Amparo
A felicidade é um dos sentimentos mais sublimes que o homem é capaz de sentir, porém, para ter valor, a felicidade nunca se eterniza, jamais permanece presente por muito tempo de forma espontânea. É um sentimento arredio, que não se prende à corpos, não se associa a fórmulas; que só se conjuga com propriedade no passado. Só se sabe se estava realmente feliz quando sua ausência é detectada. Do contrário, a felicidade é apenas uma suposição.
Léo teve essa certeza no exato instante em que Victor entrara pela porta da casa de Janaína. Estava sendo feliz enquanto assistia aos noticiários e via que seu plano inconsequente tinha funcionado da melhor forma possível. Tinha estimulado a curiosidade dos jornalistas, tinha ganhado fama nas redes sociais, tinha conseguido que não o vissem como ameaça; parecia tudo perfeito. Porém Victor apareceu, e, com ele, a sensação de que nem tudo estava perfeito. O garoto com dom multiplicador tinha sido bem incisivo ao demonstrar que não gostara em nada da atitude de Léo; estava irritado e, agora, o ombro do loiro voltava a doer graças a queda provocada por essa irritação.
Victor era bem apresentado. Gostava de se vestir bem, de estar impecável. Tão alto quanto Léo, tinha um corpo magro e atlético que ajudavam em seu charme, que tinha o topete como a cereja do bolo. Seus fios negros e lisos não perdiam a postura em nenhum momento, sempre em suas posições, excelentes soldados. Porém, a preocupação exacerbada com a aparência também dava ao garoto características não muito agradáveis. Léo tinha se esquecido de como Victor podia ser exagerado em suas expressões e em como ele fazia tudo girar ao seu redor; e tinha certeza de que o motivo de todo aquele alvoroço resumia-se em como a sua aparição pública afetaria a imagem do garoto a partir dali.
Em contrapartida, Sandro também se fazia presente, e isso era bom. O moreno de cabelos ondulados era um dos poucos amigos que Léo ganhara dentro do centro de pesquisas e, naquele momento, com seu jeito centrado e irônico de ser, com suas piadinhas ácidas que sempre escondiam um bom concelho, era o alicerce que o loiro precisava para continuar.
— Então, a situação é a seguinte: — iniciou Sandro, sentado na mesa da sala de jantar, rodeado pelos colegas, mesmo não sendo a hora de tal refeição. — Letícia, Tiago e Mônica mortos, então agora somos dezoito adaptados. João, Tomás e Lucas estão lutando contra a gente. Quinze ainda desejam a liberdade. Desses quinze, dez já foram pegos e cinco, no caso a gente, ainda somos passarinhos livres. Nosso querido Léo fez as honras e resolveu sair do armário para o mundo todo, e, queira uns ou não — Fitou Victor, que enfezou a cara. —, foi uma bela atitude.
Pedro, entretido e sem disposição para ouvir aquele papo de como a situação se encontrava complicada de novo, cutucava a cópia de Victor, que, após se sentar na mesa, não movia um músculo sequer.
— Como funciona? — ele perguntou, admirado, enquanto passava a mão diante dos olhos da cópia.
Victor se arrumou no acento, preparando para explicar com o máximo de detalhes o seu tão precioso dom.
— É um clone perecível fiel a mim, como se fosse um broto, uma reprodução assexuada. — O orgulho refletia para os quatro cantos da casa. — Uma vez criada, ela mantém uma conexão comigo; psíquica, psicológica, sei lá. Se eu quero que ela faça alguma coisa, ela faz, mas ela também pode tomar atitudes pessoais, se assim eu deixar. Uma rede de organismos complexos compartilhando o mesmo sistema central de informação — apontou para a sua cabeça. — Foi assim que os cientistas do Projeto definiram.
— Incrível! — exclamou Pedro. — Mas… eles vivem pra sempre?
— Não, duram no máximo pouco mais de uma hora. Parados duram mais, em movimento, menos. — Olhou para sua cópia com indiferença. — Daqui a pouco ele vira cinzas.
E enquanto os dois divagavam sobre suas adaptações, Léo, Janaína e Sandro conversavam na outra ponta da mesa, mais sérios, mais compenetrados.
Léo não tivera nem um segundo de trégua para que pudesse vestir uma roupa melhor, ainda estava sem camisa e trajava somente a metade superior de sua calça. Porém, da lista de coisas que o incomodava, estar sem roupas — e tudo que se referia a algo pessoal — encontrava-se bem longe do topo.
— E cê acreditou nele? — Sandro indagou, com um certo ar de surpresa e desapontamento.
O loiro abaixou a cabeça, envergonhado demais para responder; não podia acreditar que tinha sido ingênuo àquele ponto.
— Todos nós acreditamos — Janaína respondeu por ele. — Quer dizer, eu fui a que mais desconfiei, mas, mesmo assim, tenho que admitir que o Tomás parecia confiável.
— Eu sinceramente não sei como ele teve coragem de fazer aquilo — desabafou Léo. — Eu não esperava… Esperava isso do Lucas, até do João, mas dele não… E quando a Mônica morreu, eu olhei nos olhos dele, queria que ele sentisse que tudo aquilo era culpa dele, que a covardia dele tinha matado uma pessoa inocente. Eles mataram uma inocente — cada letra dita por ele era banhada de uma grande inconformação.
— A gente não pode mais lidar com os blacks como se fossem apenas professorinhas de jardim de infância que a única coisa que podem fazer pra gente é nos colocar de castigo. — Sandro era calmo, mas sua voz era viva, forte. — São assassinos, não podemos tratá-los com desdém, senão eles sempre estarão na nossa frente… Quando eles tentaram me capturar semana passada, uma coisa me chamou a atenção… O comandante deles. Um cara novo, moreno, malhado.
Arregalando os olhos, Léo se recordou do homem que comandara o ataque no qual Mônica falecera. Tinha as mesmas características que Sandro apontava; falava no alto-falante, dando ordens à todos. Léo forçou a mente mais um pouco, buscando tirar a cena de carnificina da memória e tentando se lembrar das ordens que o black bradava.
— Eu lembro dele — anunciou. — Ele falava pros blacks atirarem nos que achassem mais fracos — fitou Janaína, que o olhava com a expressão carregada.
Balançando a cabeça lentamente, Sandro alertou:
— Esse cara é perigoso. Temos que tomar cuidado. — Massageava uma mão a outra, como se desejasse loucamente retirar as luvas, porém forçasse o desejo a se retrair, permanecendo apenas no campo dos desejos.
— Como conseguiu escapar? — inquiriu Janaína, dirigindo-se ao mais novo hóspede. Sandro, por sua vez, pareceu não compreender a pergunta de imediato. — Cê disse que eles tentaram te capturar semana passada… — completou ela, elaborando melhor a pergunta. — Como conseguiu escapar?
— Ah, sim… É fácil fugir quando você consegue escalar paredes e seus inimigos não — ele brincou. — Mas agora não podemos ficar pensando em como fugir, temos tempo pra planejar o que vamos fazer. Nada de agir precipitando as coisas. — Encontrou os olhos de Léo, e riu do comentário que estava prestes a fazer: — Nada de confiar no Tomás dessa vez.
Por mais que aquilo se tratasse de um ofensa, Léo não conseguiu segurar o sorriso. O cara que ria das próprias piadas, esse era o Sandro que ele conhecia. O aliado que tanto o ajudara na prisão do Projeto e que já o amparava só de estar ali, pondo os problemas em seus devidos lugares, dando a devida atenção a cada um deles.
No fim das contas, ter Sandro superava a infelicidade que era aturar Victor.
…
O quarto nunca parecera tão gelado como naquela noite. Mesmo abraçando seu travesseiro com extrema força, Amélia ainda continuava sentindo os calafrios percorrerem sua pele; e, enquanto seus poros lutavam para manterem a temperatura corporal homeostática e seus pelos eriçavam por reflexo, ela também sentia uma intensa desolação a abraçar, afirmando-a que todos aqueles arrepios não eram causados unicamente pelo frio.
As lágrimas voltaram a cair.
Ela sabia, no instante em que Márcia chegara no centro de pesquisas usando roupas coloridas e tropicais, que algo estava acontecendo do lado de fora. E não dera em outra, estava certíssima. As roupas realmente eram de Clara, sua tão querida amiga, que havia feito a boa ação de emprestá-las a loirinha alada. Essa era a informação que Amélia precisava para que se iniciasse um interrogatório minucioso de como as coisas caminhavam para além das paredes daquele prédio. Precisava saber como estavam seus amigos.
Entretanto, ao saber, desejou que nunca tivesse ganhado aquelas notícias; pediu para que Márcia nunca tivesse sido capturada, para que ela jamais estivesse ali, ao seu lado, com os mesmos olhos vermelhos de tanto chorar e a mesma impotência diante dos acontecimentos que se sucediam. Amélia só pensava em como era revoltante não poder fazer nada; mesmo ao saber que Camila também tinha sido pega, que Clara estava internada em algum lugar da cidade com uma bala no ombro e que Mônica — a mesma Mônica que não fazia mal a ninguém — tinha sido morta sem nenhum remorso por aqueles bandidos. E não podia agir de outra forma, senão para chorar e apertar o travesseiro o máximo que conseguisse.
— Calma… — Graziela tentava afagar o pranto das duas garotas, ao mesmo tempo que buscava controlar seus próprios sentimentos.
— Ela não merecia isso… — lamentou Amélia, cortando o choro para que as palavras saíssem. — A Mônica com certeza não merecia isso. Deus, que mundo injusto!
— A Janaína ficou desesperada — contou Márcia. Desde que encontrara com a menina na sala de descanso do centro de pesquisas, Amélia não se lembrava de tê-la visto sem chorar; contudo, Márcia tinha todos os motivos do mundo para que se desidratasse de tanto lacrimar. — Léo e Pedro também não estavam sabendo lidar com a perda. Tá todo mundo destruído por dentro.
— Eles mataram um de nós! — Amélia tinha a face inchada e a blusa começava a ficar úmida na região do busto, onde as lágrimas gotejavam incessantemente. Na fronte, uma mescla de tristeza e um ódio que nem em seus piores pesadelos imaginou um dia sentir por algo. — Cêis tem noção do que isso quer dizer? Eles… Eles… Que merda!! — Afundou a cabeça no travesseiro.
— Quando eu vi que eles tinham me seguido até em casa, não tentei lutar, nem fugir… — Márcia narrou. — Sabia que não havia nada a fazer. Mas meu pai, não. Ele tentou me proteger, eu falei pra ele não fazer nada, pra ele deixar eu ir, que ficaria bem, mas ele não me ouviu…
— Calma, não pensa nisso — tomando as dores da menina, Graziela tentava confortá-la como podia.
Porém, o clima era de intensa tristeza, e não mudaria de uma hora para a outra. Precisaria de muito tempo até que Márcia se acostumasse com a perda do pai e para que Amélia engolisse aquele gosto amargo e de consistência áspera que estava sendo a notícia da morte de Mônica. Imaginou o quão difícil estava sendo para Léo, que naturalmente vivia sempre exasperado e com o coração na mão. Queria poder estar junto a ele, compartilhando do mesmo sofrimento como ele fizera no momento da morte se sua família. Ela sabia que Léo e os outros tentariam encontrá-los e salvá-los, e, de início, torcia para isso. Contudo, as coisas haviam mudado agora, os blacks estavam dispostos a matar, o que colocava a pessoa que mais amava na linha de frente dos tiros. Definitivamente, ela não se perdoaria se algo acontecesse ao garoto; precisava sair dali sem que necessitasse de botá-lo em risco.
— Vai dar tudo certo. — Não muito distante das três garotas, Ariel acompanhava a tudo ao lado de Élida, tão emocionadas quando as demais.
A revolta era mútua naquele recinto. Amélia imaginou que as coisas não estariam tão diferentes no quarto dos garotos, onde Matheus e Alex também tentavam consolar Guilherme. Ela ainda repassava a visão do loiro de cabeça raspada deitado na centro da área de descanso, tentando em vão esconder os seus soluços. Não o conhecia muito, mas a impressão que tinha do garoto era de que mantinha-se sempre reservado e sério; vê-lo desalentado e sem sua habitual compostura fora uma cena de apertar o peito.
Acima disso, porém, o que mais perambulava os pensamentos da menina eram os segundos antes do choro do rapaz; o instante em que Guilherme usara de sua adpatação, a ultra velocidade, para partir de encontro a Manoel. A imagem do garoto se tornando um borrão diante de seus olhos ia e voltava em sua cabeça, como se fosse importante não se esquecer daquilo. Afinal, como ele tinha conseguido? Usar de seu dom, o mínimo de tempo que fosse, era uma coisa muito boa. Guilherme fora capaz de ser mais rápido que o sistema da tornozeleira; tinha escapado daquela prisão por preciosos décimos de segundos, era um feito impressionante.
— Amélia? — Graziela chamou, trazendo a menina novamente para a realidade. — Tá bem?
Piscando algumas vezes, Amélia acordou de seu transe. Olhou em volta, Márcia continuava a chorar, sentindo todas as esperanças esgotadas. Mas Amélia, não; algo continuava a motivá-la, a alimentar seu desejo de fuga.
— Tô bem sim… — disse, voltando a analisar os últimos acontecimentos. Seu sexto sentido estava lhe afirmando: a solução estava próxima, muito próxima.
...
E depois de um pequeno bloqueio criativo, PG está de volta! Espero que estejam gostando do caminhar das coisas, ainda há muita água pra rolar kk
Ah! Agora eu também estou no Instagram, procurem lá por escritor_arierreff e vamos espalhar PG para além do Wattpad! Kk
Então, é isto. Comentem o que estão achando, vou adorar bater um papo com vocês!
Vlw! :)
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