Lágrimas sinceras

   Era incrível imaginar que de um corpo tão pequeno podia sair tanto sangue, mas a poça do líquido pegajoso e rubro continuava a estender seu diâmetro, circundando Mônica de forma lenta, à medida que os minutos passavam. Lucas, ainda em sua forma canídea, aproximou-se da garota, observando-a de perto. Não a conhecia muito e não recordava dela em suas lembranças do Colégio Antônio Augusto, do período anterior ao início do Projeto.

   Voltou a sua forma humana e agachou ao lado do corpo, a ferida em seu abdômen latejou com o movimento, porém mais ferido estava seu ego. O soco que levara de Léo, há poucos minutos, ainda doía sua mandíbula; não tivera chances de revidar, pois quando sua consciência se pôs no devido lugar, seus inimigos haviam desaparecido dali. O que isso significa para ele? Que Léo tinha deixado o ringue com a falsa sensação de vitória, e isso era inaceitável.

   Contudo ele era mais do que capaz de ignorar a dor — física e emocional. E isso se tornava fácil quando havia uma garota bonita para distraí-lo dos machucados. Mônica era linda, de uma forma que poucas garotas conseguem um dia ser na vida.

   — Que desperdício, não? — comentou ele, com um tom cafajeste e o inseparável sorriso malicioso. Olhou para Tomás, que também abeirava a menina já desnudo de sua adpatação. — Tão gatinha e foi escolher logo ajudar aquele nerd filho da égua…

   — Tem alguém aí?! — João perguntou, caído com os olhos arregalados e imóvel. Foi ignorado pelos amigos, que só tinham atenção para o que havia sobrado de Mônica.

   Balançando a cabeça em negativa, Tomás se colocou de joelhos diante do rosto da morena; sua feição séria aumentava a vontade que Lucas sentia de rir. A rapaz falou, após suspirar, desaprovando a atitude do amigo:

   — Tenha mais respeito, Lucas. — Com um leve toque, ele fechou os olhos inertes da pobre moça, porém não antes de gravar bem na mente o tom daquelas íris; não era comum ver olhos tão escuros quanto os que ela possuía.

   — Não vai me dizer que tá com remorso? — questionou, contudo o tom não era mais casual. Havia raiva em suas palavras, como se a pergunta fosse, na verdade, uma ordem.

   — Socorro! — João voltou a urrar. — Eu estou cego!

   Lucas retirou de Tomás o semblante julgador e se voltou para seu melhor amigo, porém tão nervoso quanto estava com o garoto lagarto.

   — Aah, dá pra calar a boca?! — mais uma pergunta em tom de ordem.

   — Ele não tá ouvindo — Manoel explicou, saindo de seu esconderijo com o revólver na mão, certificando que era seguro se mostrar. Depois de um tempo, retornou a explicação, enquanto se juntava aos dois: — Paladar, olfato, audição, visão… Nada. Nenhum dos sentidos dele tá funcionando agora. É isso que o estudo do veneno daquele porco-espinho ambulante mostrou: ele consegue bloquear o sentidos, quando o espinho não perfura um órgão vital.

   — Meu Deus, alguém me ajuda! — o grito de João voltou a tomar a estrada.

  Os três fitaram o rapaz caído no chão. O desespero preenchia cada ruga de expressão sua.

   — Ele ainda consegue se mexer, mas aposto que tá com medo de fazer isso. Daqui algumas horas o efeito passa — terminou o black, deixando a aflição de João de lado e volvendo-se para a garota vampira abatida; o troféu da noite. Deitada, dormindo o sono eterno, a menina parecia inofensiva, tão indefesa, que por um instante ele pensou ter matado uma civil inocente. — Qual o nome dela?

   — Era Mônica — esclareceu Tomás.

   — Mônica… — enquanto fitava o corpo já pálido dela, ele só conseguia pensar em como daria a notícia para o cientista. Paulo, com certeza, não ficaria contente de receber apenas duas adaptadas, ele queria todos. Mas não eram quaisquer adaptadas; eram a vampira e a metamorfa, e uma delas estava morta. O geneticista teria que considerar as conquistas da missão. — Vamos! Um de vocês ajude o João. O outro, leva o corpo para o veículo de transporte. Temos que ir para o centro de pesquisas rápido! O Doutor Paulo Ricardo vai ficar feliz com as boas novas.

   Tomás riu, exalando ironia.

   — É… mas, se fosse você, não se preocuparia só com o doutor não. — Apontou para Mônica. — Você matou uma deles. A última pessoa que tentou fazer isso, acabou com o crânio espatifado na parede.

   — Eles não me viram.

   Tomás levantou a sobrancelha, duvidando.

   — É… Torça pra que não — alfinetou, antes de colocar-se a carregar o cadáver.

   Depois de quase uma hora sentado, movimentando as mãos de todas as formas possíveis, brincando de entrelaçar os dedos até se esgotar as possibilidades, era até normal que o tédio batesse. Não havia assunto; durante aquela longa hora, Léo conseguia contar nos dedos as vezes que ele e seus amigos tinham aberto a boca para dizer alguma coisa.

   O loiro mantinha-se cabisbaixo, observando as mãos entrelaçadas e o movimento distrativo dos dedos, tentando ignorar a dor latente da ferida em seu ombro, que permanecia pungente mesmo após feito o curativo. Além disso, não queria olhar para as outras pessoas, para os enfermeiros e pacientes que, desde que haviam chegado ali, olhavam torto para ele e seus companheiros. Não era para menos, afinal três garotos ensanguentados, acompanhados de um garoto seminu carregando uma menina baleada, não era uma cena que se via todo dia.  

  Tinham chegado absolutamente exaustos, esgotados, mas mais difícil que encontrar um hospital público, fora explicar a situação para os médicos e enfermeiros. Como o mundo adorava lembrar, eles ainda eram apenas adolescentes e não deveriam estar sozinhos em um caso de urgência como aquele. Mais uma vez, tiveram que mentir e omitir fatos. Para os médicos, Clara tinha sido atingida após uma abordagem de um assaltante, que havia parado os garotos enquanto eles conversavam em uma praça. O sangue que sujava suas roupas era apenas da menina e as roupas rasgadas de Léo, reflexo de uma luta com o assaltante após ele atirar na amiga.

   Por mais que a história fosse irreal, acabou por satisfazer a equipe de doutores. Também não podiam demorar demais com questionamentos, o caso de Clara era grave. A curandeira, que ironicamente não era capaz de se curar, tinha perdido parte considerável de seu sangue. Chegara ao hospital pálida e com a pressão baixa, a lucidez falhando junto a força por se manter acordada. Os médicos a levaram para além dos corredores da recepção, contudo não antes de confirmar que os garotos avisariam um adulto sobre tudo.

   — E então? — Léo indagou, levantando a cabeça e olhando para as cadeiras ao lado, onde se encontravam Pedro e Márcia.

   Pedro estava focado no celular.

   — Eu avisei ela — disse ele, referindo-se a sua mãe. — Ela disse que já tá vindo.

   — Ótimo. — Dos poucos adultos que Léo conhecia, a mãe de seu melhor amigo fora a escolhida para resolver a documentação do hospital, pelo menos até que descobrissem onde a tia de Clara morava.

   Pedro riu, porém não era seu riso característico, não fora uma expressão de felicidade, pelo contrário. Após o riso chocho, voltou a falar:

   — Ótimo? Espera só ela ver a nossa situação. Vai querer saber tintim por tintim e cê sabe que eu não gosto de mentir pra ela.

  — Ei! — Léo colocou o braço sobre as costas do amigo, tentando afagá-lo. — Calma…  

   — Calma — o garoto resmungou, balançando freneticamente a cabeça em negação.

   Léo olhou para Márcia; a menina parecia distante, pensativa, sequer mostrava estar escutando sua conversa com Pedro.

  — Ela tá bem, cara. — Digiriu-se para o amigo outra vez, tocando no assunto  que o  atormentava. — Cê sabe que eles não vão fazer nenhum mal a ela. Eles precisam dela viva!

   — Será mesmo? — Pedro rebateu, com a voz enrouquecida e os olhos mais molhados que o normal. — Era isso que a gente pensava antes da missão, que eles precisavam da gente vivo. Agora olha pra onde estamos! Onde está a Mônica?! É bem óbvio que somos descartáveis pra eles, não acha?

   Léo se assustou. Em sete anos de amizade, nunca tinha visto Pedro falar daquela forma, sério e sarcástico. Lembrava até… ele.

   — Pedro, olha pra mim — pediu, porém não foi atendido. Continuou mesmo assim: — Não deixe que isso tudo te mude. A gente vai sair dessa, não deixe que eles tirem suas esperanças.

   Não houve resposta, apenas o silêncio já conhecido. Pedro abaixou a cabeça, limpou as lágrimas que se formavam e tornou a dar atenção ao aparelho celular nas suas mãos. Léo não podia julgá-lo pelo comportamento, o garoto tinha motivos de sobra para agir como agia.

   — Eu… — Léo falou, olhando para a porta de entrada. Pedro estava revoltado, contudo não era o único. — Eu vou procurar a Janaína.

   Atravessou a recepção, ignorando os olhares curiosos sobre suas roupas maltrapilhas, e chegou ao lado externo do imponente hospital, onde dezenas de árvores de grande porte denunciavam o quão velho era aquele lugar. Ao redor do prédio principal, as árvores e arbustos formavam uma espécie de praça. A impressão se fortalecia com a presença de banquinhos e com a iluminação típica.

   Ele olhou para os lados, procurando Janaína. Já passava das dez horas da noite e o local se encontrava praticamente vazio. O silêncio e a escuridão eram elementos maravilhosos para quem queria sofrer sozinho. E Janaína queria.

  Sentada no meio da pracinha, a loira observava uma mariposa lutando incessantemente para atravessar a bola de vidro de uma das lâmpadas de um poste. Léo se aproximou; em seu íntimo, perguntava-se o porquê de estar fazendo aquilo, afinal a garota tinha sido bem clara ao afirmar que queria ficar sozinha. Entretanto, querendo ou não, uma hora teriam que conversar sobre o assunto que tanto doía e, para Léo, seria bom que fosse logo, com a ferida ainda aberta.

   — Oi — ele cumprimentou, antes mesmo dela perceber sua presença. Janaína tirou a atenção da mariposa e a colocou sobre Léo, atentando para a sua presença por alguns segundos para, logo em seguida, voltar-se novamente para o inseto incansável. Nem se preocupou em responder ao cumprimento. — Tá tudo bem? — ele insistiu, dando-se o direito de se sentar ao lado dela.

   — O que acha? — Janaína respondeu. Porém, por mais que as palavras fossem ríspidas, o tom pouco se assemelhava ao que ela costumava usar quando se dirigia a ele. Léo estava acostumado com palavras mais afiadas, ácidas.

   Contudo, o tom mais brando não impediu que um vácuo se instaurasse entre os dois. O silêncio pareceu durar uma eternidade, prolongando sua existência desalmadamente, como um verdadeiro carrasco perante suas vítimas. Os dois continuaram observando a borboleta-bruxa em seu baile noturno com a lâmpada, parados. Respirar normalmente parecia até um pecado.

   — Como tá o ombro? — Janaína finalmente quebrara a quietação.

   — Ah… Tá melhor. Obrigado por… é, perguntar.

   — Notícias da Clara?

   — Ainda não, tamos esperando — ele informou. — Também estamos esperando a tia Pamela, a mãe do Pedro. Ela deve tá quase chegando. Vai ser difícil convencer ela da história que contamos pros médicos.

   Ela suspirou, antes de prosseguir:

   — Eu já tô cansada de ficar fugindo desse jeito, me escondendo… — Janaína olhou para ele; não de soslaio, como costumava fazer, nem mesmo com o olhar arrogante e superior que a acompanhava onde quer que fosse. Pela segunda vez na vida, Léo observou os olhos azuis de gruta despidos de todas as máscaras que eles possuíam, assim como no dia do beijo. — Isso não é triste?

   — O quê?

   — Isso tudo! — Os olhos de gruta quase transbordavam suas águas. — Ela só queria ter uma vida normal… Sabe, isso não é pedir muito. — Voltou a fixar a mariposa, tentando controlar a lágrimas a continuarem guardadas. Mas não demorou muito para que a estratégia falhasse; abaixou o olhar e deixou que o pranto viesse sem barreiras. — Eu disse pra ela que isso não ia dar certo! Eu tentei avisar, eu tentei…

   Léo ficou sem jeito. Não esperava por uma reação daquelas.

   — Mas ela queria ir. Não tinha nada que cê pudesse fazer.

   — Cês não entendem? Ela era a única amiga de verdade que eu tinha. — O rosto da menina se tornava mais vermelho a cada frase dita. — Vocês são amigos entre vocês, mas eu não! Eu… — o choro se intensificou. — Eu só tinha ela. No fundo eu só tinha ela.

    Os soluços sugiram uma outra vez, tão altos quanto os de uma hora atrás. A menina escondeu o rosto na palma das mãos, desolada. O cabelo estava sujo, as roupas manchadas de sangue, a maquiagem havia sido lavada pelas lágrimas. Janaína estava na sua forma mais crua, mais sincera e humana que Léo já tinha visto. Era impossível não sentir pena. Ele estava sofrendo com a morte de Mônica, entretanto sua dor não chegava aos pés do sofrimento da moça.

   Ele nunca havia parado para pensar, mas a garota tinha razão; Mônica era sua única amiga verdadeira. Por mais que sua popularidade a fizesse uma típica patricinha de ensino médio, isso acabava por atrair mais inimigos que amigos — ele mesmo era prova disso. A loira tinha todos os holofotes do Colégio Antônio Augusto voltados para ela, mas os aplausos sinceros eram apenas de sua amiga, Mônica. E agora ela estava sozinha.

   Em um ato súbito, Léo a abraçou. Sem pensar nas desavenças, nem em todas as opiniões que ele possuía sobre o comportamento hostil dela; apenas a abraçou. E ela, também ignorando as antigas discussões, mergulhou o rosto em seu peitoral.

   — Eu sinto muito… — disse ele, e no mesmo instante, um filme passou em sua mente. Fora inevitável não se recordar de Amélia e de sua reação ao mostrar para ele a foto de Clara, quando ela ainda achava que a amiga estava morta. A cena se repetiu diante de seus olhos, trazendo-lhe uma sensação estranha e confusamente familiar.

   Ele encolheu novamente o braço, considerando que havia ido longe demais. Para ele, aquele dia com Amélia era muito importante para que as ações se repetissem com outra pessoa. Sentiu-se culpado, não sabia exatamente porquê, contudo a sensação estava ali, rondando-lhe.

   — É… Precisamos encontrar um lugar pra gente ficar — procurou o primeiro assunto que veio a mente, buscando desviar sua atenção para outro rumo. — Agora, mais do que nunca, não podemos ficar separados. Eles irão pegar de um por um…

   Janaína se afastou, limpando o rosto com o dorso das mãos e limpando a garganta; estava irreconhecível para ele.

   — Vocês podem ficar lá em casa, se quiserem — declarou ela, de forma casual.

   Léo sorriu. Janaína estava disposta a colaborar? Aquilo, mesmo após os últimos minutos de sinceridade, era bastante surpreendente.

   — Acho que seus pais vão estranhar um pouco um bando de muleque na casa deles, não? Eu tava pensando da gente voltar pro…

   — Meus pais já sabem de tudo — ela interrompeu. — Cês podem ficar lá em casa.

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