Condomínio de luxo
A porta se abriu sem nenhum aviso prévio, o que levou o garoto a se levantar subitamente. Léo aprumou o corpo sobre o colchão, coçou as pálpebras e se espreguiçou. Tentou não se irritar com a atitude da mãe; há muito tempo ele não a via fazer aquilo, entrar em seu quarto sem as habituais batidinhas na porta, ou ao menos com um anúncio. As coisas tinham mudado e ele sabia muito bem o porquê; o olhar reprovador dela também deixava claro a nova realidade.
Ele pegou o celular. O relógio não marcava nem sete horas da manhã, o que não fazia muita diferença para ele, já que aquela noite tinha sido angustiosamente longa. Ele não pregara o olhos em nenhum momento, a morte de Mônica o atormentara madrugada afora. A cena se repetia a qualquer tentativa sua de descansar a vista exausta — e foram incontáveis tentativas, tantas que Léo sequer se lembrava em qual momento entregara o pontos à insônia.
Mas sua mãe não parecia disposta a dar atenção àqueles detalhes. Tudo que Marília desejava era ter a decisiva conversa com seu filho, conversa essa que tinha sido postergada até aquela manhã apenas por um pedido dele, mas que não passaria daquele momento. A mulher adentrou o cômodo séria, cruzou os braços e permaneceu cabisbaixa e pensativa por um período longo demais para o que Léo conhecia de suas atitudes. Seu temperamento com o filho sempre fora expansivo, aberto; não costumava refletir muito quando se tratava de dar sermões no garoto. Mais uma prova de que as coisas haviam mudado.
— A Márcia saiu, o sol não tinha nem acordado ainda — contou, levantando a cabeça. — Disse que ia em casa, pegar algumas coisas. Depois falou que mais tarde encontrava você… Que sabia onde te encontrar… — o tom era áspero, amargo. — Mais e mais mistérios, não é Leonardo? — O rapaz permaneceu calado. Fitava-a com o olhar cansado; tinha olheiras proeminentes. — Pedi pra ela deixar o endereço, mas eu também quero o número dos pais dela, quero conversar com eles.
— Mãe…
— Aliás, não sei porque ainda não fiz isso. — Começou a gesticular. — Acho que é porque eu ainda tava tentando confiar em você. Mas pelo jeito não dá, né? Você mudou muito, Leonardo. Muito! Mas… sabe o que me deixa mais triste? Eu não sei o motivo! — desabafou, deixando que os olhos marejassem e a voz se tornasse embargada. — Você some, volta como se nada tivesse acontecido, não me conta o que aconteceu nesse meio tempo e passa a agir feito um estranho!
Ele mirou o chão, sentindo o peito apertar.
— Não tem jeito d’eu explicar…
— Arrume um jeito! — o grito saiu mais alto do que ela desejava. Respirou fundo, buscando centrar suas emoções. — Olha o que esses segredos estão fazendo, Léo. Uma amiga sua tá baleada no hospital, liguei pra sua diretora hoje e parece que outra garota, que estava no sequestro, desapareceu de novo. — Já haviam sentido a falta de Mônica, pensou ele. — O que mais vai precisar acontecer pra você se abrir comigo? Alguém morrer?
— Ligou pra diretora? — de forma inevitável, a pergunta soou preocupada.
— Alguém precisa avisar que a menina tá no hospital. Eles devem ter o telefone dos familiares. — Marília observou o filho. Os trejeitos, as expressões faciais, a própria face… De vez em quando a mulher se pegava espantada com a semelhança. Léo tinha muito de seu pai.
Lembrava-se da conversa que havia tido com Fernando dias antes do acidente. Seu finado marido se mostrara preocupado com Léo; em como seria o futuro do garoto. Parecia até que era uma previsão do que acontecia. Talvez as coisas fossem diferentes caso ele ainda estivesse ali.
— E então? — voltou a questionar.
Léo suspirou antes de dizer:
— Eu vou contar. Não agora, por favor.
Ela coçou a cabeça.
— Leonardo Casteliori…
— Eu só preciso conversar com meus amigos — mentir não era nada confortável. — Por favor, só me deixa conversar com eles hoje. Quando eu voltar, a gente conversa de novo. Por favor, mãe, confia em mim…
Uma sensação ruim cobriu a derme da mulher; uma dor profunda, um medo iminente de perder seu tão querido filho.
— Cê promete? — Não confiava como outrora, mas Léo merecia uma última chance. Pelos velhos tempos. Precisava esperar, por mais que aquele sentimento desagradável tentasse convencê-la do contrário. — Promete?
Ele balançou a cabeça, afirmando com veemência. Entretanto, a má sensação continuava ali.
…
Desmoronando.
Era a sensação que Léo tinha ao analisar sua vida e ao se lembrar da última conversa com a mãe, enquanto a manhã quente de sábado chegava ao fim e a cidade fervia de carros e pedestres. Assistia a movimentação urbana, ao passo que o coletivo se aproximava do ponto onde desceria; a cidade nunca parecera tão viva e, ao mesmo tempo, tão artificial. Olhando as pessoas que se amontoavam na minúscula porta do ônibus, lutando por um espaço para descerem assim que o veículo parasse, percebeu o quanto as mentes daquelas pessoas estavam programadas a viver o cotidiano. Era incrível como apesar de tudo o mundo permanecia igual.
Para ele, olhar para si era como admirar um edifício qualquer, que jamais chamaria atenção por ser belo, ou por ser palco de grandes eventos, mas que aos poucos ia se partindo, rachando as paredes, enchendo-se de infiltrações até que chegasse ao ponto de vir abaixo. Talvez, só então, ficaria conhecido; após sua vida normal virar apenas entulhos. Talvez fosse aquilo o necessário para chamar atenção e mudar o destino de seus amigos — tantos outros edifícios no mesmo estado, com o mesmo abandono.
Aquelas reflexões ganhavam espaço em sua cabeça em uma frequência cada vez maior desde a noite passada. E não era de se espantar que tivessem voltado a tona naquele momento, enquanto ele saía do coletivo, carregando nas costas a mochila abarrotada de roupas e o Rex, acompanhado por um Pedro tão reflexivo quanto.
As horas de sermão da noite anterior ainda ecoavam no subconsciente de ambos. Tia Pâmela havia colocado Pedro contra a parede. Não fora uma cena agradável de acompanhar: Pedro em prantos, enquanto sua mãe implorava por explicações que fizessem sentido. Não as teve; Pedro aguentara firme a pressão e mantivera o segredo guardado como Léo tanto tinha pedido. Contudo, a culpa o consumia desde então; a face se inclinava para baixo, dando origem a uma expressão de tristeza nunca antes exposta no rosto do menino. As palavras estavam raras durante aquela manhã, as constantes brincadeiras pareciam lembranças de um passado remoto. Pedro destoava do resto da cidade tanto quanto o amigo que acompanhava.
Enquanto circulavam pelas calçadas do enriquecido bairro, cruzando com dezenas de trabalhadores que saiam para o almoço ou terminavam o expediente, os dois garotos se sentiam como seres de outra dimensão. Como se finalmente houvessem percebido que a vida normal, o dia-a-dia monótono de um mês atrás, não era mais uma opção.
Teriam que se adaptar, como Janaína estava fazendo.
— Tamo perto — anunciou Léo, analisando a rua em que entravam. Vários condomínios se estendiam a perder de vista, altos o suficiente para que bloqueassem os raios solares e trazessem um clima ameno para o local. Pela rua, ipês sem flores pipocavam aqui e ali, e uma sete-copas com suas gigantescas copas ajudava a refrescar o sábado ensolarado.
Caminharam por mais alguns instantes, carregando consigo um sentimento estranho; o medo do desconhecido, a mesma sensação que haviam sentido ao entrar pela primeira vez no galpão abandonado. Porém, aquele setor, erguido ao lado do centro da capital, estava longe de ser um lugar abandonado. Os dois lugares não compartilhavam de nenhuma parecença, por mais que o motivo do rapazes estarem ali fosse o mesmo de outrora.
Pararam, já quase no final da via. Léo analisou o poderoso portão que se erguia a sua frente. Em meio aos prédios contemporâneos, um condomínio fechado ganhava forma, esbanjando contidamente sua modernidade em seus tons de branco e marrom e em seus jardins bem cuidados. Não era um edifício, porém não perdia para nenhum em beleza.
— Aurora Ville… — Pedro leu a pequena placa no portão de entrada, aplicando um grave sutil em sua voz, de modo a imitar narradores de filme. — Não esperava menos de nossa patricinha.
Léo riu, incentivando o resquício de bom humor do amigo. Entretanto, o garoto não deixava de ter razão; aquele condomínio luxuoso calçava perfeitamente na personalidade da garota. Era bastante imaginável a cena de uma Janaína trafegando, em máxima plenitude, no seu habitat natural.
— Posso ajudá-los? — Os meninos foram surpreendidos por uma voz grave como o reverberar de um trombone. O homem que surgiu da portaria, trajando um terno que já começava a sofrer com os músculos avantajados de seu dono, caminhou até os dois com a feição carrancuda típica de guardas de segurança. Os óculos escuros e o comunicador na cintura completavam a vestimenta.
— É… — A presença do brutamonte desestabilizava qualquer pessoa que se julgava segura de si; o que não era o caso dos dois amigos. Léo começou a falar, antes de perceber que não tinha uma frase pronta em mente. — Bom…
De postura inabalável, o segurança alternou o olhar entre eles.
— Estão procurando alguém?
— Sim — confirmou o loiro.
— Janaína — Pedro completou.
O homem pareceu refletir sobre algo, antes de voltar a questionar:
— Janaína Sonnenberg? — Imediatamente, obtivera dos meninos um aceno ligeiro com a cabeça de forma quase coreografada. — Mas… — Retirou o comunicador da bainha, enquanto prosseguia com o pequeno interrogatório: — e quem são vocês?
— Leonardo e Pedro — esclareceu o primeiro. — Somos colegas de escola.
O aglomerado de músculos fantasiado de guarda pareceu refletir uma segunda vez, o que fez com que uma vontade imensa de revirar os olhos se apossasse de Léo. Não era muito difícil chegar a conclusão de que dois garotos magrelos não se tratavam de uma ameaça — por mais que fossem.
— Okay — disse, por fim. — Fiquem aqui um instantinho.
E saiu, em direção a portaria, ao mesmo tempo que iniciava uma conversa pelo pequeno aparelho em suas mãos. Parecia ser confiável, pensou Léo, mesmo que os óculos escuros ocultassem o olhar sincero, tão necessário para conclusão de uma primeira impressão. O garoto também se pegou refletindo em como toda aquela situação lhe deixara alerta para pessoas desconhecidas; todos eram inimigos, até que se mostrassem confiáveis. Acreditar ingenuamente estava fora de cogitação, não iria colocar sua liberdade e a de seus amigos nas mãos de outras pessoas; Tomás tinha sido a última decepção.
Plantados em frente ao portão, os garotos iniciaram uma análise mais detalhada do condomínio. Além do brucutu de terno, outros três guardas faziam a vigília da portaria. A rua era movimentada, devido a importância do bairro. Os muros da compropriedade, altos o bastante para chamarem atenção pela altura, intimidavam tão quanto os serviçais engravatados.
— Um pouco exagerado, não? — Léo indagou.
— Pelo menos parece um lugar seguro — falou, esperançoso em receber um gesto de concordância do amigo. Não recebeu. — Cê acha que não?
— Me acompanhem, por favor — o segurança se sobrepôs. — A senhorita Janaína está esperando vocês. — Seguiu portão adentro, sendo imitado pelos adolescentes. — Casa número sete — apontou para a rua que se formava do outro lado do portão.
E ao levantar a vista procurando a tal casa número sete, Léo não fora capaz de não se encantar com o que via. O condomínio parecia um mundo a parte; de nada lembrava as casas comuns de Goiânia. Grandes jardins se estendiam, conectando as frentes de todas as residências como se todas fossem pequenas partes de um todo. As casas não eram novas, a arquitetura estranha — a qual Léo não sabia reconhecer — deixava transparecer que o local já carregava uma história de vida. Contudo, as moradias estavam conservadas de uma forma surpreendente, como se tivessem sido construídas nos últimos anos. Eram belas casas; mansões, o garoto diria. Tudo com um ar de requinte que Janaína fazia questão de exibir para o mundo além dos portões do condomínio.
— Uau… — Pedro deixou escapar, verbalizando a expressão perfeita para o que Léo também sentia.
Demoraram alguns instantes para que se recompusessem e prosseguissem pela rua. O caminho era curto, e as casas, que pareciam competir entre si em um concurso de beleza, foram um excelente distrativo na rápida caminhada. E lá estava ela, não muito distante da portão de entrada; a mansão número sete.
A casa de Janaína não diferia muito das demais. Os mesmos ares requintados, as mesmas plantas ornamentais nos jardins frontais, a mesma arquitetura estranhamente bonita. Era grande, como tudo ali; das portas às janelas. Léo se sentiu desconfortável, pequeno diante da residência de sua colega. Olhou para Pedro, que mantinha o queixo caído e os olhos vidrados, que quase brilhavam de admiração.
— Eu espero que ela tenha piscina… — pontuou ele, sem tirar os olhos da casa.
O loiro suspirou, ajeitando a mochila nas costas; o ferimento no ombro ainda doia.
— Vamos descobrir. — Foi até a porta e apertou a campainha.
Uma inquietude o corroía por dentro. Repreendeu-se mentalmente por aquilo, pois não havia sentido para todo o nervosismo que sentia. Afinal, era apenas mais um abrigo na fuga contra os blacks, não tinha nada de especial em estar ali, tinha?
A porta se abriu e uma Janaína séria apareceu por ela. Estava como os garotos a conheciam; as mesmas roupas, maquiagem e cabelo bem cuidado. A loira permanecia impecável até mesmo dentro de casa. Passou os olhos sobre os dois rapazes, que permaneceram fisicamente estáticos, contudo, a inquietação psíquica ganhava força. Ela arqueou a sobrancelha, ao passo que um leve sorriso debochado quebrava a seriedade em sua face.
— Então…? — apontou para dentro da casa. — Vão ficar aí, parados? Entrem!
Léo, meio sem jeito, um tanto enrubescido, entrou. Pedro veio logo depois, dizendo, bem mais expansivo que o amigo:
— Bela casa.
— Obrigada — agradeceu Janaína, fechando a porta e seguindo de guia sala de estar adentro. — Onde tá a Márcia?
— Ela foi em casa, pegar algumas coisas. Deve tá quase chegando — respondeu Pedro.
A menina concordou com a cabeça.
— Bom… essa é minha casa.
O primeiro cômodo, por si só, já tirava o fôlego. Os móveis e instalações, tudo em tons de madeira, distribuíam um luxo pelo ar. Léo se pegava admirado a cada instante que focava a vista em um novo objeto. Janaína era mais rica do que ele esperava.
— Por que cê estuda no Antônio Augusto? — a pergunta saiu de supetão de sua boca. — Quer dizer, olha isso! Sua família tem condições de te colocar na melhor escola da cidade.
— Questão de afeto, garoto — uma voz masculina surgiu. Léo se assustou, não esperava que a resposta viesse de outro lugar. Entrando por uma das portas, um homem de meia idade, com uma barriga de saliência singela sob a camisa social, cabelos escuros, porém de pele tão clara quanto Janaína, surgia de mãos dadas com uma cópia de quarenta anos da garota. — Também estudamos no Antônio Augusto.
— Foi lá que nos conhecemos — a mulher ao seu lado terminou de esclarecer, envolvendo o homem com um abraço. — Temos um carinho especial por aquela escola, além de sabermos que se trata de uma boa escola.
— Esses são meus pais, Lúcio e Cristina — Janaína apresentou. — Como eu já disse, eles já sabem de tudo. Eu contei tudo.
Aquilo ainda soava como loucura para Léo.
— Sim, sim! — Cristina levantou a voz, esboçando uma expressão de inconformação. — Já sabemos de tudo. É uma tremenda injustiça isso. Quando a Jane me contou o que estava acontecendo… Deus, eu fiquei muito triste por todos vocês.
Lúcio se aproximou mais.
— Mas agora é tudo diferente — afirmou ele, com otimismo nas palavras. — Vocês estão seguros aqui, contratei mais alguns seguranças, estão todos bem treinados. — Olhou para sua filha. — Como chamam?
— Léo e Pedro — ela respondeu prontamente.
Os dois garotos permaneciam estagnados, sem reação diante daquela novo cenário. A situação parecia saída de sonhos mais absurdos.
— Léo e Pedro… — o homem pareceu refletir. Olhou fixamente em Léo, com um meio sorriso amistoso. — Fique a vontade, garoto. Vocês não estão sozinhos nessa. — A mão pousou sobre o ombro do menino. — Não mais.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top