A vingança

Olá, pessoal!
Espero que estejam gostando da reta final, fiz com muito carinho pra vcs!
Lembrando que estou sempre aberto para comentários, críticas, bate-papo... Adoro saber a opinião de quem se dispõe a ler as minhas histórias.
Enfim... Boa leitura! :)

...

   O carro estacionou na beira da calçada vazia, sob a noite que se aproximava da sua metade. Avistar veículos​ pela rua, mesmo estando no centro da cidade, era uma cena cada vez mais rara àquele horário; tudo parecia desolado, abandonado, como se todas as pessoas simplesmente desaparecessem para surgirem, do nada, na manhã seguinte.

   Mas, para tristeza de Léo, nem tudo sumia com o avançar da noite.

   Da janela do carro, olhou para o grande prédio ao seu lado, imponente, uma construção típica da segunda metade do século XX. Não muito longe de onde estavam, o prédio principal do governo do estado se erguia, todo espelhado e com uma arquitetura moderna, assim como Manoel tinha delatado durante a hipnose. Ali de fora, não se podia deduzir muita coisa, senão o fato de que algumas luzes estavam acesas em um andar e outro. Contudo, ele sabia que o maior movimento de pessoas era invisível aos olhos do público, estava abaixo do chão, como um formigueiro especializado em reestruturação genética.

   — Tão todos bem? — ele perguntou, volvendo-se para o aglomerado de corpos sentados nos bancos de passageiros.

   Janaína e Victor tinham feições bem despertas, atentas a tudo o que acontecia. Pedro e Sandro, entretanto, mesmo acordados, ainda guardavam um estado grogue de quem saia do efeito de remédios. A peçonha de João era forte, com uma picada paralisante capaz de durar horas.

   Entendendo que a pergunta tinha sido feita especialmente para os dois, Sandro fez um joinha com a mão, mantendo os olhos fechados como se estivesse obrigando o corpo a expulsar o resto de veneno que ainda circulava em suas veias. Pedro estava um pouco melhor e conseguiu sorrir para o amigo, enquanto a cabeça balançava, concordando de forma veemente.

   — Vamo entrar na toca dos tatus logo de uma vez — disse ele. —, eu tô louco pra ver a carinha de surpresa deles.

   Léo suspirou, sentindo um pouco da tensão se esvaindo com o comentário do amigo. Porém, o clima estava pesado demais para que houvesse​ descontração. As palavras e a certeza de Manoel, de que sempre sairia vitorioso, ainda corroíam seus neurônios como traças na lã; amarguravam seu espírito, deixando a sensação de que nunca existira uma noite tão sombria como aquela.

   Abriu a porta do carro, como um anúncio aos demais que era hora de descer.

   — Fique aqui — ouviu Janaína dizer para seu pai, que permanecia sentado como o fiel e superprestativo motorista.

   Colocando os pés no chão, Léo se apoiou no carro para não cair. A perna ferida tinha cessado o desperdício de sangue, contudo, tinha perdido quantidade suficiente para precisar de um repouso; não se encontrava na sua melhor condição, ele sabia. Respirou fundo, concentrando-se. A vista estava cansada. Estava cansado por inteiro, na verdade.  

   — Talvez seja melhor… — Janaína começou a argumentar, porém foi logo cortada pelo loiro.

   — Eu tô bem. — Encarou a entrada do edifício, negando-se a olhar novamente para Janaína. Começou a andar, manco, a perna já doendo com o sangue frio. — Precisamo ficar atentos, não sabemos o que vamo encontrar lá dentro. Não sabemos se eles esperam pela gente.

   O prédio, por se tratar de um lugar público, tinha suas entradas amplas, abertas para quem quisesse entrar. Aquilo ajudaria, pensou ele, pois significava um bloqueio a menos na invasão.

   — Deve tá cheio de blacks — Victor deduziu, enquanto caminhavam pela calçada.

   — Deve tá cheio daquele bando de doutor filho da égua, isso sim. — Sandro permanecia lutando para que o efeito residual do veneno sumisse; era como uma ressaca após uma noite de festas.

   — Acabamos de acabar como um monte deles — com um risinho de quem tinha a carta mais forte do jogo, Pedro falou. —, eu duvido que tenha mais blacks lá dentro do que a gente enfrentou aqui fora.

   Entretanto, Janaína contrapôs-se, botando o ego dos rapazes em solo firme:

   — Temos que ter cuidado mesmo assim. Tudo isso pode ser uma armadilha, não sabemos até que ponto eles já tinham planejado os acontecimentos dessa noite.

   — Eu duvido disso — Victor expôs sua opinião.

   — Mesmo assim — a loira ficou séria diante da possibilidade de uma negligência. —, não preciso lembrar o que aconteceu na última vez que caímos numa armadilha, preciso?

   Léo não queria lembrar, contudo. Concentrou-se nos passos doídos que dava, evitando que as imagens daquele dia voltassem a atormentá-lo. Aquela era uma noite para ser esquecida, por mais que soubesse que as lembranças iriam sempre martelar sua cabeça. Mas ali seria diferente; seria uma noite de sucesso, em que o elemento surpresa faria com que tudo desse certo.

   Quase como uma mensagem de discordância do universo, Léo ouviu um barulho vindo do céu, ficando cada vez mais alto à medida que se aproximava. Olhou para cima no instante exato em que o helicóptero surgiu entre as edificações, circundando o prédio em que estavam prestes a entrar como uma abelha gigante diante de uma flor. Não fora difícil deduzir que havia um heliporto ali para que a aeronave pousasse. O rapaz tentou não se alarmar; eram prédios públicos, afinal, com pessoas importantes, helicópteros eram o veículo de locomoção rotineiro para muitos. Não passava de uma simples coincidência, ele argumentou para si mesmo.

   Tirando sua atenção do céu, Léo volveu-se para  a solo no momento em que uma curta vibração se apossou da concreto sob seus pés, como se a batida das hélices do veículo estivesse sendo imitada pelo chão. Um terremoto curto e fraco, seguido de uma pequena evolução e depois mais outra.

   — O que tá acontecendo? — Janaína perguntou.

   A pergunta fora prontamente respondida com um boom gigantesco, que o ensurdeceu durante alguns segundos; uma explosão que Léo nunca havia presenciado antes. O clarão iluminou a noite, vindo dos fundos do edifício. O cogumelo ergueu-se, feito de fumaça e chamas, e as luzes nas janelas se apagaram.

   — Mas que merda é essa? — ele indagou, acelerando o passo.

    Não era uma simples coincidência, ele entendeu. E, enquanto subia de forma sacrificiosa a dúzia de degraus da portaria, o coração  voltou a bater forte e o sangue, a correr quente. Sentiu o machucado na perna doer, tornar-se novamente úmido. Mas não importava, os tentáculos de fogo ganhavam a noite do outro lado do prédio, algo estava acontecendo e as possibilidades não eram nada boas.

   Enquanto subiam, diversos homens e mulheres emergiram da porta de entrada. Usavam jalecos; todos eles com o conhecido símbolo da fita de DNA bordada no peito esquerdo.   Cientistas, Léo concluiu.  Encontravam-se encabulados demais para reparem nos adolescentes, tampouco percebiam que eram jovens adaptados; pareciam consumidos por um medo inimaginável. Desesperados, correram para longe do prédio como se suas vidas dependessem daquele ato.

     Ao seu lado, Janaína e Pedro estavam tão nervosos quanto ele, e não duvidava que as rugas de preocupação também estivesse transparecidas nas frontes de Victor e Sandro, um pouco mais atrás. Chegaram ao salão principal do térreo com a cabeça infestada de dúvidas. Porém, o que enxergaram não esclareceu nenhuma delas, a cena ia contra tudo o que esperavam encontrar quando invadissem o centro de pesquisas.

   Sobre o clarão de um incêndio, Léo vislumbrou o início de uma batalha: blacks abarrotados de armas de um lado, contra Matheus, Ariel, Guilherme e Márcia, que, sem ter como se aproximarem dos inimigos, escondiam-se entre paredes e pilastras. Uma sensação boa lhe tomou ao observar Márcia bem, apesar  de tudo. Nos poucos dias que havia dado casa para a loirinha alada, tinha aprendido a gostá-la como uma irmã; era bom vê-la junto ao verdadeiro irmão, Guilherme, lutando pela liberdade.

   Léo também percebeu que os tiros desferidos contra os colegas eram de armas de fogo; os dardos tranquilizantes tinham sido deixados de lado, para uma investida desleal.

   — Eles precisam de ajuda! — Sandro exclamou, partindo, sorrateiro, em direção aos soldados, escalando as paredes e desaparecendo em meio​ a iluminação deficiente.

   — Se protejam — pediu Léo. — Não quero ninguém baleado.

   Suspirou e, com muita dificuldade, começou a se transformar. Fazia tempo que não sentia a transformação gastar tanta energia; o corpo estava fraco, o que lembrou-lhe o início de tudo, quando seu dom ainda era um grande enigma. Transformou-se, enfim, o que logo chamou a atenção dos que digladiavam no grande salão de recepção.

   — Mais deles! — ouviu um dos guardas vociferar. — Atirem!

   Prevendo que seria o primeiro alvo, Léo saiu em disparada pelo salão, correndo mais do que a perna ferida gostaria de correr. Ziguezagueou entre os pilares, despistando a sua posição e tentando chegar, vagarosamente, perto da primeira fileira de homens. Parou, encostado em um dos alicerces do prédio, de onde conseguiu avistar as chamas através das portas de vidro; começavam a consumir a parte exterior da construção. O cenário se tornaria desastroso ao decorrer da noite, ele reparou.

   Antes que retomasse os movimentos de esquiva e aproximação, viu um vulto acercar-lhe, tão rápido que, quando percebeu, já estava de frente ao rapaz.

   — Como vocês sabiam? — Guilherme perguntou, com os olhos alegres diante da fera. — Aconteceu tudo muito rápido, não tinha como vocês saberem que estávamos fugindo hoje…

   Léo demorou um breve momento para entender o que tinha acabado de acontecer. Não tivera muitas oportunidades para ver Guilherme usar sua adaptação, mas o loiro de cabeça quase raspada e olhos verdes parecia ser ainda mais veloz quando a falta de luz impedia que acompanhassem seus passos. Convertia-se em um vulto, um borrão diante da vista humana.

   — Ah… — resmungou a fera, estudando o que o rapaz falava. — Não sabíamos. Foi uma coincidência. — Olhou em volta, parecia seguro conversar ali. — Precisamos sair daqui. Todos tão bem?

   — Não sei — Guilherme era sério, contrastava com a meiguice da irmã. — Graziela, Alex, Élida e Amélia ainda não saíram dos andares do subsolo, ficaram para trás, para buscarem Clara e Camila. E parece que o fogo se alastrou por todos eles… — Léo se aqueceu ao ouvir o nome de Amélia, ao imaginar que estava a poucos metros de encontrá-la. — E tem o doutor Paulo… — a voz do garoto velocista se encheu de ódio.

   O sentimento também se apossou dos ânimos do animal.

   — Onde ele tá?

   — Atrás dos soldados. Está sendo protegido.

   A fera travou a mandíbula, sentindo a boca salivar ao imaginar tio Paulo entre seus dentes.

   — Eu fico com ele… — disse, decidido. — Consegue encontrar os meninos que  ainda não saíram?

   Com um aceno concordante com a cabeça, Guilherme desapareceu, virando novamente um vulto.

   Haviam muitas questões que Léo gostaria de compreender. Afinal, como a situação tinha chegado àquele estado?  Entretanto​, se havia uma coisa que lhe faltava, era tempo. Tentou não pensar muito sobre todas as perguntas que seus neurônios insistiam em produzir, fingiu esquecer-se de que Amélia e Camila ainda não estava ali, sobre seus olhos, e prendeu-se a parte de tinha sido incumbida a ele: a vingança em nome de todos os jovens adaptados.

   Deixou o local protegido em um pulo, e reiniciou as manobras de esquiva, correndo sobre quatro patas e tentando, ao máximo, utilizar da escuridão da noite; das sombras, que pareciam dançar a valsa tocada pelas chamas. Enquanto corria, observou os blacks. Cerca de dez homens faziam uma espécie de cinturão, impedindo que algum adaptado se aproximasse do segundo grupo, que se afastava aos poucos, adentrando os corredores do prédio. Era lá onde tio Paulo estava, a fera analisou. Precisava alcançá-lo.

   — Cuidado! Ela está nos espreitando! — um dos soldados rugiu, alarmando os colegas.

   Viu alguns blacks seguindo seus passos, mirando a arma em sua direção sem que apertassem o gatilho. Começou a correr mais rápido, evitando, assim, que um deles ousasse tentar a sorte; não precisava de mais balas voando em sua direção naquela noite.

   Em meio a corrida, tentou enxergar a posição dos amigos. Pedro e Janaína ainda continuavam perto da entrada, minimamente protegidos dos tiros, mas onde, também, não conseguiam lutar. Esperavam o momento certo, assim como Márcia, Matheus e Ariel. Viu três exemplares de Victor esgueirando pelos cantos das paredes, ganhando território aos poucos. Entretanto, não conseguiu avistar Sandro. O rapaz, esperto, havia se misturado ao concreto sem deixar rastros; era a forma mais eficaz de aproximação.

   Contudo, Léo não tinha as mesmas habilidades de escalada. Restava-lhe, apenas, o chão e a certeza de que era o animal mais fácil de abater. Não conseguia silenciar totalmente seus passos, com as garras batendo sobre o piso liso, mas sentia os blacks cada vez mais próximos; conseguia ouvir os corações batendo sob o uniforme espesso.

   — Onde ele está?! — ouvia, vez ou outra, quando desaparecia entremeio aos móveis sofisticados da recepção, para, logo em seguida, quando o encontravam, ouvir gritos exasperados:

   — Ali! — A voz carregada de um pavor súbito, daqueles que faziam um arrepio deslizar pela espinha. Léo não podia negar, sentiu-se forte com o medo dos inimigos, por mais que seu corpo já não estivesse cem por cento.

    Ouviu um tiro ser disparado contra si, encontrando a parede ao fundo, contudo. O disparo foi como uma sirene de alerta, anunciando-lhe que era hora de atacar. Escolheu o sua primeira vítima e, com as pupilas dilatadas de êxtase, partiu para cima.

   Porém, no mesmo momento, algo se descolou do teto, despencando como uma pedra sobre o mesmo black que iria atacar. Era Sandro, que, finalmente aparecendo, derrubou o homem com a simples força da gravidade. Os outros blacks, todos, voltaram-se para o colega abatido, o que deu para Léo a chance de escolher um novo alvo. Saltou sobre o homem mais próximo com a bocarra aberta e um rugido vigoroso. Ignorou os gritos esganiçados, os pedidos dos outros homens para que os demais se acalmassem, ou que agissem com precisão. Nada mais importava, o caos estava instaurado.

   Na fração de tempo que usou para retirar os dentes da primeira vítima e atacar a segunda, a fera viu que os clones de Victor também iniciavam seu ataque com a característica forma imprudente de agir. Viu Pedro se aproximar com cautela, com os punhos cerrados e os espinhos saindo aos montes. Encarou outro black, que, empenhado em mirar a arma em Sandro, ignorava os outros adversários. O homem enrijeceu o braço, pronto para apertar o gatilho, mas foi surpreendido por um mordida do animal, que rompeu os músculos dos braço em um só golpe. O tiro saiu desviado, atingindo mais uma parede. Léo completou o serviço, silenciando os urros de dor e os praguejos de ódio do soldado.

    Percebendo que seus amigos conseguiriam acabar com os blacks restantes por conta própria, ergueu a cabeça — o sangue escorrendo entre as presas — e olhou para além da luta, para onde, instantes antes, vira o segundo grupo de homens se afastando. Entretanto, não estavam mais ali; encarara, somente, corredores escuros e vazios. A inconformação lhe tomou. Não poderia ter os perdido de vista, não naquele momento.

   Onde estavam? Para onde tio Paulo poderia ter ido?!

   E tão de repente quanto toda aquela situação tinha se formado, a resposta para aquelas dúvidas surgiram em sua mente, trazidas por uma lembrança que já quase não tinha importantância diante de tantos novos fatos. O helicóptero; a fuga perfeita.

   Com um resmungo de raiva, colocou as patas para correr para longe daquela primeira luta. Era uma distração, só agora ele entendia; não pretendiam vencer, porque sabiam que não tinham forças o suficiente. Mas salvar o cientista chefe, isso eles podiam. Correu o mais rápido que foi capaz, a procura das escadas, que, com a falta de eletricidade, era o único meio de alcançar o heliporto. Pegaria-os no meio do caminho.

   As patas deslizavam sobre a cerâmica, a carne doía com o ferimento, a visão se tornou ainda mais difícil com o afastar das chamas. Contudo, o que lhe motivava era o vislumbre de um Paulo Ricardo acuado, caído nos degraus de um andar qualquer, vendo todo o mal que havia causado virando contra sua própria vida. Era tanta vontade de realizar o que sua mente sonhava, que sequer percebeu o momento exato em que encontrara as escadas. Quando constatou, subia os primeiros degraus, um por um, como uma contagem regressiva para o grande final.

   Em determinado momento, começou a escutar o eco dos passos a sua frente; três andares acima, ponderou. Um frio embrulhou-lhe o estômago, com a sensação de um embate iminente. Sentia-se como um gato na boca da toca do rato mais arisco de todos; bastava-lhe esticar a pata e abocanhar o prêmio.

    Porém, não seria tão fácil, e ganhara noção disso no instante em que virara a esquina, para iniciar mais um lance de degraus. Três blacks o aguardavam, silenciosos, numa espécie de armadilha improvisada. Estavam, todos eles, esperando com os revólveres apontados, atentos a qualquer movimento da fera, que surgiu desavisada. O primeiro tiro passou rente a sua orelha direita, arrancando parte da ponta. Rugiu com a dor e, com extrema agilidade, recuou alguns passos, ficando novamente protegido, enquanto via mais balas acertarem a parede.

   — Quase! — comemorou um dos homens, como se numa excursão de caça em uma savana.

    Léo sentiu o sangue voltar a escorrer pelo novo ferimento, impregnando no pelo amarelo.

   — Apareça, gatinho… — ouviu outro chamar, zombeteiro.

   Léo só conseguia pensar no que estava além dos homens, em tio Paulo subindo os andares sem ser incomodado. Precisava alcançá-lo antes que fosse tarde demais. Entretanto, encarar a mira de três armas não era a melhor forma de conseguir avançar. Praguejou por dentro, enquanto imaginava quanto tempo ainda tinha para pegar o geneticista. Parecia muito mais fácil desistir…

   Parecia muito mais fácil desistir.

   — Eu não quero brigar — disse ele, com a voz grave que adquiria quando transformado. Percebeu que não passaria confiança daquele jeito, por isso, sem pensar duas vezes, voltou ao estado humano. — Eu… — começou a falar, já com a voz natural. — Eu conversei com o comandante Manoel… Ele me explicou que não adianta a gente ficar fugindo, que de uma forma ou outra a gente vai sempre parar no mesmo lugar… — A orelha doía ainda mais fora da transformação. — Que nossas vidas e o Projeto são uma coisa só. Aí eu percebi que fugir era besteira, eu tô aqui pra conversar com o ti… Com o doutor Paulo Ricardo. Eu quero me unir a ele, assim como fez o Lucas, o Tomás e o João. — Silêncio… De onde estava, o rapaz não conseguia ver nenhum dos homens, nem mesmo as silhuetas no meio da escuridão, mas percebeu que o silêncio queria dizer que estavam analisando o que ele dissera. — Por favor, eu… — a voz se tornou chorosa, numa encenação que nunca imaginara executar. — Eu tô cansado disso tudo, eu só quero acabar com essa coisa toda logo!

   — Calma, garoto — escutou, para seu alívio. A voz do black saiu branda, como se já não temesse mais o que o jovem poderia causar. — Levanta as mãos e vem andando devagar pra cá. De costas.

    Léo cogitou a hipótese de que também se tratasse de um blefe da parte deles, o que poderia significar que seria abatido assim que se mostrasse. Contudo, não tinha muitas escolhas caso quisesse prosseguir. Teria que arriscar. Levantou a mão e começou a caminhar lentamente em direção aos guardas, deixando o local protegido para trás.

   — Por favor, não me machuquem…

   — Fica quieto aí — ordenou um deles. Léo estava de costas, como haviam pedido, o que o impedia de olhar nos olhos dos seus inimigos; gostaria muito de saber o que aqueles homens tanto matutavam. — Teremos que te algemar se quiser conversar com o doutor Paulo. Entendido?

   — Sim, senhor. — Escutou passos em sua direção, desencontrados, informando-lhe que havia mais de um homem se aproximando. Não poderia saber se eram os três, entretanto. Precisava contar com a sorte, mais uma vez.  — Eu… — Estavam próximos. Muito próximos. — Eu só quero acabar com isso — completou, transformando-se, outra vez, na fera.

    A medida que se transformava, girou o corpo, a garras afiadas prontas para uso, e cravou os dedos na glote do primeiro black. Com a outra mão, derrubou a arma da mão do segundo, e em um movimento continuado, retornou com as garras, desferindo um golpe similar; fazendo com que ambos se engasgassem no próprio sangue.

   — Filho da puta! — O terceiro black, porém, não havia acompanhado os parceiros. Estava longe o suficiente para que analisasse o que se passava e conseguisse reagir. Levantou a arma e atirou, quase no automático.

    A bala atingiu o antebraço esquerdo da fera em cheio, cravando em meio aos músculos e tendões. Léo sentiu a dor no mesmo instante, mais intensa que a que sentia na coxa, devido a profundidade da perfuração. Em um ato de reflexo, colocou, na sua frente, os dois blacks que desfaleciam em seus mãos, como um escudo, antes que mais tiros encontrassem o trajeto até seu corpo. Entendeu que fizera a coisa certa nos segundos seguintes, ao ouvir a sequência de disparos que eram barrados pelos​ homens já mortos.

   Sem tempo a desperdiçar, fez de um dos blacks uma bola de canhão, arremessando-o contra o único que ainda lhe impedia de prosseguir subindo os degraus. O choque fora violento o bastante para que o soldado perdesse a mira; cambaleou para trás, os braços abertos buscando manter o equilíbrio. Estava completamente indefeso. Léo soltou o segundo corpo e avançou no soldado antes que houvesse uma reação; uma mordida fatal no pescoço, capaz de deslocar as vértebras do lugar.

   Não demorou mais que o essencial naquele lugar e, sobressaltado, retomou a subida. O trabalho tinha ficado mais complicado, pois, agora, o braço esquerdo estava completamente inabilitado. Tentou não pensar na quantidade de sangue que perdia e prosseguiu, caminhando da forma bípede a passos largos.

   Ainda dava tempo de alcançar o objetivo. Correu como se aquilo fosse o motivo de sua existência, como se a vida de Paulo impedisse a continuação da sua própria vida. Degrau sobre degrau, passo em cima de passo, e dor a cada segundo.  Um trajeto que pareceu infinito, em certo ponto. Até que ouviu os passos a sua frente; dois andares acima, no máximo. Apressados, como se o cientista soubesse que estava sendo seguido e tivesse receio do que o aguardava quando fosse alcançado. Aquilo animou a fera, revigorou as suas forças.

    Conseguia sentir o sabor…

   — Léo! — uma voz interrompeu a sua concentração. — Léo!

   A fera volveu-se para trás, sem entender o que se passava. Estava sozinho a poucos instantes, não escutara ninguém se aproximar pelas costas. Era quase impossível que tivessem o alcançado.

    Não para Guilherme.

    O velocista se aproximou, com uma pressa que ia além da sua adaptação, e que Léo logo percebera em suas palavras:

   — O centro de pesquisas… — contou ele. — O fogo tá por toda a parte. Consegui encontrar a Graziela e a Élida, mas o restante ainda tá lá dentro.

   Léo entendeu a gravidade da situação. Os passos já estavam distantes outra vez, ficavam cada vez mais fracos aos seus ouvidos. Mas aquilo tinha perdido, milagrosamente, a importância. Naquele momento, a sua vida pareceu depender de outra coisa.

   — Amélia…

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