Cigarrinha

   Léo colocou a vasilha contendo as coxinhas sobre a mesa. Olhou para Márcia, sorrindo enquanto indicava com a cabeça que ela podia comer a vontade. A loirinha parecia envergonhada com a situação, porém não tardou em pegar um dos salgados para si.

   — Vou aceitar. Faz mais de um dia que não como nada. — ela explicou, preparando-se para a primeira mordida.

   Mesmo que tivessem lutado juntos para escaparem do Centro de Pesquisas, Léo não conhecia muito bem a garota sentada na cadeira a sua frente. Jamais pensara que receberia um pedido de ajuda vindo dela; não da forma como estava acontecendo.

   Márcia estava aflita. Começara a derramar informações sem nenhum sentido para o garoto ainda no corredor na escola. E só se acalmou quando Léo a interrompeu, chamando-a para conversar com mais calma em um lugar mais adequado. A tradicional lanchonete, que existia ao atravessar a rua da escola, era a melhor opção naquele momento. Léo levou-a até ali e pediu as maravilhosas coxinhas, que já estavam sobre a mesa, para se deliciarem enquanto Márcia explicava o que acontecera.

   O garoto olhou para a rua; continuava cheia pelos carros de pais que ainda não haviam aprendido a se comportar na saída dos alunos. O barulho incessante de buzinas naquele horário era uma forma certa de adquirir dor de cabeça. Como se não bastasse, o sol do meio-dia castigava qualquer ser que ousasse enfrentá-lo.

   — Então… Cê disse algo sobre seu irmão ter sumido? — Léo questionou, incentivando-a a falar novamente.

   Márcia era uma menina meiga e calma. Sua voz, tão aguda quanto o de uma criança, estava carregada de desespero. Era uma menina frágil, de alma pura.

   — Ele não sumiu. Ele foi pego. Pelos soldados do Projeto.

   Escutar o nome daqueles seres desprezíveis fez uma chama de ira se acender em Léo.

   — Mas… — as coisas não faziam lógica em sua cabeça. — Os blacks? Eles..  Eles… Como tão rápido!?

   Márcia ergueu os ombros.

   — Foi o mesmo que me perguntei. — a garota limpou a boca com um guardanapo de papel antes de prosseguir: — Mas o pior não é isso. — ela botou o cotovelo na mesa, aproximando o tronco de seu corpo ao Léo, como se fosse contar um segredo. — Os garotos estão ajudando eles. O Lucas, o João, o Tomás… Estão junto com os blacks, como você disse.

   O garoto riu de forma irônica, pois, por algum motivo, a atitude dos outros três adaptados não era surpreendente.

   — Filhos da puta…

   — Léo, eu escapei por pouco. Eles não estavam de brincadeira, não mesmo! Eu… Eu vi ódio nos olhos do Lucas. Eu não sei o que estão armando dessa vez, eu não sei o que podem ter feito com meu irmão. — lágrimas percorreram um sinuoso trajeto na face da pobre menina. Ela ligeiramente as enxugou.

   O choro da loirinha apertou o peito do rapaz. Léo tentou confortá-la:

   — Tem certeza que ele foi pego? Afinal ele é bem rápido! Poderia ter escapado bem fácil de lá.

   — Eu não sei… Eu não sei. Acho que a culpa foi minha. — ela abaixou a cabeça; não conseguia parar as lágrimas. — Ele ficou pra que eu tivesse tempo de escapar. Se eu tivesse entendido o que acontecia logo de cara… Mas não, eu demorei muito tempo.

   — Não precisa se culpar. Nós vamos te ajudar. Você pode ficar lá em casa enquanto tudo isso se resolve, afinal, acho que deve estar com medo de voltar pra casa, né? — Márcia assentiu. — Tudo bem… Agora temos que avisar o máximo de pessoas possível. Precisam saber que os blacks estão agindo.

   Mesmo com uma notícia ruim, Léo estava esperançoso. Saber que seus oponentes iniciavam uma recaptura dos jovens era um ponto importante para se proteger. Agora, tinham a chance de esperar, preparados — e armados — para, dessa forma, saírem vitoriosos. Nenhum adaptado iria ser pego desprevenido; não mais. Guilherme seria o último, Léo estava confiante disso.

   A garota secou os olhos uma segunda vez e disse com a voz rouca:

   — Preciso de um lugar seguro para atar minha asa. Tive uma queda durante a fuga e ela acabou quebrando.

   Léo sorriu. Era bastante fácil obter um sentimento fraternal pela garota.

   — Não se preocupe, a Clara pode resolver isso pra você. —  acalmou-a. — Nós vamos encontrar seu irmão, pode ter certeza disso.

   Márcia finalmente alegrou-se. Ainda com os olhos marejados e vermelhos, segurou a mão do garoto.

   — Eu nem sei como retribuir. Muito obrigada.

   Permaneceram durante algum tempo daquele jeito; os olhos azuis dele fitando os verdes dela. E por um instante, Léo se sentiu bem em poder ajudá-la. Márcia parecia uma irmã. A irmã que nunca teve. Ele nunca imaginara como seria sua vida se tivesse um irmão; não sabia dizer se gostaria ou não. Porém, olhando para Márcia, a ideia não parecia tão ruim assim.

   O zunido do celular tremendo sobre a mesa tirou o garoto de seu minuto de dispersão. Ele observou a tela do aparelho se acender. Era uma chamada telefônica. Era Amélia.


   O carro andava velozmente na avenida que levava até o edifício de Nanda, onde agora era também o lar de Amélia. A avenida, uma marginal, era tomada por árvores em toda sua extensão. Próxima ao centro, cortava a cidade e era caminho para regiões importantes da capital.

   Desde que voltara do sequestro, percorrer a tal avenida se tornara rotina para Amélia. Todos os dias, Nanda saia de sua faculdade de Direito e buscava a garota no colégio, levava-a até em casa e seguia caminho para a empresa onde estagiava.

   Nanda era uma boa pessoa, contudo Amélia não estava confortável em depender dela; sentia-se um peso para a moça. Uma mulher tão nova quanto sua ex cunhada não tinha obrigação nenhuma de adotá-la da forma que estava fazendo. Não adiantava Nanda dizer que fazia a boa ação porque gostava da Amélia e porque não a queria em um orfanato, pois a menina nunca se convencia disso. A única ligação que possuíam era Joaquim, irmão de Amélia, namorado há anos de Nanda e, naquele momento, cinzas enterradas em um cemitério qualquer de Goiânia.

   Lembrar de sua família sempre lhe causava angústia. Amélia se culpava por não ter tido a oportunidade de velá-los de forma digna. Seu peito doía ao perceber que os blacks haviam tirado até mesmo seu direito de um luto decente.

   E no meio de tudo isso, tentando ganhar espaço entre as tristezas da garota, encontrava-se Léo. Amélia jamais pensou que poderia gostar de alguém como gostava do rapaz; também nunca imaginou que seria tão difícil perdoar uma pessoa. Mas Léo estava ali para prová-la do contrário. Amélia amava-o de verdade e desejava muito poder esquecer a cena que presenciara no Centro de Pesquisas, porém sua memória insistia em reprisar a imagem toda vez que cogitava a ideia de desculpá-lo. A menina lutava para conseguir relevar o ocorrido e torcia para que Léo não desistisse de esperar.

   Amélia encostou a cabeça na janela fechada do carro, enquanto observava Nanda sair da marginal e entrar na rua de seu condomínio.

   — Ei! Que tristeza é essa? — a moça perguntou, desviando a atenção do volante um rápido segundo para analisar Amélia, que prontamente levantou a cabeça e sorriu, desanimada, apenas em uma tentativa de não transparecer o que sentia.

   O carro parou em frente ao condomínio e Amélia desceu.

   — Até mais tarde. — despediu-se de Nanda.

   A mulher sorriu; era sempre bem alegre, combinava muito com a personalidade de Joaquim. Nanda ligou novamente o veículo enquanto dizia:

   — Até mais. Ah! Olha esse sol! — apontou para o céu. — Um belo dia para ficar na piscina, não? — Amélia riu com as indiretas da moça. — Tenta sair de casa hoje, tá um dia lindo!

   Enquanto o carro saia, Amélia concordou com a cabeça. Olhou para o céu. O sol reinava sem nenhuma nuvem para ofuscar seu brilho; talvez ir à piscina não fosse uma ideia muito ruim. Ela seguiu para o edifício onde morava, cumprimentou o porteiro e se dirigiu para o elevador. Sentiu o cheiro de comida vindo de algum lugar, o que acabou por abrir seu apetite. Enquanto esperava o elevador descer para o térreo, tentou recordar o que havia na geladeira que poderia ser preparado em um almoço apressado.

   O elevador se abriu, ela entrou e, antes que a porta se fechasse novamente, algo lhe chamou a atenção do lado de fora: vindo em sua direção, ainda distantes, três garotos andavam um ao lado do outro. Três rostos familiares, porém Amélia não conseguia se recordar de onde os conhecia. O garoto do meio, mais robusto e com traços mais marcantes, carregava um leve sorriso malicioso no canto de sua boca. Ele olhou fixamente para ela e a cumprimentou com um gesto que lembrava uma continência. A porta se fechou por completo e uma sensação ruim tomou o corpo da garota.

   De onde os conhecia? Da Escola? Não, não era do colégio, lembraria com mais certeza se fosse. Então, de onde? Aquele olhar… Um ar de quem guardava mágoa, ódio.

   Somente quando o elevador estava na metade do caminho, que a lembrança veio à tona. Conhecia aqueles garotos, sim, do fatídico dia da fuga do Centro de Pesquisas. Eram os que tinham decidido ficar, os que haviam dedurado o plano para os pesquisadores; eram os traidores. E estavam ali.

   Com o coração já acelerado, Amélia retirou o celular do bolso e procurou pelo contato de Léo. O desespero fez com que suas mãos começassem a tremer ao ponto de atrapalhar sua procura pelo número do garoto. Após se esforçar para manter a calma, foi capaz de iniciar a chamada.

   Não demorou para que o elevador alcançasse o quarto andar. A porta se abriu junto ao primeiro toque da chamada. Amélia correu até a porta do apartamento, entretanto permaneceu do lado de fora; não iria conseguir encaixar a chave na fechadura com aquela tremedeira toda. A garota observou o painel acima da porta do elevador; ele estava descendo outra vez para o térreo.

   Foi necessário uma eternidade de cinco toques para que Léo atendesse.

   — Amélia? — ele falou, com a voz cheia de esperança. Amélia sentiu-se mal, porque a conversa não seria nada que ele esperava.

    — Léo, três jovens adaptados estão aqui, no meu prédio. — ela soltou. Seus olhos focados no painel do elevador, que havia parado no T.

   — Oi? Calma. O que tá acontecendo?

   — Uns garotos estranhos tão aqui! Lembro deles do Centro de Pesquisas, mas não sei os nomes. — sem perceber, estava gritando no monótono corredor.

   — Quais garotos?! — Léo esbravejou, mais nervoso do que a própria menina, o que fez a ânsia de Amélia ir às alturas. O elevador subia. — Quais?!

   — Os traidores.

   Parou no quarto andar; no seu andar.

   — Meu Deus, o Lucas… — Léo falou. Parecia conversar com alguém do outro lado da linha. — Amélia…

   A porta abriu, evidenciando o que a garota tanto temia: os três jovens.

   — Peguem ela. — ordenou o menino de olhar amargurado.

   — Amélia, foge! — foi a última coisa que ela ouvira antes de deixar o aparelho cair no chão.

   Amélia correu para longe do elevador, para o final do corredor, em direção às escadas. Não precisou olhar para trás para saber que era seguida com afinco pelos rapazes. Largou a mochila em uma tentativa de conseguir maior velocidade e em questão de instantes chegara na escada. Pensou em descer — o porteiro poderia ajudá-la —, contudo algo a fez mudar de ideia.

   Subindo as escadas, já com armas postas em mãos, três blacks preparavam uma emboscada para ela. Amélia deu meia-volta, quase escorregando ao fazê-la, e começou a subir os degraus a tempo de escapar de Lucas, que estava muito próximo de alcançá-la.

   — Você não escapa, garota! — Lucas afirmou, com um tom perverso.

   — Sem transformações! — um dos blacks gritou.

   O primeiro lance de escadas foi vencido por Amélia sem grandes problemas, porém não sabia quanto tempo conseguiria ficar naquela corrida; a fadiga muscular não demoraria muito a chegar.

   — Socorro! — ela pediu, arfando, mas estava longe dos apartamentos. — Socorro!

   — Se entregue, paciente 08, ou seremos obrigados a usar da força. — o black estava logo atrás de Lucas e era seguido por seus dois colegas e pelos outros dois jovens adaptados. O homem mirou o resolver de dardos tranquilizantes e atirou, entretanto Amélia saiu de sua área de visão antes que o sedativo a atingisse. — Merda de garota rápida!

   Amélia sentiu o cansaço chegar. Já havia subido dois andares acima do seu, porém não parecia que seus perseguidores iriam desistir. Com a cãibra se instalando em suas coxas, Amélia consegui chegar até o sétimo andar. Não suportaria subir mais um lance de escadas, seria pêga antes que avistasse o próximo andar.

   Decidiu apostar na sorte. Correu para os apartamentos do sétimo andar em busca de socorro.  

   — Alguém me ajuda! Me ajudem!! — vociferou ela, batendo fortemente na primeira porta que viu pela frente. O desespero a tomava, Lucas estava se aproximando, não daria tempo de receber apoio dos moradores, precisava agir e rápido.

   Virou-se para seus raptores e soltou um belo e sonoro grito supersônico. As lâmpadas do corredor não duraram mais que cinco segundos, assim como a capacidade dos homens a sua frente de suportarem sem levarem a mão aos ouvidos. Estava funcionando, ela conseguira parar o avanço dos rapazes; estava se defendendo por conta própria e isso a fortaleceu.

   Porém sua alegria não durou muito tempo. Um dos garotos, um rapaz branco de cabelos extremamente negros e de sombrancelhas grossas, iniciou uma transformação, ganhando forma de um lagarto gigante de olhos ferozes. O ser se levantou, fitando-a com a feição de uma serpente prestes a dar o bote. Amélia aumentou a potência de seu grito, o que fez um dos blacks cair, desacordado.

   — Filha duma égua! Você me paga! — esbravejou Lucas, sem ter forças para sair da área que era atingida pelas intensas ondas sonoras.

   Amélia poderia permanecer durante muito tempo daquela forma, sem sequer precisar recuperar o fôlego, porém o lagarto gigante não sentia os efeitos de sua adaptação. O bicho começou a caminhar pela parede, vindo em direção a ela enquanto girava o corpo e se pendurava no teto do corredor. Não tinha mais o que fazer, antes mesmo que a pobre garota pudesse pensar no próximo passo, o lagarto pulou, agarrando-a com suas patas escamosas e prensando-a contra o piso frio daquele lugar.

   O ser apertou seu pescoço, bloqueando a produção das ondas sonoras e causando feridas, com suas garras afiadas, na pele da menina.

   — Soco… Soc.. — Amélia tentou gritar, mas era sufocada pela pata do animal.

   Ouviu-se o barulho de uma porta sendo destrancada.

  — Se destransforme! Rápido! — mandou o black, ao ver que haviam despertado a atenção de um morador.

   O garoto rapidamente obedeceu e voltou ao seu estado normal tão rápido quanto se transformara. A porta se abriu e um senhor, já de idade, surgiu, desconfiado.

   — Algum problema? — perguntou ele, observando a cena.

   — Me ajuda! — Amélia consegui gritar, o que acabou fazendo com que o black a acertasse com um dardo. — Não!! Me ajuda!

   — Cale a boca! Sua traficantezinha de merda! — exclamou o black. Depois, voltou-se para o senhor. — Não se preocupe, é assunto de polícia. Essa menina foi flagrada traficando aqui no condomínio. Já estamos resolvendo o problema, volte para dentro do apartamento.

   — É mentira!! — Amélia começou a chorar. Sua voz começava a ser alterada pelo efeito do tranquilizante. — Eles estão mentindo! Me ajude!

   O senhor encarou a cena por mais alguns segundos, até se convencer da história contada pelo black e voltar para o sossego de sua casa.

   Amélia estava em prantos. Olhava, vidrada, para os olhos negros do garoto montado em cima de sua barriga. Ele não possuía o ódio que ela enxergava no outro menino, Lucas, que agachou ao seu lado com o mesmo sorriso malicioso detectado por ela no elevador.

   — Bom trabalho, Tomás! — Lucas bateu a mão nas costas do garoto lagarto. — Achou que iria escapar, não é, cigarrinha? — ele zombou.

   — Levem ela. — o black disse aos garotos, enquanto ajudava seu parceiro a carregar o amigo desacordado. — Essa entrou pra lista das difíceis de serem caçadas. — riu, como alguém que finalmente abatera o tão sonhado leão na savana.

   A garota tentou se desvencilhar, mas a fraqueza a consumia.

   — Não… Me soltem… — a realidade começava a se distorcer; as imagens que via não mais faziam sentido. — Alguém… Socorro… — nem mesmo o medo fazia sentido. Tudo girava. Tudo se confundia. Estava muito perto de apagar. — Léo…

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