam dizer, acalmando mais do que um abraço acalmaria naquela situação. Estavam todos preparados para o combate, mesmo que não fosse as suas vontades.

   — Esse é o último aviso: se entreguem!

   Léo abaixou o tronco, colocando-se de quatro. Sentiu as patas, que ainda lembravam mãos, se adaptarem​ ao asfalto. Os músculos se contraindo e relaxando com o efeito da adrenalina​. De soslaio, viu as asas brancas de Márcia serem abertas, sendo seguidas pela aparição do ser de coloração negra em que Mônica se mutava. Pedro observou Camila desacordada, indefesa; era o momento de protegê-la. Sutilmente, um espinho surgira da palma de sua mão, negro e repleto de sua toxina, que gotejava através de sua ponta.  

   O rugido da fera anunciou o início do combate. Não havia mais volta.

   Mônica imediatamente alçou voo, saindo do alcance da iluminação cegante e desaparecendo em meio a escuridão da noite. Léo partiu para cima dos automóveis que bloqueavam a estrada, disposto a limpá-la, para terem por onde escapar, caso precisassem abortar a missão. Uma​ chuva de tranquilizantes veio em sua direção, mas os pelos e a sua inegável agilidade felina não o deixavam ser um alvo qualquer.

   — Ataquem!! — um dos blacks vociferou, encorajando os demais a entrarem na batalha.

   Mas seus comandados foram neutralizados quando o grito de um de seus soldados se fez ouvir. Algo havia o levado para o céu, deixando os colegas ao redor perdidos. Porém, não tardou para que o black retornasse; seu corpo despencou em cima de um sedã em ângulos sobre-humanos.  A mordida aberta em sua jugular denunciava a dona do feito.

   Léo pulou sobre dois guardas, abocanhando a cabeça de um, enquanto o outro gritava ao observar o colega ser estraçalhado do seu lado. Logo chegara a sua vez. E a vez de outro e de mais outro. Em questão de segundos, já haviam blacks deixando suas armas para trás e saindo em debandada.

   Clara usava o revólver que Camila tinha lhe entregado. A mira que havia conquistado nas aulas dentro do centro de pesquisas agora era usada contra seus próprios professores. Pedro devolvia, com a mesma carga de espinhos, a chuva de dardos tranquilizantes que vinha em sua direção. A sua frente, os espinhos flutuavam no ar, indo em linha reta até encontrarem algo em que pudessem se alojar. Não raramente, penetravam a carne de um dos soldados, nos pontos mais diversos possíveis — da ponta dos membros ao globo ocular.

   — Acertem os adaptados mais frágeis! — a mesma voz, que antes se fazia ouvir pelo alto-falante, agora dava as ordens em meio à carnificina. — Os mais fracos, porra!!

   Léo parou de atacar, levantou o corpo humanoide e iniciou a procura do dono dos comandos. E lá estava ele, entre o labirinto de blacks que se movimentavam frenéticos; o único que não fazia questão de esconder o rosto por detrás da máscara soturna. Era moreno, de corpo hígido, ares atléticos e olhar algoz. Um pouco novo demais para quem dava tantas ordens. Enquanto esbravejava em tom imperativo, apontava, indicando aos soldados os alvos que considerava frágeis: Pedro, Márcia e Clara.

   A fera fez menção de ir ao encontro do black comandante, entretanto, antes que pudesse dar o primeiro passo, fora jogado de encontro aos sedãs de forma violenta. Com a batida, seu crânio ricocheteou sobre a superfície metálica do carro, o que fez um zumbido se instalar no ouvido e a visão se enturvecer. Antes que a consciência voltasse a sua integridade, sentiu dentes sendo cravados sobre sua clavícula e o cheiro inconfundível de cachorro sujo.

   Lucas, já transformado em lobo, começou a prensar o corpo da fera sobre o automóvel, encurralando-a, enquanto se certificava de que suas presas já haviam penetrado o máximo possível no ombro do inimigo. Seus rosnados de raiva se misturavam aos rugidos de dor liberados por Léo. O loiro, após recuperar as forças, começou a se contorcer como podia, girando o tronco em uma busca desesperada por liberdade. Não conseguiria; sentia os dentes pontiagudos do lobo riscarem os ossos do seu ombro a cada movimento seu.

   — Desgraçado! — gritou Léo, antes de usar o braço livre para mergulhar as garras afiadas nas vísceras do lobisomem.

   Por mais que Lucas fosse forte, nem mesmo ele era capaz de suportar a dor de ter seu abdômen perfurado. E ao abrir a bocarra para fritar, fora a deixa para que a fera revertesse a situação e conseguisse ganhar distância do inimigo; precisava recuperar suas forças. Não demorou muito para que o lobo também se levantasse, arfando pesadamente e colocando a mão sobre a ferida no centro da barriga. Léo não estava em melhor conjuntura, pois seu ombro esquerdo era carne viva em diversos pontos. O sangue misturava-se com os pelos amarelos e a saliva fedorenta que Lucas deixara sobre a ferida. Só estava mais ileso que  o sedã, que tinha servido de parede para o embate, o qual parecia acabado de sair de um engavetamento.

   O lobo riu, uma risada rouca e inconstante. Era a primeira vez que Léo ouvia a sua voz quando transformado e a sensação era de estar diante de um demônio. Lucas começou a andar, observando os corpos estirados no chão e os demais confrontos que preenchiam a paisagem em frente ao frigorífico. Inspirou fundo, antes de voltar a emitir sua voz infernal:

   — Não gosta desse cheiro, nerd? Sangue fresco… — Permanecia dando passos lentos, apreciando cada grito de dor dos soldados. — Sabe o que essa cena me lembra? Aquela batalha no jardim do centro de pesquisas. Lembra?

   — Lucas, não precisamos brigar. Não tem motivos. Só nos deixe sair daqui.

   — Lembra ou não?! — sua voz se tornava ainda mais assombrosa quando enraivecida. — Deve lembrar. Foi o dia que cê tirou a vida da Letícia… E eu prometi que iria te matar. — Riu. — Ah, Leonardo... E ainda tem coragem de falar que não temos motivos pra lutar?! — com um rosnado, partiu para cima da fera a passos largos. Léo não fugiu da luta e, em questão de segundos, os dois estavam atracados um ao outro.

   Contudo, no fundo, o loiro permanecia preocupado com seus amigos. O black comandante havia deixado bem claro quais seriam os próximos alvos e ele não podia deixar de pensar que Pedro estava em perigo. Mas o garoto parecia não ter percebido o risco eminente; continuava atacando os blacks com seus espinhos, junto a Clara. Haviam descoberto, com o desenrolar da luta, que poderiam trabalhar muito bem como dupla: ela a protegia e ela o mantinha imbatível. Vez ou outra, um dardo o atingia, mas seu organismo era prontamente desintoxicado pela menina curandeira. Unidos, eram invencíveis contra os blacks, porém não era apenas contra eles  que os dois estavam lutando.

   Em meio aos homens de preto e aos corpos que despencavam mortos do céu, estava João, acompanhado de seu sorriso cruel e frio. A medida que se dirigia em direção a Pedro, o ferrão de escorpião movia-se como um membro autônomo, a procura de um corpo onde pudesse ejetar o veneno armazenado.

   O melhor amigo do Léo parou por um instante, pasmado com a adaptação de seu adversário. Parecia um ser saído dos livros de mitologia grega — parte homem, parte animal —, que, diferente de Pedro, estava preparado para lutar nas piores guerras imagináveis. Apenas com seus espinhos, o menino tinha certeza de que não era capaz de derrotá-lo. Por mais que gostasse da ideia de gladiar como um herói, o medo o invadiu; o medo de não conseguir.

   — Pedro? — Clara o chamou, ao perceber a paralisia do colega. João estava cada vez mais perto e seu ferrão, mais próximo do bote fatal. — Pedro, faz alguma coisa!

   Com um chacoalhar de cabeça, o garoto voltou a si. Pensou na sua ruiva. Poderia até não ter capacidade para derrubar João, mas Camila não iria desistir antes de tentar, e esperava que ele fizesse o mesmo. Pedro encolheu os braços de encontro ao tórax, comprimido todos os músculos dos membros superiores, instigando que algo fosse formado ali. Jamais fizera aquilo antes, seus espinhos saiam unicamente das mãos até então, entretanto um instinto profundo lhe dizia que daria certo, que sua adaptação ia além.

   Estava com razão. Ao abrir novamente os braços e estufar o peito com um grito de fúria, centenas de espinhos foram lançados de encontro a João. Saíram de todos os cantos, das palmas das mãos, de toda a extensão do braço até o centro do esterno. Espinhos de diferentes tamanhos, com distintas quantidades de veneno, porém todos com um destino bem definido. O sorriso de João se desfez, dando lugar a uma feição surpresa; não esperava uma reação daquela altura. Sem pestanejar, o garoto-escorpião iniciou sua defesa, fazendo de seu gigantesco ferrão uma armadura. A exoesqueleto era resistente, rígido, não iria ceder a míseros gravetos pontudos, pensou  ele. E foi o que aconteceu; o ferrão barrara quase todos os espinhos. Contudo, a quantidade era surpreendente e, por mais que a armadura tivesse resistência, não era grande o suficiente para interromper a trajetória de todos eles.

   Pedro não pôde deixar de rir quando três de suas farpas adentraram as pernas do rapaz. A calça foi aos poucos tingindo-se de vermelho, o canto de dor fora imediato, tão rápido quanto o florescer da ira. João não sabia o que aqueles espinhos causariam, apenas sentia uma ardência crescente, teria que agir rápido, antes que o efeito aumentasse. Partiu em disparada contra Pedro e Clara, já posicionando o ferrão para trás, iniciando o primeiro bote. Não teriam como escapar.

   Mas não precisaram escapar. Em um piscar de olhos, João não está mais diante dos dois. Um vulto branco se chocou contra o rapaz, jogando-o para longe. Ainda mergulhado em adrenalina, Pedro não teve dificuldade em acompanhar a cena que passava. Márcia, com suas asas albinas e plumosas, se engalfinhava como podia com o ferrão de escorpião. Suas asas batiam desassossegadas, servindo de atordoante para o garoto, ao passo que a pobre moça se agarrava ao​ órgão artrópode  numa tentativa aflita de desarmá-lo.

   A porta do frigorífico estava irreconhecível. Nada mais fazia sentido, havia sangue e corpos para todos os lados.

   E, no meio daquilo tudo, Janaína mantinha-se ilesa; seu dom lhe dava esse direito. Enquanto seus olhos cintilavam um azul fluorescente esplendoroso, dois blacks faziam a sua guarda e outros três atacavam seus colegas de trabalho como se nunca tivessem compartilhado dos mesmos princípios. Era a primeira vez que a loira detinha poder sobre tantas pessoas ao mesmo tempo, mas estava se saindo bem. Só precisava manter a concentração necessária e qualquer inimigo seria barrado pelos dois soldados hipnotizados.

   Havia instruído eles que guardassem os revólveres de dardos tranquilizantes e pegassem as armas de fogo. Já tinha perdido as contas de quantos homens seus blacks hipnotizados tinham matado. Pegavam os demais despreparados, pois, no meio daquela muvuca, sequer se importariam em identificar homens lutando a favor dos adaptados, caso contrário, suas cinco marionetes estariam mortas há muito tempo. Janaína, inconscientemente, desejava uma ação e ela era, mais do que depressa, executada pelos blacks. Não pensavam, não questionavam, nem mesmo demonstravam dúvidas sobre o comando; apenas faziam. Seriam fantoches perfeitos, se não tivessem sido descobertos tão prematuramente.

   Passar despercebido para o blacks não era uma tarefa muito árdua, afinal eram apenas homens desesperados por se manterem vivos e pouco se importando com o que se sucedia nos perímetros fora de suas vistas. Porém, não era apenas com os blacks que Janaína precisava se preocupar. Um lagarto gigante causava mais inquietação. Tomás seguiu em direção aos blacks que atiravam contra os outros, disposto a acabar com a festa da loira. Matou o primeiro, como quem matava um inseto indefeso. Janaína começou a ficar preocupada, o que dificultou seu controle sobre​ os outros quatro. Tentou ordenar que atirassem contra o lagarto, mas antes que pudesse pensar no comando a ser dado, Tomás matara o segundo. O terceiro fora logo em seguida.

   Não satisfeito, o réptil foi de encontro a garota, que começou a dar passos largos para trás, já com o coração na mão. Deixando a razão de lado, ela fez com que seus dois últimos blacks começassem a balear Tomás, contudo o efeito fora minúsculo. A couraça espessa e dura bloqueava o caminho dos projéteis e a criatura continuava a se aproximar. A morte dos dois soldados era iminente, fora questão de tempo até que as garras afiadas do garoto se encontrassem dentro da carne de ambos.

   Agora, para a aflição de Janaína e deleite de Tomás, só restavam os dois. Os passos para trás dela aumentaram de velocidade, porém ele não estava dado a deixá-la​ escapar. O medo emergia em rugas no rosto da garota, os olhos pareciam saltar das órbitas; tentou girar o corpo e, assim, correr, mas não esperava trupicar num corpo e desabar no chão. Ela era fraca, Tomás tinha certeza que poderia vencê-la sem desperdiçar uma gota de suor. Estava confiante.

   E, talvez por essa confiança exacerbada, esqueceu-se de que estava lidando com uma adaptada. Uma adaptada que era capaz de reverter o jogo em um piscar de olhos. Tomás era notavelmente mais forte, entretanto essa força não serviu em nada quando seus olhos estreitos se encontraram com a luz magnética dos olhos da menina.  Toda sua sede de sangue se desfez e sua superioridade, virou pó como se nunca tivesse existido.

   Janaína se levantou, ainda respirando pesado pelo cruel destino que quase a alcançou, mas um pequeno sorriso havia ganhado forma em seus lábios. Passou a mão na roupa, tentando limpar o sangue do corpo onde havia tropeçado e olhou mais uma vez para sua mais nova marionete.  Espiou um pouco mais atrás, onde dezenas de blacks ainda lutavam com seus colegas e, com gosto pelas​ palavras​, ordenou em som límpido:

   — Mate eles.

   Não foi preciso pedir duas vezes. O gigantesco réptil deu meia-volta e pôs-se a trabalhar no lugar dos homens que havia acabado de matar.

   Por mais que a briga fosse feia, os garotos estavam se saindo bem. O número de homens trajados de negro reduzia em alta rapidez; muitos mortos, outros feridos e tantos outros fugitivos. O que importava era que a armadilha daquela quadrilha se mostrava frustrada a cada soldado morto. Não​ teriam total sucesso, para ódio de Manoel. O black comandante observava o que sobrara de seus homens com extrema angústia. Não podia acreditar que, de tantos soldados, apenas aqueles gatos pingados tinham sobrevivido. A batalha não estava findada, mas a sensação que sentia era de fracasso completo.

   Enquanto a desolação o consumia, observou as disputas que aconteciam sob a noite fria: Lucas se emaranhava ao adaptado felino, João estava quase sendo derrotado por outros três garotos, Tomás estava lutando a favor daqueles desgraçados, hipnotizado pela loirinha, e os homens que restavam eram, de um por um, levados pela mutante vampira para, logo em seguida, se chocarem contra o asfalto, produzindo um barulho seco — isso, quando  a pivetinha não resolvia encurtar o serviço, sugando a vida de suas vítimas ali mesmo, no solo.

   Era um fato, ele tinha fracassado e o doutor Paulo não iria o perdoar por isso. Ele tinha sido bem claro, queria aquelas crianças, os Planejadores de Fuga, o mais rápido possível. Contudo, o cientista também tinha sido bem claro ao afirmar que não importava como, nem se seria preciso retirar as maçãs podres, ele apenas as queria para ele. Manoel falhara, não lhe restava dúvidas disso, mas ainda existia chances de redenção. Chances essas que não seriam desperdiçadas pelo black.

   Escondeu-se atrás dos destroços de um dos veículos, enquanto guardava o revólver de calmantes e empunhava o de balas. Havia feito isso na noite passada, quando achou que precisaria usá-la no garoto gigante, Alex. Mas, no fim, aquela seria sua primeira vez. No fundo, sentia-se numa situação desconfortável, porém era hora de ser egoísta e pensar somente em seu futuro dentro do Projeto. Usando a carcaça do sedã como escudo, mirou para os garotos que digladiavam com João. Inspirou fundo, como na noite anterior.

   Eram apenas maçãs podres…

   Atirou. O projétil cruzou a distância e acertou o alvo quase no mesmo segundo. Manoel se abaixou, após ver o tiro derrubar uma das garotas.

   — Clara! — Pedro gritou, segurando a pobre menina para que não se chocasse ao chão.

   O ferimento no ombro foi aos poucos sendo manchado de escarlate. A curandeira olhou a perfuração, a dor e o medo do pior começando a incomodar. Não era um ferimento fatal; não no primeiro instante.

   — Que merda… — reclamou, tentando se manter calma. Sua magreza e a miudeza tornavam-na aparentemente tão desprotegida, desarmada, que qualquer machucado causava apreensão em seus amigos.

   — Precisamos te tirar daqui. — Pedro olhou em volta a procura de ajuda. Léo sequer havia percebido o que acontecera, Márcia estava ocupada, segurava João a espera do efeito tóxico dos espinhos de Pedro, e Janaína mantinha a concentração em Tomás. — Mônica! — chamou.

   Imediatamente, a sombra negra desceu da noite, pousando ao lado dos dois.

   — Vai dar tudo certo —  disse ela, ao se dar conta do acontecido.

   Mônica, quando mutada, não era das visões mais belas, mas, ao sentir a presença lúgubre do ser vampiresco, um alívio percorreu o espírito do Pedro.  

   No entanto, Manoel sentia que ainda não havia terminado de se redimir com o geneticista. Precisava ir além, apenas aquilo não limparia sua derrota. Ergueu-se uma segunda vez e, sem prolongar sua tomada de decisão, volveu a arma para a entidade alada  que causara tantas perdas durante aquela batalha. Estava de costas para ele, observando a amiga caída. O tiro fora sem remorsos dessa vez e, talvez por isso, fora mais certeiro. No centro do crânio.

   O barulho pareceu mais alto do que qualquer outro, o som ecoou pela noite, como se anunciasse a triste notícia. Mônica cambaleou para o lado, ao mesmo tempo que deixava sua forma humana ganhar espaço.  A menina olhou nos fundo dos olhos de Pedro, olhos arregalados, buscando entender o motivo daquela sensação estranha que sentia. Os cabelos negros e escorridos balançaram com seu cambalear, os lábios tremeram em um último segundo de consciência, a feição dúbia se formou antes de todas as expressões se apagarem. E, ainda com os olhos abertos, as pupilas foram perdendo o foco, cada vez mais, até parecerem apenas um olhar de plástico, sem vida, sem emoção. O corpo de Mônica caiu; apenas o corpo, já sem espírito.

   Janaína olhou para o lado a tempo de ver sua melhor amiga se aconchegar ao chão. Um arrepio percorreu sua pele, sequer se lembrou em manter Tomás sobre seus controles, os olhos marejaram em uma velocidade que ela jamais pensou um dia ser provável.

   — Não!! — o grito cortou o coração de quem ouviu.

   Até mesmo Léo, que até aquele momento permanecia alheio a tudo, parou. Janaína correu para Mônica, um caminho que pareceu bem maior do que realmente era; a dor prolongou o momento de forma impiedosa. A loira sentiu o coração falhar, o peito comprimir os pulmões, como se parte sua estivesse sendo arrancada.

   E quando alcançou o corpo, desejou nunca ter alcançado. Não estava preparada para encontrar a verdade daquele jeito, sem nada que pudesse amenizar os acontecimentos. O choro se transformou em urros de dor, apertou a cabeça de Mônica contra o peito, numa tentativa frustrada de acabar com aquele sofrimento, mas o sangue inocente da garota estava ali, manchando suas mãos, lembrando ela de que era irreversível.

   Lucas soltou uma risada, saboreando a cena como um verdadeiro demônio faria. Léo o ignorou, nada mais importava. Mônica estava morta.

   Manoel permaneceu encolhido atrás do automóvel; sabia que se descobrissem sua posição, seria um homem morto. Mas, enquanto se escondia e ouvia o pranto de Janaína, sentiu que tinha conseguido se redimir por toda aquela situação.

   Pedro permanecia estático ao lado de Clara, que perdia sangue e enfraquecia cada vez mais. O efeito de seus espinhos finalmente chegara e João já não conseguia mais lutar. Mas não estava preocupado com isso, tudo tinha se tornado superficial e nenhum sentimento parecia ser digno de competir com a desolação de Janaína. Olhou para o local onde o corpo de Camila havia caído e a sensação de angústia aumentou; não estava mais lá. Tinham a levado durante a confusão, não podia acreditar. Tudo dara errado. Tudo.

   — Léo! — esbravejou, com a voz rouca, prestes a chorar. — Vamos embora daqui, antes que mais alguém morra! A Clara também está morrendo!

   — Vão ter que passar por cima de mim primeiro — a gozo na voz de Lucas seria irritante, caso a cota de sensações de todos não estivessem esgotadas.

   Léo continuava disposto a estraçalhar o lobo, mas Pedro tinha razão. Clara estava ferida, todos estavam feridos demais para permanecerem ali. Antes que Lucas tentasse impedir, a fera deu um soco em sua mandíbula, que fez com que seu adversário perdesse momentaneamente os sentidos. Não tinha tempo — nem motivos — para comemorações.

   — Márcia, leve a Clara — Léo ordenou, enquanto ficava de quatro para que servisse de montaria para Pedro e tirava Janaína a força de perto do corpo de Mônica, colocando-a sobre suas costas. — Pedro, segura ela.

   — Vocês não podem deixar ela aqui!! — a loira acusou, porém, pela primeira vez, Léo sentiu pena. — Não!  Não, não, não!! Mônica!

   Não ousou responder. Não era o que ele queria, mas era preciso. Não podiam esperar para que mais blacks aparecessem. Tudo em volta suplicava por urgência. Márcia agarrou Clara o mais forte que conseguiu e alçou voo para longe dali.

   Léo fitou Tomás, parado em um canto, observando o desenrolar da situação que havia ajudado a tramar, antes de iniciar a corrida para distante do frigorífico. O mais distante que seus músculos fossem capaz de levá-los. Sem pensar em nada, nem em ninguém; não era o momento.

   Os mortos estavam mortos.

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