Máscaras alegres
Ela despertou. No início, sequer conseguia abrir os olhos direito; e quando finalmente conseguiu, a visão estava turva, desfocada. Tudo que fora capaz de observar não passara de um aglomerado de sombras amorfas e inconstantes. A iluminação — ou a falta dela — também não parecia ajudar. O pouco que conseguia ver era graças a uma porta escancarada não muito distante de onde estava.
Tentou se mexer, mas os braços estavam amarrados na cadeira. Não procurou se soltar, apenas respirou fundo; parecia que não fazia isso havia muito tempo. A fraqueza a tomava por inteira, a cabeça pendia para os lados e o silêncio daquele lugar lhe trazia uma sensação de desamparo forte o suficiente para que se perguntasse onde estavam seus amigos. Porém, diferente do que ela havia pensado, a sensação não desapareceu com o cessar do silêncio. Mas, sim, aumentou ainda mais.
Uma sombra se prolongou através da porta aberta, bloqueando os escassos feixes de luz que entravam. Não demorou muito para que a silhueta masculina dona da sombra aparecesse porta adentro, andando a passos lentos e rítmicos. A visão fosca não permitia que ela reconhecesse o homem, entretanto ela mesmo não sabia se queria reconhecê-lo; algo lhe avisava que não era a melhor opção.
O homem andou pelo recinto, desaparecendo do alcance de seus olhos, para, logo depois, surgir como uma mão acariciando seu rosto. Camila tremeu com o toque inesperado.
— Impressionante, não? — o homem iniciou. — A pacientezinha mais arisca de todas, a que me causou mais prejuízos até agora… Agora, está aqui, presa, como se nunca tivesse sido tão esperta, como se fosse apenas mais uma menina burra, que acha que consegue ser mais inteligente que centenas de profissionais — zombou. Camila não precisava ver seu rosto para saber que nele a expressão de prazer e poder imperavam. Também não era necessário reconhecer a voz; o tom, a audácia, a ironia… Seus amigos já haviam lhe contado sobre como Paulo Ricardo costumava falar. — Foram meses tentando arrumar uma forma de capturamos você de uma vez por todas. Meses! Mas sempre você escapava… — Riu. — Mas não pense que a gente também não gostava disso! Muito pelo contrário. A cada vez que você se esquivava de nossas missões de captura, mais você nos mostrava o quão preciosa era sua adaptação; mais a gente queria você.
A mão continuava a percorrer o rosto pálido e sardento da garota, enquanto ela tentava se desvencilhar dos toques com pequenos movimentos da cabeça e resmungos fracos. Mas a mão persistia vagando sobre as maçãs de seu rosto e sobre os fios de cabelo avermelhados.
— E parecia tão fácil! — prosseguiu ele. — Gosta de biologia, Camila? Sabe como células funcionam, não? Células podem ser excitadas. Quimicamente, eletricamente, enfim… As suas células da pele são moduladas por estímulo elétrico, sabia? E daí vem o fabuloso dom de fazê-las mudarem de cor. Mas quando o estímulo elétrico é muito forte, isso acaba levando à exaustão suas células, o que impede que você use sua adaptação. Fácil de entender, não? — Paulo voltou a se colocar diante da ruiva, abaixou o corpo, de modo a conseguir olhar diretamente nos olhos azuis da metamorfa. — Pois é… Demorou, mas conseguimos desvendar seu único ponto fraco. Agora você é nossa.
Com a visão já melhor, Camila foi capaz de ver o brilho nos olhos do cientista. Não havia piedade em suas expressões, não havia empatia, tudo que dele emergia era uma junção de insanidade e arrogância. Algo que assustou ela de início. Porém, como já estava acostumada a fazer, transformara o medo que sentia em algo a seu favor. Sabia que o doutor era perverso, Léo e os outros tinham narrado com detalhes minuciosos as atitudes que ele era capaz de tomar, mas se curvar àquele homem não iria ajudar e não estava em seus planos.
Sentindo a raiva e o repúdio por Paulo crescer em seu interior, não temeu o que poderia acontecer ao despejar sua ira para para fora, com uma cuspida volumosa no rosto do geneticista. Paulo encolheu os ombros e virou o rosto em reflexo, o que não impediu que o cuspe acertasse em cheio o centro de sua face.
— Eu vou te matar! — bradou ela, lutando contra as cordas vocais falhas. Cravou o olhar nele, impedindo que seu pavor a fizesse vacilar ao reiterar sua afirmação: — Pode ter certeza que eu vou te matar.
Paulo limpou a excreção salivar com a barra de seu jaleco; sério e aparentemente insensível, como um jacaré segundos antes de dar o bote fatal. Mas o que se seguiu não fora um bote, e sim uma risada irônica, debochada — que teve o mesmo efeito de um bote, porém, nas esperanças da ruiva. Ele se ergueu novamente, a mandíbula travada deixava claro o quanto se segurava para não castigá-la. Respirou fundo e se direcionou para a porta.
— Cuidado, Camila. Cuidado… — ameaçou, enquanto dava seus passos lentos para distante dela. — Você pode acabar como sua amiga. Mônica.
Por um momento, ao ouvir o nome de sua colega, o coração da garota pareceu parar, junto à respiração.
— Espera — pediu. —, o que houve com ela? — Porém o cientista não encerrou seus passos. — O que cês fizeram com ela?!
A porta se fechou. Sua pergunta ecoou pela sala sombria, para então se perder na escuridão e, em seguida, apertar seu coração. Uma pergunta sem resposta. Tantas respostas possíveis; as piores imagináveis. Todas as possibilidades passaram diante de seu olhar, cada cena, um punhado de Mônicas sofrendo de diferentes formas. E, de repente, não era apenas a garota vampira; as cenas de desgraça se estenderam para seus outros amigos, até, infortunadamente, chegar a Pedro. Como ele estaria? O que havia acontecido no portão do frigorífico? Como ela deixara que a situação chegasse àquele estado?
Ali, coberta pelo breu e pela quase tocável desolação, deixou-se chorar. Permitiu-se despejar suas lágrimas; sozinha, escondida, fragilizada. Desnudou-se de seus ares valentes e de sua imponência de mulher feita. Chorou como uma menina merecia chorar.
…
— Tá chorando?
Amélia largou os talheres, os quais usava para revirar a sopa já fria em seu prato, e concentrou sua atenção na garota ao seu lado, que a observava desconfiada. Graziela, de forma inacreditável, conseguira comer toda a sopa aguada e sem sabor que fora lhes servido. Ao contrário de Amélia, que mesmo tentando, não fora capaz de empurrar pela garganta nem metade da refeição; aquilo em seu prato servia melhor como passatempo, revirando com a colher os poucos pedaços de legumes que boiavam à deriva no prato. E era apenas o que fazia no momento. Enquanto esperava o restante terminar a refeição, distribuídos no pequeno refeitório de quatro mesas, ela permanecia pensativa e um tanto cabisbaixa — talvez por isso Grazi tivesse concluído que chorava. Amélia riu e balançou a cabeça em negação, antes de respondê-la:
— Cansei de chorar. — Pegou a colher e voltou a navegar o macarrão. — Agora, quero só guardar energias para quando a gente for fugir.
— Então é melhor comer, não acha?
— Acho que estou melhor sem essa… sopa. — Riu outra vez. Era inevitável que boas lembranças surgissem em sua mente. — Nem mesmo quando estávamos escondidos no meio do mato eu comia tão mal.
— Acho que é uma forma de castigo — uma voz masculina surgiu atrás das duas, logo se aproximando com o prato de sopa recém-servido. — Com licença, garotas, posso me sentar com vocês?
Amélia observou o rapaz. Gordinho, loiro e alegre. Alegre demais para quem possuía o rosto inchado e cheio de hematomas de uma luta árdua; certamente, pensou ela, contra os blacks.
— Olha a pergunta… — Grazi brincou, apontando para que ele se sentasse. — Amélia, esse é o Alex. Alex, Amélia.
Ele sorriu de canto de boca ao mesmo tempo que se ajeitava na cadeira. Tinha o habitual desajeito de pessoas acima do peso, contudo algo nele tornava qualquer desengonço irrelevante. Havia nele uma áurea de maturidade, que fazia com que fosse levado a sério desde o início.
— Me lembro dela. A namorada do Léo, não é? — ele afirmou, olhando para a colher e para a faca que vinha junto ao prato. Pegou a faca e começou a observá-la, como que se perguntasse o que iria querer com uma faca se o almoço era uma sopa com verduras minimamente fatiadas. Sequer havia garfo entre os talheres.
— Gostaria de ser lembrada como alguém além de A Namorada do Léo… — Amélia comentou, o que fez Graziela cair na risada.
Alex levantou as mãos, rendendo-se.
— Tá bem, tá bem. Não tá mais aqui quem falou. Só Amélia. Quem é Léo mesmo? — deu a primeira colherada no prato de água. A careta de desgosto veio logo em seguida. — É… Realmente isso aqui é um castigo. A comida no outro centro de pesquisas era bem melhor, me sentia num hotel cinco estrelas. Eles devem tá tentando nos mostrar o quanto é ruim quando não seguimos as regras… Claro, eu não me rendi quando eles mataram minha mãe, mas lógico que vou me render por causa dessa sopa rala.
Mesmo reclamando do alimento, o rapaz continuou a comer; em uma velocidade que fez Amélia se perguntar se ele realmente não havia gostado. Alex parecia ser uma pessoa contraditória, que escondia suas opiniões por trás de piadas. Entretanto, ela também sentia que não não fazia por mal. Talvez fosse até melhor lidar com tudo aquilo com brincadeiras.
— O que foi? — ele questionou.
Só então Amélia percebera que, inconscientemente, mantinha sua atenção fixa no garoto.
— Ah… É… — Ficou desconcertada. Olhou para a outra mesa, onde Matheus, Guilherme, Élida e Ariel conversavam, descontraídos. Depois, observou Graziela, que também a fitava a espera de uma resposta. — É só que é interessante… Cê lida muito bem com tudo isso. Eu não conseguiria.
O garoto gargalhou.
— Cê tá brincando? — o tom de voz denunciava que o que se sucederia seria mais um compilado de piadas e brincadeiras. — Eu tava super com saudade de usar essa tornozeleira estilosa. Sem falar que o choque que ela dá quando a gente menos espera é muito prazeroso. Sabe? Viver com aquele medinho de a qualquer momento ser eletrocutado, não tem preço.
Ele não lidava bem, agora ela tinha entendido. As piadas eram apenas sua forma de reclamar, de mostrar sua indignação diante as atrocidades do projeto. Amélia analisou as feridas múltiplas presentes no rosto do menino, não estariam ali caso ele lidasse de forma amigável com os blacks. O comentário sobre a morte de sua mãe também permitia que ela tivesse uma melhor percepção sobre ele.
Amélia era boa nisso; em perceber as pessoas. Talvez por isso fosse tão apaixonada em Léo, um garoto um tanto quanto introvertido e que escondia um bom coração por trás de uma feição carrancuda. Talvez por isso Alex parecia uma pessoa tão fascinante. O garoto se escondia também, porém, diferente de Léo, suas máscaras eram alegres e irônicas.
Perdia-se em seus pensamentos, estudando os trejeitos do loiro rechonchudo, quando um pequeno chiado percorreu o refeitório, saído da caixa de som presa em um canto do teto branco. Após, a voz feminina que sempre anunciava más notícias surgira outra vez para cumprir a profecia diária:
— Atenção, meninas, vão para as salas de treinamento e testes. Imediatamente — ordenou, em um tom inexpressivo.
Graziela bufou, antes mesmo que a transmissão se encerrasse com o mesmo chiado inicial. Olhou para Amélia. Não precisou dizer nada, todos sabiam que teriam que acatar as ordens e ninguém estava disposto a contrariar os pesquisadores; não ainda. Grazi se levantou, sendo rapidamente acompanhada por Amélia e, na outra mesa, por Élida e Ariel.
— Temos que ir — despediu-se de Alex, que concordou com um aceno.
— Depois de uma refeição calórica dessas, precisam gastar as energias, não é mesmo? — disse ele, olhando para Amélia com um sorriso amistoso.
O sorriso foi prontamente retribuído por ela.
— Até mais, Senhor Alex — afastou-se, por um minuto se esquecendo do que lhe esperava quando saísse do refeitório. Aquele garoto era… diferente; fora o que conseguira analisar naquele curto diálogo. Alex se tratava de uma boa companhia.
— Até mais, Dona Amélia.
...
Olha, pessoal!
Então, o que estão achando da história? Espero que esteja do agrado de vocês... :)
Estou aqui para fazer um convite: Enquanto o próximo capítulo de PG não é postado, convido vocês a darem uma passadinha no conto que escrevi há algum tempo atrás. Fúnebre Visão é o nome. Uma Fantasia/Paranormal. É curtinho — um capítulo apenas.
O conto é numa vibe um pouco diferente da que costumo escrever.
Espero que gostem!
Vlw! :)
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