Segunda leva
Ouviu-se uma sequência incessante de tiros a sua volta, estourando como fogos de artifício. Léo, já transmutado em fera, desconsiderou o mundo que ruía ao seu redor, focado na figura da menina angelical caída, com apenas o corpo ensanguentado do irmão lhe servindo de escudo àlguns metros a frente. No meio do barulho das balas, ele só tinha ouvidos para o choro da loirinha, que urrava com a certeza de que o irmão não estava mais ali, abatida de tal forma que sequer teria forças para se desvencilhar do abraço protetor.
Léo correu sem fraquejar. Se alguém gritou para que não o fizesse, ele não tinha escutado; tinha convicção de que nada o faria escolher diferente. No fundo, estava atordoado dos pés a cabeça; as cenas das mortes de Élida e Guilherme tomavam dianteira em seus pensamentos a cada novo som de tiro. Uma salada de coisas corria solta na mente, enquanto tentava seguir até Márcia sem que nada o interrompesse.
Somente quando estava quase do lado da menina, que percebeu que algo não corria como ele esperava. A fera parou, finalmente dando atenção para o que acontecia ao seu redor, e então viu que as balas não atingiam as paredes que ele deixava para trás. Não buscavam acertá-lo. Os blacks miravam para outro canto, para além das instalações da indústria de papel, como se travassem de repente uma luta com inimigos que estavam do lado de fora.
Sem saber o que aquilo podia significar, e com o tempo para refletir escasso, ele aproveitou a chance para terminar o que tinha começado: correu até Márcia, tirou Guilherme de cima dela e o colocou de lado. O rapaz se encontrava ainda mais branco do que era, com uma perda irreparável de sangue. O corpo tinha despejado todo o líquido rubro sobre as vestes da menina, banhando-a com a morte da única pessoa que havia sobrado da sua família.
— Márcia, acalme-se… — ele pediu, lutando contra o choro desesperado e contra os estrondos das balas ao longe. — Vamos! Precisamos sair daqui.
Envolveu-a com um dos braços peludos e a levou dali. Márcia, sem saber como reagir, não se contrapôs a nada. Estava mole como uma boneca de pano, entregue à desolação feito um pardal filhote que caiu do ninho; um elemento de fácil abate, caso estivesse sozinha.
— Vai ficar tudo bem… — ele continuou a dizer, enquanto adentrava o cômodo outra vez e a depositava sentada no chão.
— Meu irmão. — Ela encolheu os joelhos de encontro ao peito, abraçando-os e se fechando para o mundo. — Não… Não pode ser.
Léo se ergueu. Queria poder continuar ali, confortando a menina de todas as formas possíveis até que se sentisse melhor, contudo as coisas do lado de fora não estavam inclinadas a esperar. O som dos disparos era incansável, persistia como se uma guerra estivesse estourado nas ruas da cidade.
— Acha que conseguimos salvar o Guilherme? — Sandro perguntou quando ambos estavam distantes o bastante da loirinha alada. Assim como Alex, o rapaz espreitava pelo canto da porta o que se passava do lado de fora.
A fera balançou a cabeça em negativa, decretando a contragosto o óbito do velocista. As pernas sempre bambas ao enxergar cada vez mais perto a face da morte.
— Mas ele foi o último — afirmou. E ao proferir aquela afirmação, tomou-a como verdade absoluta; não aceitaria que algo diferente se desenrolasse naquele dia.
Resolveu buscar entender o que acontecia no pátio central. Por que os tiros, mesmo que infindáveis, não mais vinham em sua direção? Aquilo estava longe de fazer algum sentido, os blacks não perderiam a chance de derrubá-lo por nada. Algo acontecia do outro lado. Esgueirou-se pelas paredes até que também pudesse avistar o grande arena iluminada pelo sol. Tiros, chamas, entulhos, corpos… O caos continuava cobrindo tudo da mesma forma.
Foi então que o barulho dos motores supitou no ar; o teco-teco já natural de hélices cortando o vento, avizinhando-se da indústria a passos largos. Um helicóptero idêntico ao que pegava fogo no solo ganhou forma entre os angicos, chacoalhando as folhas e as vagens secas.
Alex grunhiu em fúria.
— Os filhos da mãe chamaram reforços.
A segunda aeronave pareceu ainda mais ameaçadora para Léo, chegava como um monstro pronto para a batalha, descansado e cheio de energia, diante de adolescentes demasiadamente atordoados. Não suportariam uma segunda leva de soldados, não teriam forças para vencer uma reposição de armas e munição, ele tinha certeza.
Com o vôo rasante, a grande libélula metálica rodou todo o espaço aéreo, estudando cada metro de chão. Voava tão baixo, que a fera conseguiu ver a movimentação dos atiradores, apontando as grandes armas para fora do helicóptero.
— É suicídio sair lá fora, Léo — Sandro disse, como se se certificasse que o amigo não estaria pensando em fazer besteira.
Léo estava pronto para acalmá-lo, falando que não pensava em ir em lugar nenhum, e que só havia saído porque não suportaria ver Márcia perder a vida após seu irmão a proteger tão valentemente. Porém, sua mente estava presa em assistir os movimentos do helicóptero e de sua tripulação; uma angústia enorme o obrigava a não pensar em mais nada, como se tirar os olhos fosse a deixa que esperavam para atacar.
Quebrando todas as suas expectativas, entretanto, o ataque começou naquele mesmo instante. Como bomba de São João, as balas saíram de dentro da aeronave e traçaram o percurso até os seus alvos: os blacks do outro lado. Imediatamente, um dos homens comandados por Manuel caiu de seu posto, enquanto os outros buscavam se proteger, afoitos e em desvantagem, da mesma forma que tinham obrigado os adaptados a fazer. Os três traidores já não podiam ser enxergados dali.
— O que tá acontecendo?! — Alex questionou, negando-se a acreditar no que via. — Isso não faz sentido nenhum!
Não fazia, porém Léo estava absorto na quantidade de informações que recebia e não conseguiria montar uma pergunta. Resumiu-se a assistir a batalha ilógica entre blacks e blacks; os que estavam no chão fugindo e tentando contra-atacar, ao passo que os que estavam no alto mantinham a mão pesada, sem tréguas, e iam aos poucos abaixando a aeronave, preparando um pouso em um ponto de clareira do pátio.
E tão logo conseguiram pousar, começaram a sair e a se colocar em lugares estratégicos, mantendo sempre o rifle voltado para os que vestiam o mesmo uniforme que os seus, apertando o gatilho sem parar. Aos poucos, certamente pegos de surpresa, os homens de Manuel iam cessando os ataques. Entendiam que nenhuma investida a partir daquele instante produziria frutos, pois estavam presos em um jogo em que os dois lados possuíam as mesmas armas.
E quando as dúvidas pareciam lutar por espaço dentro de sua cabeça, sem que conseguisse encaixar as peças e encontrar os motivos da cena que acompanhava, a fera focou em um black específico que acabava de botar os pés para fora do helicóptero. Usava todo o uniforme, escondendo-se por detrás da máscara negra, e também mantinha a mesma postura ágil dos demais. No entanto, o que saltava aos olhos era o corpo franzino que o macacão preto não deixava esconder, além da silhueta curvilínea, da cintura afinada e do volume no busto.
— Uma black mulher? — Léo foi capaz de perguntar.
Mas não precisava que ninguém o respondesse, a conclusão estava nítida, exposta sob os holofotes do sol. A black caminhou para mais perto dos cômodos, a postura de quem não tinha medo dos adaptados que ali se escondiam. Nas suas costas, os outros soldados faziam a cobertura para caso o outro time de blacks tentasse eliminá-los. Ela parou em frente às entradas, abaixo dos degraus, fitando o nada como se esperasse as assombrações emergirem da escuridão.
— Estão armados — lembrou Sandro. — Não sei o que tá acontecendo, mas ainda não confio.
Depois do estrondo de tantos tiros, a ausência de disparos podia ser considerada um silêncio absoluto. Um silêncio que o barulho da labaredas do primeiro helicóptero, que o choro de Márcia e os resmungos de dor de Clara, nem os curtos comandos que alguns dos soldados emitiam, tinham poder de quebrar.
A black então percebeu os corpos estirados no concreto quente. Aproximou-se do que minutos antes era Guilherme, observou o corpo como um perito que analisa os detalhes de um assassinato. Após, voltou-se para Élida, agachou ao seu lado e pousou a mão sobre o pescoço, averiguando a presença de pulso. Levantou-se calmamente, deixando claro que não havia encontrado vida ali, e retornou para o mesmo lugar de outrora, de frente para as portas e a margem da escada curta.
— Apareçam! — ordenou com uma dureza coberta de feminilidade. No segundo seguinte, sem fazer questão de anunciar nada, livrou-se da máscara com um movimento rápido, feito alguém que se livra de cadeados.
E então, os cachos longos escorregaram por suas costas, colorindo de vermelho onde só se via o preto das roupas. Estava tudo ali, por debaixo da máscara: as bochechas salpicadas de sardas, a feição séria e imponente, o olhar ácido, meio abatido pelo que tinha encontrado ao seu redor. Estava tudo no seu lugar, Léo percebeu; nada havia mudado. Nenhum arranhão, nenhum sinal de queimaduras…
A fera mal percebeu quando botou os bigodes para fora do cômodo, as pernas caminharam sozinhas rumo a claridade. O sopro de arrepio eriçou os pelos, apesar do sol escaldante, assim como os sentidos ignoraram o perigo que era se mostrar. Blacks apontaram armas para o grande felino no mesmo segundo, prontos para deixá-lo como os outros dois adolescentes ali inertes. Mas a verdade era que estava pouco se importando com o que aqueles soldados fariam. Morreria, contudo não antes de ter certeza que o que via era real.
— Camila? — a voz grave saiu inconsistente, entupidas de dúvida e medo.
A ruiva o fitou com os olhos brilhantes e um sorriso de saudade.
— Achou que tinha se livrado de mim?
— Eu… — Observou os blacks que a acompanhava, depois estudou a própria menina, vestindo o uniforme de seus maiores inimigos. Aos poucos, mais adaptados tomavam coragem para sair. — Eu não entendo… Como…? O que tá acontecendo?!
A feição da menina se endureceu antes de prosseguir:
— Sei que deve tá cheio de perguntas na sua cabeça, mas agora não é o momento de explicar nada. — O mesmo tom imperativo de sempre se fazia presente. — Temos que sair daqui.
Tiros ecoaram ao longe, alertando-os; a batalha ainda não tinha terminado, Manuel não estava disposto a desistir.
Camila apontou para os homens que a escoltavam.
— Estão do nosso lado — esclareceu, sem fazer questão de explicar. — Precisamos sair daqui antes que mais soldados do Doutor Paulo apareçam. Não podemos…
— Camila? — embargada, a voz de Pedro soou pelo pátio antes mesmo que ele saísse de sua toca, acompanhado de Janaína.
— Pê!
As lágrimas se desprenderam dos olhos assim que se entreolharam. Pedro correu em direção a namorada, desesperado, como se sua vida dependesse daquele abraço.
— Camila! Meu Deus, é você! Cê tá viva! — O rapaz a enchia de curtos beijos, enquanto apertava a menina de encontro a seu corpo, aos poucos percebendo que não se tratava de uma miragem; as gotas que escorriam pela bochecha ficando presas nos vincos do sorriso. — Você tá viva!! Meu Deus, como eu pedi isso…
O sorriso que vencia as lágrimas no rosto do rapaz, fez com que Léo se lembrasse que há muito não via aquilo acontecer. Era como se o amigo estivesse ficado desaparecido durante as últimas semanas, junto onde quer que fosse o paradeiro de Camila, e somente agora retornasse. Assistir aos amores do casal trazia um alívio reconfortante para ele.
— Paciente 02… — um dos blacks chamou, despertando a atenção da ruiva.
Ela concordou com um aceno.
— Matamos a saudade depois — ela disse ao namorado, já se afastando. — Um veículo tá nos esperando lá fora. Vamos!
Não possuíam tempo para ser gasto à toa. O loiro retomou as feições humanas e correu até o cômodo.
— Ajuda a Márcia no percurso! — pediu para Sandro, ao passo que corria até Amélia e Clara. A curandeira havia parado de resmungar, o que não podia ser considerado um bom sinal. — Como ela tá?
Amélia segurou o choro para dar o seu parecer:
— Ela tá acordando e desmaiando. Tá fraca, eu não tô conseguindo estancar o sangramento.
O cheiro de sangue empesteava o quarto úmido. As mãos de Amélia comprimiam o ferimento com toda a força que tinha, trêmulas; as têmporas curvadas em aflição.
— Tudo bem… Tudo bem… — ele repetiu para si mesmo, como um mantra. — Ela vai ficar bem, só precisamos sair daqui. — Olhou para Amélia, no fundo dos olhos, e sorriu. — A Camila tá viva! Tá acompanhada de alguns blacks e…
— Blacks?
— Eu também não entendi — confessou, pegando Clara no colo. Alguns disparos voltaram a ressoar. — Mas eu confio nela. Vamos?
— Sim.
A enxurrada de novas informações continuava a afogar seus pensamentos, impedindo uma avaliação cuidadosa dos fatos. Porém, decidiu que pensaria em qualquer coisa mais tarde, quando estivesse em um local seguro com seus amigos. Acompanhado de Amélia e com Clara parcialmente desacordado em seus braços, juntou-se ao grupo de adaptados que seguiam para a saída mais próxima, com os soldados do Projeto servindo de dianteira. Passos rápidos, mas atentos. O barulho das balas cada vez mais raro; nenhum sinal do black-comandante, nem dos mutantes traidores.
— Por aqui — os soldados vez ou outra diziam, confirmando a segurança do trajeto.
Saíram para a área externa sem grandes percalços. Com a explosão da aeronave e quantidade de munição gasta, era até estranho encontrar as ruas da mesma forma de sempre. A guerra tinha se resumido ao terreno da indústria de papel, todavia não tinha ninguém nas proximidades mesmo estando em pleno horário de pico; certamente afugentados pelo pandemônio.
Do lado de fora, três superjipes pretos se destacavam da paisagem simples do bairro, com os motores ligados, prontos para partir. Distribuíram-se pelos veículos aleatoriamente. Léo acomodou Clara no colo, colando as pernas da menina sobre o colo de Amélia; o sangue manchando tudo e todos.
— Precisamos de um hospital! É urgente! — Amélia reiterou.
E sem nem perceber o momento exato, o veículo começou a andar em alta velocidade. Após alguns minutos, com as ideias finalmente decantando, Léo deu atenção para as outras pessoas que estavam no mesmo superjipe: além do black-motorista, Janaína e Sandro estavam um pouco a frente, e Pedro e Camila nos bancos mais atrás. Seus principais amigos estavam bem, apesar de tudo, o que não deixava de ser uma coisa boa.
Camila estava viva… Aquela notícia ainda não tinha sido processada integralmente pelo seu cérebro. Estava viva e trajava um uniforme dos blacks, dos homens que, nos últimos meses, tinham transformado a vida de todos eles no maior dos infernos.
— Pra onde tamos indo? — decidiu perguntar em tom inquisidor.
Camila sorriu; os olhos cheios de água represada.
— Eu tava com saudade dessa sua afobação… — Blacks, helicópteros, traidores, mortes, tiros, explosão, sangue, fuga. Era coisa demais. — Por enquanto, só tente se acalmar.
Impossível. Era coisa demais.
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