Sangue adaptado

     Léo se apossou da raiva para se transformar na fera; uma raiva que ascendia enquanto o cérebro finalmente colocava as informações no eixo. O rugido reverberou para além das paredes abandonadas da indústria, certamente abafando o som incessante dos veículos na avenida mais próxima. Lucas sorriu, satisfeito com o desenrolar de sua chegada, alimentando-se da indignação e da fúria de seus inimigos da mesma forma que um cão raivoso se deleita com um ataque violento. 

    — Busquem as saídas! — Léo gritou, já com a voz grave de fera. 

    Olhou em volta para se certificar que todos estavam preparados para lutar, e os punhos cerrados e a posição firme de seus companheiros não lhe deixaram dúvidas. Amélia segurou a mão de Clara em um instante último de proteção. Clara, por mais que possuísse um dom passivo, guardava em sua cintura um revólver, o qual sabia usar muito bem quando necessário. Sandro descalçou as mãos, o brilho nos olhos de quem sentia a liberdade absoluta, sem que precisasse conter a produção das toxinas. Alex olhou decidido para os três traidores, analisando-os com toda a ira acumulada dos acontecimentos dos últimos meses e escolhendo qual deles merecia mais os murros esmagadores de sua versão gigante. E Janaína, vidrada no corpo de seu funcionário sem vida aos pés de Lucas, deixava emitir a luz azulada dos globos oculares.

    Estavam prontos para se defender. Léo, entretanto, estava mais que pronto para atacar. 

    Encarou Lucas mais uma vez e não enxergou o garoto que tinha sido vítima do Projeto, que, assim como ele, não tinha escolhido se envolver naquela história e que por isso merecia misericórdia. Não… Lucas tinha sim escolhido um lado, estava colaborando para matar pessoas inocentes e, não havia como ignorar, era uma das principais ameaças para a sua vida e para a vida de seus amigos. Um sentimento ruim eriçou seus pelos quando a certeza de que Lucas merecia morrer fincou mastro na sua consciência. 

    Com um rugido, avançou em direção ao lobo; os passos quase atropelados com tamanha a pressa, as garras levantando tufos do líquen seco e da sujeira que caía dos galhos das árvores. A visão se fechou no alvo, nada mais tinha sentido senão a expressão sarcástica do lobisomem, a qual ele só queria dilacerar até que não restasse uma fibra de músculo para levantar o sorriso. Lucas, porém, manteve-se impassível, como se não fizesse muita questão de ir de encontro a seu adversário… Como se não estivesse ali para fazer esforços. 

    Aquilo não estava certo. 

    Léo freou os passos imediatamente, parando na metade do espaço que separava os traidores de seus colegas — no centro do pátio. E quando o corpo finalmente venceu a aceleração, um som diferente saltou aos seus ouvidos, ritmado, constante e que aumentava a cada batida. Foi obrigado a dar meia-volta e a retornar com a mesma velocidade para a sua posição anterior. 

    — Escondam! — vociferou, ao mesmo tempo que o helicóptero aparecia sobre suas cabeças. — Fujam!! 

    Enquanto corria, escutou o barulho atormentador das copas das árvores chacoalhando com as hélices da aeronave; folhas e mais folhas sendo reviradas, arrancadas de seus galhos e tiradas do cantinho de descanso no chão, onde haviam caído para se decompor. E junto com as folhas, poeira e ciscos, que foram ganhando o ar à medida que o helicóptero perscrutava a região, vagueando a poucos metros do chão. 

    E, então, como se não bastante, estouros de balas atingindo o chão também se fizeram presentes. Um atirador se colocou para fora da aeronave e mirou na fera que, grande, de pelo amarelado e chamativo, se encontrava exposta no meio da área descoberta. Léo, enquanto continuava correndo, viu as balas acertarem a sua volta, tirando cascas de concreto como pipocas e zunindo próximas a sua cabeça. Estavam longe de serem dardos tranquilizantes, assim como aquele ataque estava longe de ser uma missão de captura. 

    Enquanto chegava em um lugar mais seguro, perto das paredes, viu seus amigos começando a entrar para os cômodos, escondendo-se como ratos ao se acender uma luz. Tudo acontecendo como um grande flash diante da sua vista afetada pela adrenalina. Em volta, os adaptados corriam, os traidores continuavam assistindo de camarote e mais blacks surgiam por cima dos telhados, em lugares estratégicos. Corriam, espreitando, tentando se manter invisíveis no meio de toda a turbulência. Preparavam o ataque. O atirador no ar permanecia com a mira apontada para onde Léo tinha se refugiado e o gatilho semi-ativado, esperando somente o momento oportuno. Quando achava ver uma movimentação suspeita, desferia uma sequência exagerada de tiros. Estava claro a mensagem embutida em cada sequência de disparos, cada pipoco de balas só servia para lhe dizer que tinham munição de sobra e iriam continuar com a brincadeira por horas e horas. 

    Léo analisou a conjuntura de seus amigos: boa parte dos adaptados tinha se refugiado na escuridão dos cômodos, no entanto muitos ainda insistiam em ficar ali. Não entendeu o motivo daquela exposição ao perigo, até vislumbrar, no meio de todo o alvoroço de poeira e folhas, Élida. Os amigos, Grazi, Ariel e Víctor, também estavam próximos, mas a menina era o que importava. Posicionou-se em um canto no pátio, exposta o bastante para que pudesse enxergar o helicóptero, escondida o suficiente para que não fosse vista tão de início, e travou os pés no chão, como se dissesse que nada a tiraria dali. O cabelo afro se remexia com o vento, balançando assim como as copas das árvores. 

    Élida, imponente, fitou a aeronave, enquanto uma energia se acumulava em volta de si; faíscas saíam de todos os lados de seu corpo, os olhos se tornaram dois faróis. A turbulência ao redor pareceu perder força, barrada por uma espécie de campo elétrico que foi se condensando, virando algo quase maciço. Uma quantidade de poder que Léo jamais havia presenciado, canalizado em uma menina pequena demais para o feito, o que fazia tudo ganhar uma pitada de inacreditável. 

    Quando estava completamente envolta por uma aura elétrica de cor esbranquiçada, a soltar curtas descargas para todas as direções, Élida juntou forças, e com um grito despejou todo o poder em direção aos céus. A grande aura se transformou em um raio potente, digno das maiores tempestades de verão, que atravessou o helicóptero no meio e seguiu caminho para o sol brilhante. O estalo da corrente elétrica foi ensurdecedor, mas não venceu o som da explosão que se seguiu, ao se chocar com o metal da aeronave. O helicóptero foi perdendo controle, girando no céu como um inseto atordoado, a fumaça negra sendo expelida pelos motores, até que se deu por vencido e despencou do ar, caindo no pátio central e se despedaçando em fogo e entulhos. 

    Fugindo do calor e dos pedaços de ferro, Léo se encolheu onde dava. Estava admirado com o que tinha acabado de acontecer, o helicóptero no meio da fogueira podia até ser uma cena assustadora em outras circunstâncias, mas ali era como se enxergasse fogos de artifício. O atirador dos céus tinha caído para nunca mais se levantar e, junto a ele, a saraivada de tiros. Observou Élida uma outra vez, que mantinha-se no mesmo lugar; os amigos se escondiam nas paredes um pouco mais atrás. Um sentimento de dever cumprido transparecia na face dela e dos demais. Haviam arrancado dos blacks uma importante arma. 

    Rápido demais, entretanto, os blacks se certificaram de que o mesmo aconteceria com os adaptados. Antes que o sorriso aberto e o sentimento bom desaparecesse na cara de Élida, um tiro a atingiu no meio do peito. Os olhos se arregalaram, confusos, ao passo em que mais outro tiro alcançava o tórax, e depois mais outro. 

    — Não! — Grazi gritou, fazendo menção de que correria até a amiga, todavia foi prontamente segurada por Víctor. 

    A menina balançou com o impacto dos projéteis, e não demorou a se entregar ao inevitável; deu alguns passos para frente  — a blusa machado de escarlate numa velocidade arrepiante — e, então, caiu de bruços no concreto quente e poeirento. Entregou-se a morte, diante das ferragens em combustão. 

    Sentindo as pernas bambas e um amálgama de incredulidade e ódio, Léo procurou o assassino. E lá estavam eles, cerca de seis homens, colocados sobre o telhado da indústria como atiradores de elite. Um em específico, sem a máscara negra característica, com a postura altiva de um caçador na savana, Léo se lembrava muito bem de encontrar: Manuel, o black-comandante. Estavam em uma posição privilegiada, de onde poderiam acertar o que se movesse no extenso pátio e longe demais para que a fera se aproximasse sem ser percebido. Um ataque direto era um sonho utópico. 

    Percebendo o perigo, os demais jovens começaram a adentrar os cômodos. Victor, Ariel e Grazi se movimentaram rapidamente pelos cantos, como baratas a fugir de um chinelo. Léo, por sua vez, aproveitou a movimentação para também buscar um lugar mais seguro; atirou-se para dentro da porta mais próxima. Conseguiu escapar dos tiros, que procuraram sua sombra milésimos de segundo atrasados. 

    Dentro do cômodo, uma grande número de vozes o recebeu, todas visivelmente nervosas. Léo teve que se concentrar para conseguir entender o significava todo aquele burburinho. 

    — Léo, cê tá bem? — era Amélia que perguntava, sentada em um canto a pressionar a coxa de Clara. Mesmo com a luz faltante, ele conseguiu ver a mancha de sangue empregada em suas mãos. — Ela foi atingida — esclareceu.  

    Clara resmungava de dor a cada compressão feita pela amiga; travava os dentes e apertava os dedos. 

    A fera perambulou pelo quarto, sem saber no que pensar. A respiração pesada podia ser escutada por todos ali, com as bufadas de ar quente sendo expelidas como em turbinas de um jato. Deu as informações sem rodeios: 

    — Élida tá morta. 

    Dizer aquilo em alto e bom som voltou a fazer das suas pernas dois varetos verdes. Tinha certeza que o susto que via nos olhos dos outros adaptados também estava nos seus. Amélia levou a mão a boca, Alex andou de um lado para o outro, balançando a cabeça inconformado. Léo compartilhava de todos os sentimentos que via. Era uma ideia que não gostaria que se tornasse natural, a de que poderia perder seus amigos em batalha, um por um, até que não sobrasse mais ninguém. 

    — Quantos são? — Sandro perguntou, concentrado. — Cê viu eles? 

    — São seis homens, contando com o comandante — a fera respondeu. 

    — E os três garotos? 

    — Acho que os traidores só lutarão se conseguirmos alcançar os blacks. É impossível chegarmos até lá vivos, a gente precisa esperar que venham até aqui. 

    — Ótimo, já é um bom começo. Precisamos nos certificar de que todos estão protegidos até esse momento, então. 

    As ordens de Sandro foram simples, mas eram o que Léo precisava para colocar os pensamentos no lugar; sentir que não estava perdendo o absoluto controle da situação. Respirou fundo e se destransformou, era melhor para se locomover ali dentro, principalmente para o que queria fazer. 

    Não esperou o último pelo da fera desaparecer do corpo para se colocar perto da entrada, a espreitar o que acontecia do lado de fora. Ignorou o choro contido de Clara e o calor cada vez maior do dia, que fazia com que as chamas do helicóptero parecessem uma estrela em plena Goiânia. Ignorou tudo que podia interferir na sua observação minuciosa da conjuntura, e, então, conseguiu avistar algo importante. 

    — Márcia… — balbuciou, ao se deparar com a imagem da menina pequena e de cabelo joãozinho encolhida atrás de uma pilastra. Parecia machucada, o fácies assustado de quem sabia não estar protegida o bastante naquele local. Sua posição seria descoberta assim que os blacks resolvessem vasculhar o pátio além do telhado onde se colocaram. 

    Márcia olhava para outro canto, para uma porta, como se ali tivesse alguém conversando com ela. De onde estava, Léo não conseguia ver de quem se tratava, nem ouvia sequer uma palavra. De repente, ela concordou com a cabeça e  aprumou o corpo, como se recebesse ordens da porta. Estava se preparando para atravessar o espaço entre os dois lugares; cerca de cinco metros de espaço aberto e totalmente exposto. 

    — Márcia, não faz isso… — Léo resmungou para si mesmo. — Ah, merda… 

    — O que está acontecendo? — perguntou  Sandro. 

    — Nada. Ainda. 

    Sentindo como se uma pessoa de sua própria família estivesse prestes a cometer suicídio, Léo procurou a posição dos soldados do Projeto. Era capaz de ver alguns dali. Não se encontravam em guarda constante, moviam-se, a analisar cada grão de área. Márcia precisaria de apenas alguns segundos, contudo era contar com a sorte de não estar sendo vigiada por nenhum dos seis blacks. O coração do garoto estava prestes a sair pela boca. 

    Antes que ele pudesse pensar numa forma de ajudá-la, Márcia partiu afoitamente em direção a porta. Primeiro passo, segundo passo, terceiro… 

    Léo escutou os disparos. 

    Mais rápido que a bala, entretanto, um vulto irrompeu da entrada para onde Márcia corria, alcançou-a em uma fração ínfima de tempo e a envolveu em um abraço. Márcia caiu no chão, com seu irmão sobre si; cobrindo-a como um manto, protegendo-a como apenas um irmão protegeria. E tão veloz quanto Guilherme era, seu sangue também foi, saindo dos diversos lugares onde tinha sido atingido, escorrendo pelas roupas e pelo chão. Manteve-se agarrado a ela, rígido, como se para impedir que a sua cobertura falhasse. Estava seguro do que fazia; sua última luta foi travada parado, estático, fingindo-se de estátua até o último suspiro. 

    Por debaixo do irmão gêmeo, Márcia gritou de desespero. Estava viva. Sozinha e vulnerável, na mira dos blacks, porém viva. Mais do que nunca precisava de ajuda. Tomado pelo carinho que sentia pela loirinha, Léo saltou para fora do esconderijo seguro, transformou-se em fera e, ignorando o sangue fresco de Élida e Guilherme, avançou na sua direção. 

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