Cinzura

   — Léo! — ele escutou, não muito longe. — Léo!

   Cessou imediatamente a subida, buscando ouvir através das paredes. Porém, não houve nenhum outro ruído, como se a voz fosse nada além que uma ilusão da sua mente; o medo lhe fazendo companhia naquela fuga mal elaborada.

   Decidiu prosseguir com a corrida. Fazia anos que as pernas não doíam tanto, nem que os pulmões ardiam com tanta força. Estava exausto de ver degraus a sua frente e de ter que correr daquela forma, como se aquelas crianças fossem, um dia, mais fortes que todo um programa mundial de pesquisa. E como se não bastasse toda a desgraça, os depósitos de gás haviam ido para os ares, levando junto mais um centro de pesquisas. Aquilo não podia estar acontecendo… Era um pesadelo. Os adaptados não conheciam o prédio suficientemente para que encontrassem tão rápido as tubulações. As peças não se encaixavam.

   O que importava, entretanto, era que havia tido a terceira grande derrota seguida, o que o botava numa posição bastante desconfortável dentro do Projeto. Precisaria de usar todas as suas armas restantes; as que estava guardando para um momento ímpar, como aquele estava sendo.

   Finalmente, chegando ao terraço, Paulo avistou o helicóptero que o aguardava com os motores já ligados. O céu estava especialmente negro, com a fumaça que subia do térreo e ganhava os arredores. Não tardou em correr até o veículo e se apossar de um dos assentos; a respiração ofegante em meio a um alívio imediato, ao perceber que estava finalmente salvo. Sentiu o alívio aumentar enquanto o helicóptero se desprendida do chão e se afastava aos poucos do edifício.

   — Está tudo bem, senhor? — escutou o piloto indagar.

   Ainda arfando fortemente, Paulo permaneceu estático diante da pergunta óbvia, com os olhos fechados e a cabeça inclinada para o horizonte. Os pensamentos vagueando como um redemoinho.

   — Peça para encontrarem Manoel e os três garotos que estão do nosso lado, preciso deles mais do que nunca — respondeu, negando-se a dar a devida resposta.

   — Sim, senhor.

   — Diga que estamos indo para o Centro de Treinamento Avançado.

   — Mas… — O piloto parou, sabendo que precisaria escolher as melhores palavras se quisesse conversar com o cientista. — As instalações do CTA ainda não estão totalmente prontas, senhor. É um local vazio.

   Ele riu, esquecendo-se, por um segundo, do motivo de estar tendo aquela conversa.

   — Exatamente, soldado… Vazio… Apenas com as coisas que eu quero. — Talvez tudo aquilo fosse um mal que traria um bem maior, refletiu. — Perfeito.

    E enquanto o veículo se afastava, decidiu deixar que o fogo queimasse o centro de pesquisas sem que isso alterasse seus ânimos. Era um velho método de trabalho que ficava para trás, mais piedoso, mais diplomático. Tudo transformado em cinzas.

   O novo Projeto começava ali, com as últimas cartas que tinha na manga.





   Começava a dormir, ignorando o desconforto de seus aposentos especiais, quando sentiu a terra tremer. Nunca havia sentido um terremoto na vida, mas imaginava que não era muito diferente daquela sensação; o chão e as paredes sacolejando como se feitos de cartolina. Depois, nada mais aconteceu. Apenas o familiar e já amigo silêncio, fazendo-lhe companhia até que o sono resolvesse aparecer.

    O que apareceu, contudo, não agradou Camila. Diante da vidraça que servia como grade da sua cela, a ruiva viu surgir uma fumaça densa, vagando pelo corredor deserto e escuro, como um verdadeiro espectro sobrenatural. Ganhava cada vez mais força, cobrindo mais e mais a visão atrás da parede de vidro.

   Camila levantou da cama, espantando de vez a vontade de dormir, e, descalça, andou até a vidraça. Apoiou as mãos no vidro gélido, admirando a cinzura do gás que ondulava no ar, dançando livremente. Conseguia quase sentir a toxicidade da atmosfera; seus pulmões buscaram mais ar ao imaginar em respirar a neblina exterior.

   — O que tá acontecendo aqui? — pensou em voz alta.

   Foi quando sentiu o cheiro de cinzas. Com a habitual agilidade, voltou-se para o interior da cela e, então, observou. Haviam duas entradas de ar no teto, que ajudavam a diminuir a sensação de bafo, o calor e o cheiro de poeira com ar novo. Porém, não se tratava de ar fresco o que era expelido pelas tubulações, mas sim o gás cinza e espesso. Começou a cair, deslizando pelos poucos móveis que ali existiam, como se procurasse uma alma viva a quem pudesse asfixiar.  

   Camila encolheu-se no vidro; um rápido sentimento de claustrofobia a cobrindo. Lembrou-se​ do dia da excursão escolar na cooperativa, quando ficara presa, ela e seus colegas, na sala de exposição do Projeto Gênesis, e o gás vermelho começara a descer pelas tubulações. Lembrava claramente da sensação de achar que estava morrendo, que aqueles eram seus últimos minutos. Entretanto, agora sim parecia seus últimos minutos. Já tinha crescido o suficiente para saber que aquela sensação que começava a cobrir suas narinas não era a de um cheirinho bom de café sendo preparado. Era gás carbônico, aquilo, e vinha em sua direção com sede de sangue.

   Girou o corpo, uma nova vez, para a vidraça; o coração acelerado e a respiração profunda. A claustrofobia aumentando à medida que o espaço de ar limpo a suas costas diminuía. Mal percebeu o instante em que começara a esmurrar a parede transparente a sua frente.

    — Ei! — chamou. — Alguém! Alguém me ajuda!! — Batia com força, como tinha feito no dia da excursão. — Socorro! Seus filhos de uma égua, me ajudem! Socorro!!

    Inevitavelmente, começou a tossir e a lacrimejar. Sentiu o corpo queimar por dentro, as partículas de dióxido de carbono arranhando a parede dos seus órgãos. O peito travou, em um tossir incessante, como se o corpo se recusasse a morrer daquela forma.

   Mas era inevitável.

    O murros foram ficando lentos, a visão escureceu. Estava enganada ao achar que seria como na excursão. Aquilo era pior, muito pior.

 Finalmente derrotada, sem forças para lutar, ajoelhou-se; o corpo se humilhando diante do destino traçado para si. Caiu, por fim, sem saber a quanto tempo estava naquela situação, muito menos quanto mais duraria. Só sabia que ainda estava acordada, admirando a visão ficar cada vez mais precária. Tudo se tornou um amontoado de borrões a sua frente.

    E no meio dos vultos inertes dos móveis, Camila viu um se mover por conta própria. Uma silhueta humana, que se aproximou devagar. Estava delirando? A menina tentou enxergar algo mais, mas nenhum de seus sentidos se empenhou em trabalhar. Decidiu não se importar; fosse quem fosse, refletiu de​ forma pouco centrada, não seria mais perigoso que o ar que respirava.

    Sentiu ser levantada.

   Tudo apagou.

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