Inferno

   Não havia blacks vivos quando Léo retornou ao térreo, apenas um grupo de garotos visivelmente atordoados, reunidos nas proximidades das escadas que levavam para os andares do centro de pesquisas. Pareciam ignorar o fogo, que começava a ganhar espaço para dentro do edifício. Não demoraria muito, Léo percebeu, e tudo seria tomado pela fumaça.

   — Eu não​ cheguei a ver eles em lugar algum… — Graziela falou, pega por um pranto intenso. Fitava as escadas por onde tinha saído, esperançosa em ver seus colegas surgirem ilesos. — Eles estavam um andar abaixo.

   Léo entendia o desespero da menina, contudo, não deixava de ter raiva de toda a situação. Principalmente agora, que já conhecia o motivo de uma explosão tão forte.

   Ele balançou a cabeça, irritado.

   — Como cêis foram acreditar em um deles?! — perguntou, bastante afetado. — Como?! Acreditaram nas palavras de uma das pesquisadoras, meu Deus!

    Largando o choro um pouco de lado, Grazi pareceu ficar séria em um piscar de olhos.

   — Ela não mentiu… Ela queria que a gente fugisse de verdade, e ela queria isso pelo motivo que ela disse, para tirar o doutor Paulo do poder. Ela não mentiu, eu saberia se ela tivesse feito — afirmou com toda a certeza do mundo. Entretanto, ao voltar a falar, as palavras tinham um tom diferente. Olhou para o chão; o peso da culpa sobre os ombros. — Mas ela não disse toda a verdade e eu não fui capaz de perceber a diferença… Eu não conhecia aquela nova sensação, me desculpem.

    — A culpa não é sua… — Élida a abraçou, enquanto a morena de cabelos cacheados e tom de pele tropical voltava a ser toda lágrimas.

   — O que importa agora é encontrar eles — Janaína se pronunciou, levando a atenção de todos para o ponto crucial.

   — Muita gente lá dentro só vai atrapalhar — Guilherme recomendou, e Márcia, sempre ao seu lado, concordou com um gesto de cabeça.

   — Eu vou — sem pensar duas vezes, Léo afirmou.

    Contudo, seus músculos não gostaram muito da ideia; sentiu-se​ fraquejar nos primeiros passos. Fitou o braço baleado, o sangue já secando, manchando toda a sua pele. Sentia o mesmo acontecer na lateral de seu rosto, com o pequeno pedaço perdido da orelha.

   — Cê tá muito fraco, Léo — Sandro deu o diagnóstico nada agradável, para a tristeza do loiro.

   — Eu vou no seu lugar — para a surpresa do amigo, era Pedro quem se colocava na linha de frente. Léo o observou; o rapaz estava decidido, não falava por brincadeira.

   Léo negou com a cabeça.

   — Não, cê não vai.

   — Eu consigo, mano.

   — Ele tá em melhores condições que você, Léo — novamente, Sandro veio com mais verdades.

   — Não. — Léo não sabia o porquê estava impedindo o rapaz de ajudar, mas algo em seu peito lhe dizia que aquilo não era seguro para o amigo. Tinha medo de perdê-lo.

   Pedro, entretanto, não parecia ter medo de ser perdido.

    — Essa luta também é minha, Léo. A Camila tá lá dentro, eu preciso encontrar ela.

   Percebendo que não ganharia no diálogo, Léo analisou a conjuntura por alguns segundos. Não iriam deixá-lo prosseguir naquele estado, podendo cair a qualquer momento. Porém, sua disposição se voltava inteira para continuar, mesmo que isso significasse que morreria tentando. Definitivamente, não podia concordar em deixar Pedro ir, não enquanto ainda tivesse capacidade de fazer as besteiras que sempre fazia. Fitou o amigo, sorrindo.

   — Eu trago ela pra você — informou ele, instantes antes de se transformar na fera.

   — Léo, não! — escutou Sandro o repreender.

   Mas não pararia para argumentar, era perda de tempo, sabia que estava em desvantagem na discussão. Começou a correr, segurando firme a sua vontade de conseguir. A pata dianteira permanecia inutilizável, servindo, somente, para que não caísse enquanto fazia com que as outras trabalhassem de verdade.

   Desceu as escadas, com o calor aumentando a cada metro a frente. A sensação, ele pensou, era como imaginava estar na porta do inferno; o vapor quente sensibilizando as suas feridas, enquanto era obrigado a mergulhar mais e mais na quentura. Entrou sem nenhum remorso, desviando das primeiras áreas onde as chamas tinham encontrado o que queimar. Decidiu que não pararia para olhar o estado das paredes, o que só faria com que temesse vasculhar mais profundamente.

   Não demorou muito para que se visse envolvido por paredes flamejantes, as quais deixavam que apenas o centro dos corredores estivessem livres da combustão​. Um forno gigante, devidamente pré-aquecido, pronto para assá-lo. Estranhamente, sentia o suor escorrer em meio a pelagem, de uma forma que sequer sabia que podia acontecer. Para a sua sorte, a fumaça era reduzida onde as chamas imperavam; era uma troca bem quista por ele.

   Começou a ficar confuso. Os corredores se dividiam a todo instante, e portas apareciam ao seu lado com uma frequência ainda maior. Precisava abrir alguma delas? Estava indo pelo caminho certo? Era inevitável fazer tais perguntas, à medida que a distância até a saída aumentava.

   De repente, parou. As chamas se tornavam ainda mais ameaçadoras a partir daquele pedaço, de modo que não conseguia saber se era seguro continuar. Diante do clarão e da alta temperatura, prosseguir parecia significar a assinatura de seu óbito, o que o obrigou a ter cautela.

   — Amélia! — gritou ele, esperançoso. O grito, entretanto, fora prontamente ignorado, como se as palavras fossem tostadas nos primeiros metros, tornando-se combustível para o fogo. Resolveu insistir: — Amélia!

   Rodou em seu próprio eixo, analisando as coisas em volta; o fogo, que não aparentava querer dar trégua. O tempo parecia feito de papel ali dentro, o garoto precisava ser ainda mais rápido.

   — Léo! — ele escutou, distante, porém bem escutado. Reconheceria aquela voz mesmo se possuísse uma muralha flamejante entre os dois. — Léeo! — Amélia repetiu, já um pouco mais perto.

   Pego totalmente de surpresa, Léo não teve tempo para reagir. Ouviu o som de passos vindo em sua direção, que, de tão pesados,  faziam com que o chão vibrasse sobre suas patas. E enquanto buscava saber de que lado havia ecoado a voz da menina, ela emergiu das chamas. Mas não estava sozinha.  

   Amélia era carregada por um rapaz de quatro metros de altura, que a segurava firme em seus braços, enquanto transpassava o ponto mais crítico do fogo. Alex, por sua vez, estava suado dos pés a cabeça, as rosto lembrava um grande tomate vermelho e o corpo estava sujo em diversos pontos, com queimaduras e cinzas. Amélia estava melhor, como se todas as amarguras do trajeto da fuga tivessem sido passadas unicamente pelo menino. A donzela protegida pelo gigante…

   Léo estranhou a cena. Estranhou de uma forma que jamais tinha acontecido antes.

   — Léo… — a menina o fitou, enquanto Alex a colocava no chão e ela corria em direção a fera. Abraçou o animal, não se importando com o suor, nem com as manchas de sangue.

    Passado o susto inicial, Léo retribuiu o abraço como pôde. Sentia que havia décadas que não tocava a pele de menina; queria abraçá-la, envolvê-la com beijos, desaparecer dali com ela para um lugar onde pudessem olhar as estrelas… Não sabia porquê, mas também desejava muito tirá-la​ de perto de Alex. Entretanto, o trabalho ali dentro estava apenas começando e os seus desejos teriam que esperar.

   — Cêis estão bem? — ele indagou, observando o estado acabado do loiro gordinho.

   Foi Amélia quem respondeu, de forma desesperada:

   — A gente tava perdido, não sabíamos por onde sair. Graças a Deus você gritou… — Olhou para Alex. — Ele tá muito cansado, mas conseguimos sair, não se preocupe com a gente. Léo, cê precisa encontrar a Clara.

   Entendendo o motivo do desespero, Léo se pôs em alerta novamente.

   — Onde ela tá?

   — Ela tava seguindo a gente… — Alex respondeu, arfando como um cão após uma caça. — Aí no meio da correria, nos perdemos… — Respirou e depois tossiu algumas vezes. — Eu não sei em que ponto foi, não sei se ela tá longe…

   — Bem… — Léo tentou focar no que estava acontecendo, ignorando a sua própria cabeça que insistia em questionar a conjuntura na qual haviam aparecido os dois. Amélia mal conhecia Alex, ele tinha absoluta certeza, mas não! Não era hora para aquilo. — E a Camila?

   Amélia balançou a cabeça em negação, enquanto o olhar caía.

   — Não conseguimos salvar ela… — Alex falou, seco, como se as palavras fossem um remédio amargo que era obrigado a tomar.

    A garota olhou para o fogo, que parecia querer queimar tudo de uma vez por todas.

   — Não dá tempo de conversar, salva a Clara, Léo, por favor.

   Assentindo com a cabeça, Léo afastou-se dos dois.

   — Vão para a saída, eu encontro vocês em breve — afirmou, olhando para Alex.

   E, então, mergulhou no mar de chamas, deixando para que o outro rapaz terminasse de salvar a menina que tanto amava. Enquanto corria, e sentia o fogo flambar o seu pelo, tentava raciocinar tudo o que aquela curta conversa lhe trouxera de informação. Clara estava em algum ponto não muito distante; a menina miúda e magrinha não era páreo para um prédio inteiro sendo carbonizado. Contudo, o mais alarmante eram as péssimas notícias que recebera de Camila. Era difícil de acreditar, mas as expressões tristes de Amélia e Alex só podiam significar que a ruiva estava morta àquela altura do campeonato. O peito apertou ao se dar conta daquilo; mais uma pessoa inocente que tinha a sua vida tirada por causa do Projeto.

    Entretanto, não teve sequer tempo de alimentar o seu luto antes de sentir a pele finalmente arder na brasa. Apertou o passo, tentando fugir do calor intenso, mas não havia para onde escapar. Um perfeito inferno em terra, ele comparou, onde pagaria todos os seus pecados. A ardência era o primeiro estágio; e ardia muito, em diversos lugares do corpo e de forma tão inquietante, que esquecera-se momentaneamente dos outros ferimentos.

   O medo de não conseguir sair começou a correr ao seu lado.

   — Clara! — exclamou, com um tom quase implorado. Precisava encontrá-la nos próximos minutos, ou então tudo estaria acabado. — Clara!

   A dor começou a atordoá-lo, como se a morte acariciasse seu corpo, chamuscasse seus pelos e cozinhasse sua carne. Correr já não fazia mais nenhum sentido.

   — Clara!! — gritou com a sua voz mais potente.

   Nenhuma resposta, porém. Apenas o ensurdecedor barulho do crepitar do centro de pesquisas. Parou de correr; precisava voltar, não havia…

   — Socorro…

   — Clara! — entusiasmou-se, ao escutar uma voz quase sussurrada não muito longe.

   E, não muito longe, lá estava ela, encostada em uma parede, onde por um milagre as chamas tinham resolvido poupar. Tossia e suava sem economia,  os olhos semiabertos e os músculos flácidos, pegos pela desistência da menina.

   A fera se aproximou rapidamente, colocando a menina de pé em um ato súbito.

   — Léo…? — Clara pareceu acordar de um transe; a ideia de morte iminente desaparecendo de seus pensamentos. — Léo! — Ela o abraçou, o que a fez se sujar de sangue. Léo grunhiu de dor com a pele sensível ao toque; as queimaduras ganhando força. — Você tá horrível!

   — Sim, precisamos sair daqui agora, antes que a gente fique preso.

   — Espere — a menina se afastou e apontou para sua perna, para a tornozeleira que Léo conhecia muito bem suas habilidades. — Por favor…

   Usando somente um de suas garras afiadas e sem fazer nenhum grande esforço, Léo arrebentou a tornozeleira que prendia os dons da colega. Clara suspirou, os olhos fechados, sentindo que sua adaptação corria solta por seu organismo.

   — Obrigada… — agradeceu ela. Corrugou a testa, analisando uma segunda vez o estado deplorável em que o amigo se encontrava, e, sem avisar, aproximou as mãos do corpo do animal.

   Era mágico… Léo não possuía uma definição melhor para a sensação de estar sendo curado pelos dons de Clara. Nada no mundo era tão esplêndido. A adaptação da garota mais parecia um dom divino; era até estranho de se imaginar que se tratava de uma criação humana. Ele duvidaria, caso os efeitos não estivesse acontecendo em seu próprio corpo: os furos de bala desapareceram, o pelo se tornou mais lustroso, a orelha sangrante regenerou, assim como as queimaduras.

   Ele também suspirou.

   — Ah… Eu que agradeço — a  voz grave ganhou um tom pacífico; toda a fúria pareceu ir embora com os machucados do corpo. Entretanto, o fogo ainda os rodeava, preparado para fazer novos estragos na derme dos dois. — Vamo, suba nas minhas costas.

   Clara não aguardou por mais uma pedido para se colocar sobre as costelas do bicho. Atrelou as mãos em meio a pelagem amarela escura e encolheu o corpo, deitando sobre o animal de modo a se esconder o máximo que conseguiu.

   — Vai! — pediu ela, num sobressalto.

   A fera se jogou novamente ao fogo, correndo com todas as suas energias em direção a saída. Estava mais forte agora, não precisava mancar, o que lhe dava um impulso maior, digno de qualquer outro felino da natureza. Além disso, o sangue que tinha perdido durante aquela noite também não fazia mais falta; estava inteiro, em todos os sentidos.

   O caminho de volta estava incrivelmente mais quente; o fogo parecia ter encontrado uma forma de consumir todos os materiais das parede, e era apenas uma questão de tempo para que o prédio inteiro despencasse, com a base enfraquecida. A dor das queimaduras voltou a aparecer, assim como o suor e a sensação de cozimento. Contudo, ele persistiu. Passou pelo local onde havia encontrado Amélia, contornou os corredores principais, por onde ele sabia que também tinha passado e alcançou as escadas.

   E em um salto, deixou o inferno para trás.

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