Compreensão
— Afe… Tá na hora dele acordar — Léo escutou uma voz, longe, como se tivesse uma parede entre ele e o som.
— Espera! Cê sabe o quanto ele tava cansado, Pedro, deixa ele dormir o quanto for preciso — ouviu mais alguém dizer; as vozes cada vez mais próximas. Estava acordando.
— Ele precisa ver o resultado da loucura dele logo! — Pedro agitou-se, o que levou ao despertar completo do amigo. Léo inspirou profundamente, abrindo as pálpebras, resmungando e enrugando a glabela ao se deparar com a luz que entrava pela janela. Moveu-se na cama de forma lenta. — Até que enfim! — o garoto gritou, irritando a audição do loiro. — Bem vinda ao mundo, bela adormecida!
Ele piscou algumas vezes, até seus olhos se acostumarem com a intensidade de luz, verificou o local, era o quarto que Janaína tinha reservado para ele e Pedro. Não se recordava direito do que tinha se passado depois de seu momento de fúria; saíra do estádio completamente atordoado, o mundo girava ao seu redor, os pensamentos rodopiavam soltos na mente como um grande tornado em que sua consciência se encontrava no olho do redemoinho, tentando capturar no vento alguma ideia que pudesse o botar de volta a realidade. Por fim, depois de muito correr para longe do estádio, assegurando que nenhum black o encontraria, percebeu que ele também não conseguia se encontrar; estava perdido na cidade, absorto em uma embriaguez sentimental. Não viu a hora em que retirara o celular do bolso da calça rasgada e ligara para Pedro, pedindo por ajuda. Depois disso, sentou-se em um canto qualquer e aguardou; as lembranças se tornaram borrões a partir daquele momento, o cansaço tinha vencido.
Contudo, o que importava para ele é que estava bem. Encarou seu amigo, sentado na cama ao lado com um glorioso e espontâneo sorriso na face.
— Oi… — limitou-se Léo, ainda embebido de sonolência.
— Que oi o quê, moço?! Animação!! — Pedro exclamou, enquanto dava um salto para cima do amigo, fazendo a cama de cama elástica. Abraçou Léo com força. — Eu te amo! Minha vontade é de te dar um beijo!
— Não… — Léo pediu. — Que horas são?
— Quase duas da tarde — Janaína respondeu. Léo mirou sua atenção para ela, que também estava sentada na cama de Pedro, observando com um sorriso contido as travessuras do garoto. — Você dormiu dezessete horas seguidas.
— Cara, o que cê vez foi…. Fantástico! Maravilhoso! Eu tô até agora sem acreditar… — Havia um brilho diferente nos olhos do moreno; uma felicidade que o loiro não presenciava fazia uns bons dias.
— Ele tá assim desde que viu as imagens do jogo — contou Janaína.
— E como não ficar?! Você… — Pedro falou, alto demais para quem estava por cima de uma pessoa que tinha acabado de despertar. Porém, quando voltou a falar, o tom era calmo, a voz tinha um quê de gratidão, os olhos tornaram-se mais úmidos: — Cê nos salvou, Léo… — E ouvindo Pedro proferir de forma tão emotiva, Léo teve o alívio de saber que tinha feito a coisa certa. — Eu liguei pra minha mãe — o garoto prosseguiu. —, contei pra ela tudo! Tudo, tudo! Ela não acreditou. — Gargalhou. — Mas eu contei, não estou mais mentindo pra ela. Não preciso mais mentir pra ela. — Uma lágrima escapou de seu olhos, fugindo rapidamente em direção aos lençóis. Pedro, mais depressa ainda, enxugou seu rastro na bochecha.
Léo começou a rir.
— Animação! — brincou ele, ativando novamente o lado imperativo do amigo, que retomou seus pulos sobre o colchão.
— Não acham que tão comemorando cedo demais? — afiada, Janaína questionou friamente. O clima no quarto se esfriou, acompanhando o tom de sua pergunta como se ela também pudesse controlá-lo com seu dom; a alegria se desfez.
Com o banho de realidade, Pedro cessou seus pulos e Léo, seu riso despretensioso.
— Do que você tá falando?! — Mas Pedro não estava a fim de deixar se entristecer sem antes argumentar. — Cê viu as notícias de hoje!
Sentando-se na cama em um pulo, Léo quis entender melhor o que se passava:
— Estão falando de mim nos jornais?
Porém, sua pergunta foi ignorada.
— Mesmo assim, é cedo para comemorações, Pedro. Muito cedo — Janaína retorquiu.
— Cê foi a primeira a abrir o bico pros seus pais!
— Mas… é diferente — ela concluiu, um tanto acuada.
— Alguém pode me explicar essa história dos jornais?! — o loiro quase gritou, porém manteve-se calmo usando as últimas gotas de paciência que guardava.
Contudo, mesmo não gritando, conseguiu ser ouvido; Janaína e Pedro encerraram a discreta discussão e puseram-se a dar novas informações.
— Quase todos os canais, quase todos os jornais impressos — começou a menina.
— Eles foram atrás, Léo — prosseguiu o amigo. — Como você pediu. Tem muita coisa na internet de quando o Projeto Gênesis ainda era público. Eles começaram a perceber que cê não estava mentindo quando encontraram o nome do seu pai e do Paulo Ricardo nas reportagens do Projeto, como cê disse pra eles.
Uma felicidade imensa cobriu todos os pensamentos ruins do garoto, protegendo-o de qualquer preocupação. Seu peito ia e voltava de forma pronunciada, deixando evidente o peso da sua respiração.
— E tem os sequestros, as mortes… Todas estavam sem explicação até o momento, os jornais estão loucos para terem para quem apontar o dedo — ironizou ela. — E cê deu isso pra eles.
Rindo alto, Pedro zombou:
— O mundo pegando fogo e a bela adormecida dormindo!
— Eu fiquei com medo de não funcionar… — ele confessou.
— Já falei, é cedo pra falar que funcionou — outro banho de água fria vindo da garota. — Mas que eles morderam a isca, morderam.
Léo começou a se levantar, botando os pés no chão. Ele sentia o corpo fraco, contudo estava bem melhor do que no dia anterior; a fraqueza agora era apenas física, não emocional, e com aquela fraqueza ele sabia lidar bem. Ainda permanecia usando a mesma roupa rasgada pela transformação, os restos da camiseta tinham sido retirados, certamente pelos dois amigos, mas a calça destruída continuava lá; tinha se tornado um calção cheio de rasgos e desfiados.
— Merda… — Ele fitou os pés descalços. — Eu gostava daquele tênis.
Levantou-se num impulso, forçando as pernas a aguentarem o peso do corpo e soltando um sutil grunhido ao fazê-lo. A mordida de Lucas em seu ombro começava a dar sinais de cicatrização, era mais uma boa notícia.
— Onde cê vai? — perguntou Janaína.
Ele caminhava em direção a porta do quarto.
— Preciso ver com meus próprios olhos — esclareceu, sem parar de andar. Não demorou muito para que ouvisse também os passos dos dois amigos, seguindo-o logo atrás.
Léo, meio manco, meio sonolento, seguiu pelo corredor bonito dos quartos, onde uma meia dúzia de quadros eram expostos nas paredes bem construídas. Passou pelo corredor que dava para o quintal e, por fim, chegou à sala, na qual encontrou Cristina, dando ordens a uma empregada. Ao vê-lo, a mãe de Janaína dispensou a cozinheira para que voltasse a seus afazeres e abriu um sorriso amistoso, como se esperasse ansiosamente pela presença do garoto.
— Seja bem vindo de volta, Léo… — A mulher era uma versão um pouco mais expansiva de sua filha. Abriu os braços, oferecendo um abraço ao garoto, que aceitou, sem jeito, porém de bom grado. — Foi muito corajoso, o que você fez. Parabéns — elogiou, baixinho, no ouvido do menino.
Ele sorriu e agradeceu:
— Obrigado… — Ainda quando abraçado a Cristina, Léo viu Janaína passar e ir em direção ao televisor. — Preciso ver isso, com licença — falou, largando a mulher e se sentando no sofá, onde, logo depois, Pedro também de aconchegou.
A grande tela se acendeu e, ligeiramente, a garota se pôs a procurar um canal de notícias. E, enquanto Léo via as imagens passarem diante de seus olhos, um canal subsequente ao outro, um embrulho estranho percorreu suas vísceras; um medo do que veria, como se não estivesse preparado para a rejeição do restante do mundo. Contudo, cravou os pés no chão e não se deixou levantar, iria encarar o que tivesse que ser encarado, iria aceitar a opinião de qualquer jornal.
Entretanto, a primeira coisa que ele viu não foi um jornal, e sim um programa especulativo, onde uma apresentadora comandava uma mesa de comentaristas. Janaína passou pelo canal no exato instante em que a imagem de Léo em seu estado normal e em sua forma mais feroz preenchia a tela; duas fotos, cada qual cobrindo a sua metade da tela. Ele analisou a sua foto transformado na fera, pela primeira vez tendo a percepção de quem o via de longe, e então compreendeu o pavor de todos. O animal estava distante de ser um ser de aparência amigável, suas feições eram feitas para parecer o pior dos predadores.
— …visível para quem estava lá no momento que ele não queria atacar ninguém — um dos comentaristas falava. — Ele só foi no estádio para dar aquele recado, ele ignorou todas as pessoas e… Coloca aquela imagem do momento que ele pega o microfone — ele pediu, sendo atendido prontamente. Na gravação, Léo partia para cima de algumas pessoas, porém pegava apenas o microfone, como se nem estivesse vendo as pessoas que saíam em debandada. — Tá vendo? Ele ignorou todo mundo, ele só queria passar aquele recado estranho dele.
— Sim, acho que a questão agora nem é mais saber se era uma ameaça ou não, porque isso ficou bastante claro nas imagens — outra comentaristas afirmou, alegrando os ouvidos do menino.
Léo escancarou um sorriso.
— A maioria tão te compreendendo, Léo — Pedro acalentou a alma do companheiro.
— Bom, isso é verdade — a apresentadora concordou com a comentarista. — Vários jornais já começaram a apontar coisas suspeitas no discurso do tal Leonardo, levantando a hipótese de que talvez ele esteja sim falando alguma verdade. O Projeto Gênesis existiu de verdade, e foi supostamente extinto em 2006, de acordo com alguns sites. Encontramos muitas informações desse projeto, que visava a produção de uma melhoria para doenças genéticas, em publicações feitas pela jornalista Ana Amaral, no site Mundo Ciência.
— Isso! — ele comemorou, o sorriso havia grudado em sua face e parecia disposto a não sair mais.
— O nome dos pesquisadores que ele mencionou realmente foram os homens que deram vida a esse projeto. Então, no mínimo, esse garoto estudou muito sobre o assunto pra contar uma mentira bem contada.
— Não, e o mais impressionante é a repercussão que a história ganhou na internet. Várias teorias, várias especulações… — outro comentarista fez seu trabalho.
A euforia do garoto já não cabia mais em seu peito. As imagens de sua entrada no estádio eram passadas e repassadas pelo programa.
— Com certeza iremos ouvir falar muito desse assunto nos próximos dias. Tudo indica que a polícia irá entrar no caso, para encontrar o garoto e averiguar as informações que ele deu sobre a onda de assassinatos que está acometendo a capital do estado de Goiás, como todos nós já estamos cientes… É um assunto que merece sim a atenção das autoridades, pois são muitos crimes sem solução! — a apresentadora, como era de seu costume, entonava suas palavras, de modo a deixar o bate-papo atrativo ao público, porém Léo não via problemas naquilo; afinal, quanto mais o assunto parecesse chamativo, mais pessoas se interessariam em conhecê-lo. — Bom, no próximo blo…
Janaína mudou de canal e retomou a procura por jornais. Mas, mesmo que ela não encontrasse, Léo já estava contente demais com o programa que tinha acabado de ver; apenas ele já lhe daria a esperança que precisava para as próximas semanas. Não tinha notícia melhor que a de saber que, apesar da aparência assassina da fera, as pessoas estavam compreendendo a sua intenção dentro do estádio. Saber disso era o bastante para compensar o perigo de se expor para a população.
Contudo, a loira encontrou um jornal que estava se iniciando. Não demorou muitas reportagens para que tocassem no assunto da invasão ao Serra Dourada por um garoto-felino.
— Após os últimos acontecimentos no estádio Serra Dourada, com as perguntas deixadas pelo discurso do garoto Leonardo, a imprensa nacional iniciou uma grande pesquisa para adquirirem conhecimento acerca do Projeto Gênesis e de suas intenções — a repórter introduziu o assunto. — O Projeto Gênesis foi criado pela extinta Cooperação Goiana de Ciência, a Coogoc, com intuito de atenuar os efeitos de doenças genéticas e degenerativas, aprimorando o intelecto e a cognição de pessoas afetadas. A pesquisa liderada pelo bioquímico Fernando Casteliori e pelo geneticista Paulo Ricardo Ribeiro, apesar de promissora, foi deixada de lado pela Cooperação após a morte de um de seus líderes, Fernando Casteliori, em 2006. Porém, reportagens da revista digital Mundo Ciência insinuam que muitas coisas ficaram por baixo dos panos com o fim do projeto, muitas perguntas sem respostas. As pessoas já começam a questionar se o Projeto Gênesis era apenas o que era exposto pela Coogoc, ou se haveria intenções maiores. Vale lembrar que o garoto Leonardo acusou de ser vítima de pesquisas de aprimoramento genético sem seu consentimento, e afirmou que o Projeto Gênesis continuava na ativa, estando, inclusive, envolvido na onda de assassinatos e sequestros que assustou Goiânia nos últimos meses. Essa denúncia trás para a polícia uma nova linha de investigação para os crimes, até então, sem culpados. Porém, o que preocupa o governo federal é a hipótese de haver pesquisas que violam as leis internacionais, os códigos de conduta da OMS e as recomendações de ética da ONU, o que colocaria o Brasil em uma posição não muito agradável diante das outras nações.
— Tá todo mundo envolvido na merda — retrucou Léo.
— Conversamos com o governador do estado de Goiás, Marconi Perillo — prosseguiu a repórter. —, e perguntamos sobre a possível existência de pesquisas com cobaias humanos no estado. O governador, por sua vez, foi enfático ao afirmar que seu governo não tinha nenhum envolvimento com as pesquisas da Coogoc.
A imagem do governador apareceu na tela.
— Estamos apurando esses boatos no meu gabinete — ele respondeu. —, mas o que eu posso dizer até o momento é que não há nenhum indício que esse projeto seja verdadeiro. E, caso seja, posso afirmar também que meu governo nunca tratou com a extinta Coogoc para apoiá-la em nenhuma das pesquisas que eram feitas lá. Então… caso haja alguma ilegalidade, tal ilegalidade partiu, somente, do lado da Cooperação, privando o meu governo de informações sobre suas atividades.
— Desgraçado… — Cristina atacou. Só então, Léo percebeu que a mulher também acompanhava ao noticiário, sentada em uma cadeira, um pouco atrás dos sofás.
— O que aconteceu? — ele perguntou.
— O governador… — Foi Janaína quem se pronunciou. — Ele é um antigo amigo do meu pai.
— Não só do seu pai, mas da nossa família como um todo! — protestou a mulher. — Ele é o governador e vem com essa conversinha? Por favor, um projeto que envolve dezenas de países e o governador desconhece?
Com um movimento de cabeça, Léo concordou com a mulher. Não fazia sentido seu tio Paulo esconder sua tão querida pesquisa de autoridades como o governador; o geneticista era ambicioso demais para privar seu ego de um aliado tão importante quanto um chefe de estado.
De repente, quebrando todo o cenário de seriedade que tinha ganhado forma na sala, o som da campainha se fez audível.
— Chegaram — Janaína, olhando para Pedro, disse.
Léo analisou a porta e, confuso, perguntou:
— Pera, quem chegaram?
— Eu atendo. — Cristina se levantou e se dirigiu até a entrada.
O loiro cravou os olhos no amigo, com uma cara ameaçadora, exigindo uma respostas. Pedro o encarou de volta.
— Eles me encontraram nas redes sociais ontem — respondeu ele, mas aquela não era a informação que Léo ansiava.
Ele pensou em perguntar mais uma vez, porém, antes que pudesse abrir a boca, Pedro se ergueu, virando-se para a porta, para receber quem quer que estivesse ali. Janaína fez o mesmo e Léo se viu obrigado a imitá-los. Cristina abriu a porta e três garotos surgiram por ela.
— Bem vindos! — ela os recepcionou, cordial.
Mas os dois primeiros garotos não estavam para formalidades; entraram com toda a pressa do mundo, fitando Léo com uma expressão de fúria. Os dois garotos usavam a mesma roupa, tinham a mesma altura e o mesmo topete impecável enfeitava suas cabeças; eram a mesma pessoa, e avançavam como trem descarrilado para cima de Léo.
— Victor?
— Alguém segura ele! — o terceiro garoto, que tinha ficado na porta mantendo a educação, pediu. Léo, rapidamente o observou; era Sandro.
Mas antes que seu pedido fosse atendido, os dois garotos raivosos, um cópia do outro, alcançaram o seu alvo. Uma das cópias de Victor empurrou Léo, jogando-o para trás e fazendo com que ele caísse sobre o piso da sala. Léo sentiu a queda afetar sua ferida no ombro e foi impossível não resmungar de dor.
— Seu idiota! Sabe o que cê fez?! — Victor esbravejou, os músculos da face tensionados, os dentes, travados.
— Ei! — exclamou Cristina. — Sem briga na minha casa!
— Esse idiota estragou tudo! — o Victor que falava tentou prosseguir com seu descarrego de raiva, porém foi impedido por Pedro, que o segurou; a outra cópia ficou parada, esperando por uma ordem, que não veio. — Agora tudo vai ficar mais difícil!
E enquanto Victor dava seu show de exageros, não perdendo a oportunidade de aparecer, Sandro entrou na casa. Alcançou a confusão, chegou perto do menino topetudo e, apenas com um olhar, pediu para que parasse. Victor bufou, tentando se desvencilhar dos braços de Pedro; mas não colocava forças para sair, tudo fazia parte do espetáculo, por mais que sua raiva fosse real.
— E aí? — Sandro cumprimentou o garoto caído, oferecendo a mão enluvada para que ele se levantasse. Léo a segurou e sentiu o corpo ser puxado para cima. Os dois garotos se entreolharam. — Bancando uma de herói sem mim, hein? — Sandro ironizou. Olhou para a roda de garotos com um leve sorriso; cumprimentou com um aceno Pedro e, depois, Janaína. — Agora a turma tá completa.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top