Velha capital

     A viagem seguiu calma e extremamente silenciosa na maior parte do tempo. Os veículos andavam sem pressa, longe de alcançarem a velocidade máxima para as quais tinham sido fabricados. A rodovia era escura e pacata na madrugada, com poucos carros circulando, que, em sua maioria, faziam o percurso contrário ao deles, indo em direção a capital. 

    Após passarem a primeira cidade, ainda na região metropolitana de Goiânia, Léo acabou pegando no sono outra vez. Não se incomodou com as bacadas do percurso; encostou a cabeça no primeiro apoio que achou e concluiu o repouso que tinha sido interrompido. Para o seu alívio, não sonhou. Um sono sem imagens, sem escolas, pés-de-manga, sem Janaínas, nem Amélias e, consequentemente, sem a sensação de vazio que o tinha arrebatado naquela mesma noite. Acordou duas horas depois, quando o céu começou a exibir as suas cores mais vivas — um alaranjado apontou entre as serras, acompanhado de uma faixa de céu azul, crescendo mais a cada minuto, como uma cortina que era erguida no início de um espetáculo. 

    Percebeu que as meninas também dormiam, encolhidas em seu próprio calor, com exceção de Camila, que era aquecida por Pedro. 

    — Já passamos umas quatro cidades — Pedro falou, usando do tom de voz mais baixo que possuía. — Não consegui pregar os olhos. 

    — Conseguiu identificar alguma delas? — Léo quis saber. 

    Recebeu um aceno negativo como resposta. 

    — Tava escuro demais — o amigo completou. 

    Aquilo começava, aos poucos, a incomodá-lo. Não gostava de surpresas vindas do Projeto, estando com seu pai ou não. A experiência havia lhes ensinado que as chances de algo ruim acontecer aumentavam quando não tinham plena consciência do terreno em que pisavam. 

    A luz do dia vagarosamente iniciava a sua invasão aos lugares, encurtando as sombras, revelando a silhueta da paisagem. De onde estavam, os rapazes podiam avistar apenas a estrada que ia ficando para trás: uma rodovia extensa, construída sobre a terra vermelha do Cerrado, onde se estendiam plantações diversas — laranja, soja, milho, eucalipto, pasto para gado — partindo das duas margens. Uma região vasta de planícies, Léo percebeu, com poucas áreas verdes restantes. Na estrada, atrás do veículo em que estavam, outros quatro da mesma cor seguiam em fila indiana, como um exército de formigas a iniciar a colheita diária. 

    — Acha que a gente já vai chegar invadindo o Centro de Pesquisas hoje? — Pedro perguntou, depois de mais alguns quilômetros rodados. 

    — Não sei — foi sincero ao responder. — Mas vamo saber na primeira oportunidade que a gente tiver. Não quero surpresas mais. 

    O moreno riu. 

    — De vez em quando eu ainda me surpreendo com as coisas que tão acontecendo. Nem parece que o lombo já tá amaciado de tanto apanhar. 

    Com apenas um sorriso em concordância, Léo deixou que o silêncio voltasse a imperar. Voltou-se novamente para a paisagem, que aos poucos ganhava outras conformações. As planícies davam lugar a um amontado cada vez mais íngreme de serras. A terra vermelha ficava para trás, fazendo surgir um terreno pedregoso, de coloração esbranquiçada. As plantações eram inviáveis ali, dando vez para a vegetação natural da região; árvores pequeninas e retorcidas, de casca grossa e folhagem ainda verde com as chuvas daquele verão. A mata se condensando a cada litro de combustível gasto pelos superjipes e sedans. 

    Não demorou muito para que as margens da rodovia ganhassem vida. Começaram a aparecer casinhas, típicas do interior do estado, a maioria mantendo suas portas abertas, que davam direto para a rua. Muitas também tinham, construídos ao lado como uma espécie de puxadinho, uma tenda onde eram vendidos produtos artesanais. Panelas e conchas, esculturas de todos os tamanhos para decoração, panos-de-prato exibindo bordados complexos. A quantidade de casas foi aumentando. Bares e restaurantes apontaram em meio aos artesãos, todos começando a abrir as portas mesmo estando ainda tão cedo. 

    No entanto, o que anunciou aos garotos onde estavam não foi nenhuma construção humana. Além das ruazinhas e das casas coloridas, em meio ao Cerrado que envolvia a cidade e que continuava a ser visível dentro do veículo, crescia algo majestoso: um amontoado de pedras, que saia do meio das serras e crescia, produzindo uma espécie de descontinuação na paisagem. Era como se o planeta tivesse, em algum momento da História, se partido naquele lugar, deixando para sempre uma rachadura; uma borda mais alta que a outra. Um acidente geográfico enorme, de quase dois mil metros de altura, que se estendia até se perder de vista, coberto pela névoa da madrugada que ainda pairava sobre a vegetação. 

    Era lindo. 

    — A Serra Dourada — confirmou Pedro, alto o suficiente para que despertasse as garotas. — Ops, foi mau. — Riu. — Bom dia, flores do dia! 

    — Bem-vindas a Cidade de Goiás — Léo esclareceu. Esperou que as três se aprumassem para prosseguir: — Camila, sabe os próximos passos que a gente vai dar? 

    A ruiva limpou os olhos; o rosto inchado. 

    — Não — respondeu. — O que eu sabia era até o resgate de vocês. Foi o que a Andréia e o Fernando me contaram. A partir de agora, também tô tão desinformada quanto todo mundo. 

    Ele bufou, descontente, antes de resmungar: 

    — Isso não é nada bom… 

    — Não confia no seu pai? — entremeio a um bocejo, Janaína inquiriu. Não havia ironia em sua voz, por mais que as palavras fossem capazes de atingi-lo na alma. 

    — Eu não confio no Projeto Gênesis. 

    Aquela resposta bastou para todos. Teve forças para colocá-los a refletir, cada um à deriva no próprio mar de incertezas, enquanto a comitiva de blacks adentrava a antiga capital. 

    — Se a doutora está morta — Pedro voltou a falar. —, então o Doutor Paulo sabe dos nossos planos? 

    Camila o respondeu:

    — Não dá pra saber, Pê. Mas o melhor agora é considerar que sim, que ele descobriu tudo. 

    Léo se perguntou o quanto a morte de Andréia afetaria os planos. Esperava que a cientista não tivesse partido com nenhuma informação importante demais, que seu pai ainda não possuía. As coisas não podiam ser feitas de forma desgovernada; era a sua vida e as de seus amigos que estariam em risco. 

    Respirou fundo, percebendo que os nervos começavam a se agitar com aquela correnteza sem fim de preocupações. Conseguia sentir a energia circular dentro do corpo, os hormônios buscando trabalhar para que a fera viesse a tona. Não podia deixar, por mais que seu organismo pedisse para se entregar aos sentimentos, mesmo que na teoria aquela fosse a sua natureza. Coisas ruins aconteciam quando a sua parte mutante começava a vencer, cegando o seu raciocínio na tomada de decisão. 

    Resolveu entreter-se com a cidade que se abria diante do grupo. Conhecia tudo aquilo dos livros de História, porém era a primeira vez que visitava o local. A Cidade de Goiás, também conhecida como Goiás Velho, carregava consigo o clima das cidades interioranas da época colonial, com casinhas típicas, de janelas a dar vista para as ruas, que, por sua vez, eram desniveladas e cobertas por blocos de pedra. O sol começava a ganhar força, contudo estava brilhando o bastante para que ficasse claro que os dias ali eram demasiadamente quentes. Não tardou para que o grupo começasse a chamar a atenção da comunidade. Os olhares curiosos logo despontaram nas portas, junto com comentários que não podiam ser escutados dentro do veículo, mas que Léo sabia serem para eles; muitos apontavam os dedos de forma despreocupada, deixando claro que não estavam acostumados a ver os blacks pela cidade. 

    Andaram por mais alguns minutos, com os motores trabalhando abaixo dos trinta quilômetros por hora nas ruas ladrilhadas. E, então, quando tinham atravessado quase toda a cidade, sentiram o veículo finalmente parar. 

    — Chegamos? — Amélia questionou. 

    Léo analisou em volta, procurando no meio da paisagem simples alguma pista da existência dos seus inimigos. O edifício do Centro de Pesquisas não se esconderia entre as casinhas, ele tinha certeza que seria um prédio que se destacaria de longe. 

    Mas não havia nada. 

    — Pra mim, já chega — ele reclamou, saindo do automóvel. 

    — Ah nem — ouviu Pedro dizer. —, o que ele vai fazer dessa vez? 

    — Léo, espera! — Camila pediu. 

    Saltou para o lado de fora, ignorando-a. Viu que estavam na beira da cidade, onde, poucos metros a frente, a mata ganhava espaço e se estendia por quilômetros até as grandes rochas da Serra Dourada. Olhou em volta, procurando Fernando entre os blacks que saíam aos montes dos veículos. Enquanto andava, percebeu que era seguido pelos amigos. Era provável que Camila estivesse o monitorando, querendo se certificar de que não faria nenhuma besteira. Contudo, a preocupação de menina era tola. Não estava nervoso; os seus poderes estavam muito bem controlados. 

    Avistou o pai a conversar com um soldado. O black explicava algo, enquanto o cientista acompanhava, concentrado, as informações com um grande papel, uma espécie de mapa, aberto sobre o capô de um dos sedans. Aproximou-se sem cerimônias, pouco se culpando pela conversa que estava prestes a interromper. 

    — Pai, a gente precisa conversar. 

    O pesquisador o fitou receptivo. Porém, antes que pudesse falar algo, o black tomou a palavra para si: 

    — Estamos em uma reunião importante agora, paciente 17. 

    — É Leonardo! — o rapaz levantou o tom, encarando o soldado com cara de poucos amigos. — Meu nome não é paciente 17, é Leonardo. 

    O black também o observou. Estava sem a máscara, o que deu ao garoto a chance de ver a expressão descontente que exibia, além dos olhos surpresos. Era bem maior e mais forte que o adolescente, sisudo e de cabelo cortado rente a cabeça, deixando quase aparente a careca negra. Fazia parte do time de blacks que havia ajudado na missão de resgate da fábrica de papel, Léo se recordava da voz. 

    — Léo — Fernando interrompeu o atrito que pairava no ar. —, esse é o comandante Amir, que vai guiar nossos soldados até o Centro de Pesquisas. 

    O loiro se voltou para seu pai. 

    — É exatamente esse o assunto. Com aquela correria toda, viemos parar aqui sem saber o que de fato vai acontecer. Não vamos continuar sem termos certeza do que estamos fazendo, onde estamos pisando. 

    Fernando concordou: 

    — Bem, acho que estamos diante da melhor pessoa para explicar. — Apontou para o black. — Comandante…? 

    Só então Léo percebeu que todos os seus amigos estavam logo atrás de si, até mesmo Sandro, Graziela e Alex, que haviam viajado em outro superjipe. 

O comandante apontou para o mapa no capô, como se pedindo para que o rapaz estudasse os detalhes contidos ali. 

    — O Centro de Pesquisas não foi levantado em qualquer lugar — Amir começou a elucidar. — Está encravado no meio da reserva ambiental, longe de qualquer tipo de civilização e envolvido pelo Cerrado. Foi planejado para que vocês pudessem usar a reserva como área de treinamento a céu aberto sem que fossem atrapalhados. — Léo avistou um ponto vermelho no mapa, cercado por uma extensa área de cor verde, bem longe dos quadradinhos amarelados que representavam os bairros da cidade. — A forma mais fácil de chegar é por helicóptero, mas, obviamente, não temos esse luxo. Ainda mais com Manuel possuindo uma tropa tão grande. Seríamos abatidos em minutos. 

    "Existe também uma estrada, uma única estrada, que é responsável por fazer a entrega dos equipamentos e materiais para o término da construção. Seria burrice tentarmos ir por ela, pois além de ser um caminho óbvio demais, que certamente tá cheio de guarda esperando a nossa chegada, também estaríamos entregando a nossa posição de mãos beijadas para eles, dando tempo deles se prepararem ainda mais." 

    Léo observou o mapa, entendendo onde o homem queria chegar. 

    — Vamos ter que ir pelo meio do mato. 

    — Você entende rápido, paciente 17 — Amir disse, alfinetando-o. — Será uma viagem de uns dois dias, mais ou menos. A mata dessa região não é muito receptiva, vai ser um caminho tortuoso. 

    Finalmente compreendendo a situação, Léo se voltou para seus amigos, buscando saber se todos tinham escutado o mesmo que ele. As expressões preocupadas respondiam por si só; um alto e sonoro "sim". 

    — Paramos aqui para nos preparar melhor antes de entrar na mata — foi Fernando quem continuou a dar informações. — Com a saída apressada de Goiânia, ficaram algumas coisas sem se resolver. Mantimentos, equipamentos… Os soldados irão providenciar aqui na cidade e, depois, partimos. 

    O bioquímico apontou para a reserva às costas do rapaz. Léo se virou para observar o que o aguardava. Uma imensidão de verde cobrindo tudo até alcançar o grande paredão de rochas. As árvores mais próximas, na encosta da cidade, já davam a certeza de que não seria um trajeto fácil: os troncos retorcidos, com as cascas grossas e, grande parte, com espinhos para proteção. 

    Em seu íntimo, praguejou com veemência. Mais uma vez, o Projeto arranjava um jeito de dificultar a sua vida. 

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