Enfermaria
— Por onde vamos?
Diante da pergunta, Amélia analisou o corredor que que se dividia para sua direita e esquerda. Não tinha nenhuma pista de por onde avançar, a escolha seria feita sem nenhum tipo de embasamento e com uma torcida fervorosa para que os deuses estivessem do seu lado.
— Aqui — apontou para a direita e retomou a corrida, sendo acompanhada por Alex, que, com a adaptação desativada, não conseguia alcançar grandes velocidades.
De certa forma, ela agradecia a lentidão do garoto, pois caso contrário estaria com seus peitos ardendo de tanto esforço. Nunca fora das pessoas mais atléticas do Colégio Antônio Augusto, porém, estava tendo que se adaptar àquela rotina de escapes desesperados; uma fuga que parecia se estender infinitamente.
Enquanto corria, sentiu o peito dividir-se entre a esperança da liberdade e a contínua sensação de que mesmo o mais grande dos esforços seria em vão. Parecia bem mais fácil dar meia-volta e retomar o caminho até os dormitórios, sem questionamentos, nem revoltas. Lutar parecia significar, apenas, um derramamento inconsequente de sangue inocente, e que, no fim, resultaria em uma recaptura pelos blacks. Lembrou-se do aviso da cientista. Andréia não parecera brincar quando fizera a sutil ameaçada em forma de aviso, poucos minutos atrás. Terminar como a garota vampira. Amélia não era capaz de manter a calma diante daquele futuro possível. Imaginar Léo, Pedro, Clara, Alex e tantos outros envoltos por uma poça de sangue era, também, um bom motivo para aceitar a vida dentro de um centro de pesquisas, integralmente ligada ao Projeto Gênesis.
Não!
De supetão, afastou os pensamentos negativos. Ali não era sua casa, e nunca chegaria a ser, ela tinha certeza. Focou na imagem do dormitório, branco, sem vida, sem intimidade; um lugar que, nem de longe, ela poderia chamar de quarto. O seu quarto, contudo, a esperava na casa de Nanda. Não encontraria o seu violão, nem os presentes de quinze aniversários, ela sabia; tudo tinha sido queimado. Mas ela merecia presentes novos, assim como todos os outros, que acreditavam naquele plano de fuga.
Não demorou muito para alcançarem a escada que levava para o andar inferior. Desceram com toda a velocidade que requeria a situação. O que encontraram, foi um andar quase idêntico ao anterior, com os mesmos corredores aparentemente vazios e as dezenas de portas. O local tinha sido evacuado com uma pressa invejável, nenhum pesquisador estava ali para recebê-los, o que, de certa forma, confortava-a.
A parte do plano que havia sido destinada aos dois não era a das mais trabalhosas; devia encontrar Clara e, depois, descer mais um andar, onde encontraria Camila.
Diminuiu a velocidade, de modo a poder ler os títulos dispostos acima das portas e observar pelas pequenas janelinhas que algumas delas possuíam. Laboratórios, farmácias, escritórios… Amélia corria os olhos nas identificações, enquanto percorria o local a passos largos. Uma infinidade de salas que parecia se multiplicar junto ao tic-tac do relógio, e que jamais a levaria de encontro a sua amiga.
Estava errada, para seu contento. Quando já começava a desconfiar das referências dadas pela pesquisadora, deparou-se com uma porta diferente. Maior, mais ampla, com o nome Enfermaria escrito em letras bem legíveis, em tom vermelho, acima do batente.
— Só pode ser aqui… — disse, em um pensamento alto, no que Alex concordou com um sussurro.
Sem paciência para cerimônias, escancarou a entrada e seguiu adiante. Um ar gelado anunciou que a refrigeração a partir dali era intensificada. Mais um longo corredor, com mais dezenas de portas; o local parecia se repetir a cada porta que abria, como se assistisse ao ampliar de um fractal. As paredes eram mais brancas naquele ponto, e o piso, impecavelmente limpos.
Correu até a primeira porta, na qual, próximo a maçaneta, uma etiqueta retangular havia sido colada.
— Nicolau Santana… — ela leu o nome escrito. Em seguida, olhou pela pequena vidraça. Um homem de aproximadamente trinta anos estava deitado em uma cama de hospital, dormindo, aparentemente. Um talho estendia-se por sua bochecha direita em um corte transversal, que ia da órbita até o ângulo da mandíbula. Uma das pernas estava engessada, enquanto o braço esquerdo exibia um extenso hematoma.
— Aqui é Ricardo Alves — complementou Alex, olhando pela porta ao lado. Correu até a parede oposta, onde também se encontrava outra porta. — Josimar Pereira… — Encarou a janelinha da porta, averiguando o dono do nome da etiqueta. — Tão todos feridos.
A mente da menina se iluminou.
— Os blacks! É aqui que recebem os cuidados médicos!
— Ah… Que bom, então não preciso sentir pena.
— A Clara. — Amélia começou a andar pelo corredor, inspecionando, com mais agilidade, cada uma das etiquetas. — Ela deve tá em um desses quartos. Tem que tá.
Contudo, contrariando as suas expectativas, o que se sucedeu foi uma sequência de etiquetas desesperançosas, com diversos nomes masculinos desconhecidos. Em certo momento, começou a averiguar, também, se todas as identificações estavam corretas, se realmente haviam homens dentro dos quartos, e o que encontrou foram mais corpos mutilados. Cortes, queimaduras, perfurações, amputações… Nenhuma Clara.
— Mas que merda… — desesperou-se ela, sentindo as opções de porta acabando gradativamente.
— Talvez tenha uma outra área — Alex disse, acalmando-a. —, onde… Sei lá, onde fique apenas os adaptados feri…
— Achei!
E lá estava ela; a tão aclamada etiqueta próxima a fechadura, com as sequência de palavras que Amélia desejava tanto encontrar: Paciente 20. Colou o rosto na janelinha, arregalando ao máximo para enxergar o outro lado, e avistou uma Clara pálida e entediada, fitando o teto, enquanto, deitada, brincava com os dedos sobre o abdômen. A típica vestimenta de hospital cobria seu corpo, e a tornozeleira se fazia presente em sua perna direita. Estava sozinha, assim como os outros acamados. Não era a amiga mais saudável, a que ela vislumbrava pela porta, mas o que importava era que era ela, e estava viva acima de tudo.
Amélia girou a maçaneta e surpreendeu-se ao perceber que a porta não estava trancada. Surpreendeu-se ainda mais ao se tocar que Andréia, a pesquisadora amiga de Paulo Ricardo, tinha falado a verdade. Clara estava salva e restava, apenas, Camila.
Antes que pusesse os pés dentro do quarto, entretanto, um grande estrondo reverberou pelas paredes, atraindo sua atenção para o pequeno tremor que se formou.
— A explosão do gás — lembrou-se Alex, com um tom contente. Aquilo significava que Graziela e Élida haviam obtido sucesso.
Contudo, o contentamento durou somente os curtos segundos até a segunda explosão; mais próxima de onde estavam, pareceu acontecer a poucos metros. Tudo em volta balançou, como se, por um breve momento, um terremoto tivesse acontecido. Logo sem seguida, mais duas, quase simultaneamente, porém, mais distantes.
— O que foi isso? — ela questionou, preocupada.
As informações de Andréia tinham sido límpidas: o tanque de gás ficava no térreo, e tratava-se de um tanque único, o que não condizia com quatro explosões.
— Amélia? — Clara observou a amiga pela pequena fresta aberta na porta. Ergueu-se da cama, com uma face carregada de dúvida, como se encarasse uma cachoeira em meio a dunas de um deserto. — Amélia, é você?
Mas Amélia não respondeu; sua atenção pousara inteiramente sobre os barulhos que haviam chegado aos seus tímpanos. Tudo se sucedendo em um piscar de olhos.
Como se para confirmar que algo estava fora dos eixos, as luzes se apagaram, sobrando acesa a iluminação de emergência. O corredor ganhou um tom avermelhado, penumbroso, o que obrigou os olhos da menina a se adaptarem ao novo ambiente. O silêncio, porém, foi interrompido; uma sirene estridente e muito alta tomou o ar, alarmando o seu coração já agitado. Uma sensação de que precisava agir com pressa a cobriu dos pés a cabeça. Não era para ser daquela forma, ela podia sentir.
— Precisamos… — A imagem de Camila surgiu em sua mente. — Tem alguma coisa acontecendo. Temos que ser rápidos!
— Amélia! — Clara exclamou, tendo de se esforçar para que voz se sobrepusesse ao alarme. Botou os pés no chão e correu até a porta. — Como você…?
Amélia pegou a amiga pelo pulso e a puxou para fora do quarto.
— Não temos tempo. Precisamos fugir. Depressa! — disse, direta. Fitou o ombro da garota, onde tinha sido atingida pelo tiro, como Márcia lhe informara. Estava devidamente cuidado com gaze e curativos; ela parecia bem, na medida do possível. — Cê consegue correr? — Sem entender o que estava acontecendo, Clara concordou com a cabeça. — Então vamos.
— As escadas! — Alex apontou o caminho por onde haviam chegado. — Eles levam pro andar de baixo.
Retornaram, deixando para trás as dezenas de quartos ocupados pelos blacks. Abriram, outra vez, a porta principal da enfermaria, que dava para o corredor principal do andar, por onde poderiam descer. Era o que estava no plano. As coisas não estavam seguindo mais o plano, contudo, e Amélia só percebeu o que acontecia ao abrir a porta.
Uma onda de fumaça cobria toda a passagem, e não tardou, com a passagem agora livre, a avançar para o resto do corredor. Densa e quente, a fumaça desfilou, exibindo toda a sua toxicidade. Porém, o maior problema não era a nuvem de gás carbônico, mas sim a sua causa. A fumaça era apenas a comissão de frente de um carro alegórico paralisante: as chamas começavam a tomar conta do corredor, ganhando força e extensão. Amélia sentiu o calor afagar-lhe as bochechas e o pavor, seu coração. O cheiro das cinzas de sua casa invadiu seus pulmões.
— Vamos sair daqui — Alex anunciou, otimista. — As chamas estão nas paredes, dá pra passar pelo centro, correndo.
Clara concordou, apertando a mão da amiga como se dissesse estar pronta para enfrentar o fogo.
— Espera. — Não queria acreditar no que acontecia. — A Camila.
Balançando a cabeça em negação, Alex olhou de forma firme, o mais profundo que pôde, dentro de seus olhos.
— O fogo tá se alastrando rápido, não dá pra saber se vai ter como voltar. Precisamos garantir que…
— Não! — Amélia alternou entre os dois amigos. — Ela precisa de ajuda… Não, não podemos fazer isso!
As chamas continuavam avançando, certas de que não seriam barradas por nada. Não demorou para que começassem a tossir compulsivamente com a fumaça fazendo o que melhor sabia fazer.
— Não adianta salvar ela se todos forem ficar presos — o rapaz bateu o martelo.
Entretanto, ela não estava inclinada a ouvir.
— Ela é uma de nós.
— Você sabe que ela não concordaria com isso, Amélia… — Clara começava a entender a situação, para a felicidade de Alex e descontento de sua melhor amiga.
Sentindo-se vencida, Amélia usou a sua última carta, que ninguém poderia discutir: o seu livre arbítrio. Desatrelou os dedos dos de Clara e encarou Alex, decidida e um tanto furiosa. No fundo, entendia o risco da situação, e sabia que estava indo contra a opção mais lógica, mas não poderia dormir livre sabendo que tinha deixado uma amiga para trás. A face carrancuda, além de mostrar sua indignação, escondia o medo de fazer o que seu coração pedia.
— Podem subir, então — cuspiu as palavras. — Eu desço sozinha.
E voltou-se para o corredor; para as labaredas que forravam as paredes e teto, tingindo tudo com uma incandescência feroz. Tossiu mais uma vez, pegou o máximo de ar que encontrou em meio ao gás e inclinou o corpo para pegar impulso e, então, transpassar o calor.
— Me desculpe por isso — ouviu, antes que pudesse dar o primeiro passo.
A garota seguiu a origem da voz; voltou-se para o amigo loiro e gordinho ao seu lado. Alex, porém, não estava mais da mesma forma. O corpo estava em pleno processo de transformação, inflando como um balão de festa. O gigante estava de volta.
Com um golpe rápido, Alex segurou a cintura da garota e a puxou para cima, impedindo-a de prosseguir com a loucura.
— Me solta! — ela esganiçou, chacoalhando pernas e braços.
— Daqui a pouco — ele respondeu, sem perder o bom humor. — Clara, consegue me seguir?
A menina sorriu um sorriso tenso.
— Vamos.
— Me solta! Agora!
Alex disparou a correr, mantendo-se sempre no centro do corredor, com uma Amélia furiosa entre os braços e uma Clara acabada de sair de um repouso em seu encalço. A fumaça cegava-lhe, ardia o peito tão quanto o calor ardia o couro. Estavam longe da saída, longe demais para o seu gosto, mas confiava que daria certo.
Tinha que dar certo.
Era sua única opção.
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