Voo noturno
Foi só quando a casa se aquietou e o silêncio da rua tomou os corredores, que Márcia saiu de seu novo quarto e vagou, quase como um fantasma, até a sacada. A noite pareceu mais fria do que realmente costumava ser naquela estação, o vento soprou forte vindo de longe, melancólico, como se o tempo soubesse e lamentasse as suas intenções. Mas a verdade era que sempre tinha seguido o seu coração, em todas as decisões tomadas até aquele instante, e não via como ser de outra forma; não depois das notícias daquele dia.
O peito estava vazio desde a morte do irmão. Era um clichê muito grande ela dizer que Guilherme era um pedaço da sua existência, mas, como sempre, não podia ignorar o que sentia. O irmão fora uma parte que faltava em sua própria personalidade, como se os dois tivessem sido feitos como pecinhas de um mesmo quebra-cabeça. Enquanto ela sempre tivera medo do desconhecido, Guilherme nunca deixara de incentivá-la a novas aventuras. Ela era apegada mais a mãe, já o irmão vivia na cola do pai. Numa briga, ela optava por resolver na conversa, em contrapartida, ele, seco e cabeça-dura, apenas socava a cara de quem estivesse lhe atormentando. Era um jogo de opostos, que ela não deixara de gostar de participar. A imagem comum dos gêmeos de características conflitantes, que se fortalaciam juntos e perdiam os poderes quando afastados. Uma imagem que agora estava incompleta.
Aquela sensação de vazio a acompanhava nos últimos dias, como se nada mais importasse ou como se restasse para ela apenas a missão de aguardar um dia após o outro. Acreditava não ter mais pelo que lutar caso fosse preciso, nem para onde fugir. Sentia-se verdadeiramente sem rumo, até a manhã daquele dia.
— Como a Paciente 20 está? — perguntara o pesquisador Marcelo naquela manhã, um homem alto e magro, de nariz avantajado, traços dólicos e um olhar de quem dormia pouco. Estava se tornando uma rotina a aparição do médico na casa, sempre com aquela mesma pergunta no mesmo horário do dia. Trazia consigo os mantimentos para os garotos, produtos de higiene, medicamentos e, como naquele dia, notícias.
— Ela ainda tá fraquinha, mas já tá bem melhor. — Fora Márcia quem atendera a porta, deixando o pesquisador adentrar ao recinto junto à meia dúzia de soldados que ele trazia como guarda pessoal. — Tá ficando mais tempo acordada agora, tá menos pálida, o ferimento na perna tá cicatrizando muito rápido!
O médico sorrira com a animação da menina.
— Os poderes de regeneração dela são realmente incríveis… A Andréia teria gostado de ver isso pessoalmente.
— Ontem ela conseguiu se sentar na cama — ela completara.
A casa que servia de esconderijo para os adaptados era uma casa comum de um bairro comum da capital, com exceção da guarda extremamente especializada que ficava de prontidão nos portões. O bairro era pacato, longe das grandes avenidas e dos centros comerciais, o que dava a Márcia, acostumada aos prédios da cidade e ao barulho dos motores e buzinas, a estranha sensação de que nada daquilo era real.
— Tem notícias dos outros? — Victor perguntara ao pesquisador, em certo momento da visita.
Marcelo, Márcia se lembrava bem, havia ficado sem reação diante daquela pergunta por longos cinco segundos. E enquanto ela, Victor e Ariel aguardaram por uma resposta, o homem se ocupara em mexer nas papeladas que sempre trazia; anotações sobre o quadro clínico da sua paciente. Márcia não tinha gostado nada daquela reação. O peito se fechara por inteiro e o corpo encolhera no sofá da sala, enquanto os pensamentos ruins tomaram conta.
— Eles estão bem — o médico afirmara. — Ainda estão bem.
— Ainda? — Ariel se exaltara.
— Sim, ainda. — Mais uma vez, o pesquisador parecera pensar no quanto poderia dizer aos três adolescentes. Respirara fundo, antes de soltar as palavras presas na garganta: — As notícias não são tão animadoras… Por mais que estejamos nos colocando contra os planos do Paulo, a verdade é que ainda somos minoria, até mesmo aqui na capital. A nossa sorte é que o Paulo está ocupado demais para tentar descobrir quem estava ajudando a Andréia, mas podemos ter certeza de que ele irá caçar as bruxas de uma por uma assim que conseguir derrotar o ataque do Fernando e dos amigos de vocês.
Victor tinha se endireitado no sofá, antes de perguntar:
— Cê quer dizer que ele sabe do ataque?
— Tudo indica que sim. Recebemos alguns comandos do Comandante Manuel, onde ele pedia reforço militar no Centro de Pesquisas urgentemente. Claro, fizemos nossa parte daqui, colocamos mais alguns soldados aliados nesse grupo de reforço, para que eles possam ajudar quando for preciso, mas continuamos sendo minoria. — Descontente em ter que ser o porta-voz daquelas péssimas constatações, Marcelo balançara a cabeça em negação, comprimindo os lábios no processo. — Enquanto nossos amigos se preparam para um combate, nossos inimigos estão preparando uma armadilha.
— Meu Deus… — Márcia lembrava de ter levado a mão à boca, assustada com as próprias conclusões. Então aquilo significava que o Léo, Sandro, Graziela e todos os outros se encaminhavam, naquele momento, para uma luta suicida; que o Doutor Paulo novamente tinha as coisas sob seu controle e arquitetava a morte de oito dos seus amigos.
— Não se preocupem — o médico tentara amenizar a situação. — Assim como nós, vocês também serão protegidos quando… a bomba estourar de vez, digamos. Se considerarmos que não estão seguros aqui, nos encarregaremos de levar vocês para um local melhor.
— Não tô preocupada com a gente, Doutor — ela dissera. — São nossos amigos que estão sendo sacrificados! Não podem deixar que isso aconteça, por que não avisaram eles da ameaça?!
— Eles estão no meio de uma reserva ambiental, Paciente 19. Não acha que tentamos? — ele se exaltara. — O único local de boa comunicação na região da Serra Dourada é dentro do nosso Centro de Pesquisas. Fora de lá, eles estão por conta e risco única e exclusivamente deles; e da sorte.
— Precisamos fazer alguma coisa!
Márcia recordava bem da sensação de desespero que a havia tomado naquele instante. Lembrava-se de olhar para Victor e Ariel, buscando apoio nos únicos dois colegas que estavam ali, porém o que encontrou foi olhares caídos e envergonhados, deixando claro que aceitavam as tristes notícias como fato consumado e que não viam como mudar as coisas. Ela não conhecia muito o casal, no entanto aquela era uma atitude covarde demais para quem sabia das crueldades do Projeto; não entendia como eram capazes de ter uma reação tão passiva.
— O melhor agora é esperar e nos prepararmos para o que está por vir, pois a luta lá não será a última — concluíra o médico, como se batesse o martelo e dissesse que nada era para ser feito.
Ela passara o dia inteiro remoendo a conversa da manhã, acumulando aquela revolta contida, sabendo que não existia para quem clamar por ajuda. No entanto, assim que o manto anil da noite cobrira o céu, ela percebera que inconscientemente já tinha tomado uma decisão. Restava somente a coragem para concretizá-la, como se durante todo aquele dia sua mente fosse um barril de pólvora à espera de uma fagulha. E era por isso que a vista da sacada diante dela, naquele momento, era como um precipício gigantesco no qual estava prestes a saltar. Não tinha medo da queda, afinal suas asas estavam em perfeito estado. Tinha medo do caminho; dos motivos pelos quais abriria suas asas e para onde elas a levariam. Contudo, ela sabia ser preciso. E se fosse para avisar seus amigos do perigo, precisava sair às escondidas, na calada da noite. Não tinha certeza de que os soldados a deixariam sair de bom grado.
Deixou que as enormes asas brancas se projetassem para além das escápulas, quase cobrindo todo o espaço com sua envergadura. Respirou fundo, solvendo um pouco do orvalho no ar e então se inclinou em direção ao parapeito de metal.
— Espere! — Uma voz vinda de suas costas a impediu de saltar.
Virando-se assustada, pega totalmente desprevenida, Márcia pensou se tratar de algum soldado por um breve segundo, que certamente estaria a vigiando, quem sabe a mando do médico. Mas não. A ideia alarmada era apenas fruto da imaginação e no segundo seguinte, quando entendeu quem estava ali, voltou a respirar.
— Clara? — ela perguntou, como se para confirmar que seu plano ainda estava seguro. — O que faz aqui fora? O que faz de pé?
A menina curandeira se aproximou mais, meio cambaleante; parecia ter se esforçado bastante para conseguir atravessar o curto percurso entre sua cama e a varanda. O roupão e o cabelo amassado fortaleciam a imagem de uma garota doentia e de feições pálidas. Era como deveria parecer uma alma penada, pensou Márcia.
— Ouvi a conversa de hoje cedo — Clara declarou. — Sei da emboscada e da morte quase certa dos nossos amigos… Sei do que cê tá prestes a fazer.
As asas encolheram, envergonhadas, e Márcia suspirou pesadamente.
— Não posso deixar que isso aconteça sem ao menos tentar, Clara. Não é justo, eu não vou conseguir dormir pensando que talvez eu pudesse… ter feito a diferença. O Léo, ele salvou a minha vida. — Ela encarou a menina, decida; as asas retomando a firmeza, a postos. — Não tente me impedir. Pode ir contar para os guardas se quiser, não vou estar mais aqui quando eles chegarem.
— Me leva com você, por favor.
Aquilo, dito sem nenhuma preliminar, fez a menina alada perder o fio das suas certezas. Márcia observou mais uma vez a garota à sua frente, magra, pálida e em recuperação. Uma recuperação surpreendente, era verdade, mais rápida que qualquer outra da história humana. Todavia, ainda se encontrava longe de poder se aventurar num plano arriscado.
— Cê perdeu sangue demais, Clara…
— A Amélia — Clara interrompeu. — Minha melhor amiga de sempre. A única pessoa que me restou de antes de tudo isso começar, a única pessoa que realmente se importa comigo. Ela também tá lá, Márcia, indo encontrar com a morte sem nem mesmo saber.
— Mas…
— Ela me salvou três vezes. Salvou a minha vida três vezes e eu não vou conseguir salvar a dela nenhuma vez sequer. — Em um piscar de olhos, a voz de Clara se tornou embargada. — Me leva com você. Por favor.
Márcia suspirou. Não era correto tirar uma garota debilitada do único local que a faria melhorar. Ainda assim, os olhos suplicantes de Clara a miravam, resplandecentes, e era impossível ignorá-los. Ela sabia dos riscos. Ambas sabiam.
Esticando a mão para Clara, Márcia pediu:
— Segure-se bem em mim. — A curandeira deixou escapar um leve sorriso de alívio e, então, se atrelou a colega com todas as suas forças; o corpo ossudo, espetando Márcia, deixava evidente que aquilo era uma loucura. — Okay, o voo é rápido, mas voaremos baixo e pararemos para que você descanse.
As asas se esticaram novamente.
— Está pronta?
Clara assentiu.
Saltaram, então, para além da sacada e ganharam o céu noturno.
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