Rubi

Dando passos maiores que as pernas, ela estava determinada a não ficar para trás. Ao seu lado, outros três soldados iam no mesmo ritmo, andando quase correndo. Deixavam às suas costas o pátio em ruínas, os corpos mutilados e o cheiro de morte. Nos corredores do Centro de Pesquisas adentro, a calmaria e o ar puro ainda estavam presentes, o que era sinônimo de paraíso após tanta destruição. Mas não estavam ali para fugir do alvoroço, nem para tomar um ar. Estavam ali porque os ratos do lado de fora já tinham sido exterminados, mas o maior deles, o rato rei, tinha se escondido assim que vira seu grande império ir por água abaixo. Ela não poderia deixar. Doutor Paulo não sairia dali ileso, como se fosse um carta-branca em meio às dezenas de homens que perenciam ao cumprir suas ordens.

— Por aqui! — Um dos soldados apontou para o próximo corredor. Seus dois colegas seguiram o comando e Camila, sorrateira, foi logo atrás. Sobre a sua pele, o dom da invisibilidade a preservava de levar uma bronca militar ou até mesmo de que a proibissem de seguir adiante.

— Não devem estar tão longe — o outro notificou. — Esses corredores vão para o laboratório central, planejado para ser o cérebro do Centro. Ele não tá procurando por túneis pra fugir, nem nada disso. Tá simplesmente... Indo. Entrando cada vez mais pra dentro.

Ela escutou com atenção as informações, enquanto mantinha a cadência dos passos para que o som se mantivesse abafado. Os blacks que ela seguia estavam ariscos e preservavam o estado de alerta, pois tinham convicção de que um grande perigo se escondia nas paredes. Ela também havia aprendido a não subestimar a mente dos doutores do Projeto, principalmente a de Paulo, que gostava de surpreender com armadilhas. No entanto, também havia observado as reações do cientista frente a derrota do seu batalhão, o susto em seus olhos, a frustração em cada ruga da testa, e acreditava que as cartas que o homem guardava na manga tinham chegado ao fim. A fuga de Paulo não era a de alguém que tinha esperanças. Ele não era tolo a este ponto, disso ela estava certa.

— O garoto lobo pode estar nos corredores — um dos homens alertou.

— Está morto. Foi derrotado pelo leão.

— E o lagarto?

— Se rendeu alguns minutos antes. Está sob nossa guarda.

Demoraria um tempo até digerir tudo que tinha presenciado no pátio. Da arremetida desgovernada de Léo ao arrependimento de Tomás, tudo parecia um aglomerado de informações que precisavam ser tomadas em doses homeopáticas. Por enquanto, a sua decisão era de que nada daquilo importava. Já estava estressada demais para quem precisava manter o foco.

O Centro de Pesquisas guardava as características de um prédio inacabado. A iluminação era escassa em grande parte dos corredores, dando um ar soturno a um ambiente que, para ela, já era mórbido por si só. Haviam várias salas vazias, esperando serem preenchidas com o maquinário científico, com poções químicas, instrumentos de tortura, equipamentos hospitalares... Enquanto andavam, ela conseguia visualizar o pesadelo que seria viver encarcerada naquele lugar, aguentando os testes, os exames e os exercícios diários, e tendo como objetivo de vida servir ao exército brasileiro numa guerra que sequer tinha previsão de começar.

Um bom número de corredores depois, alcançaram a primeira porta fechada do caminho, o que imediatamente deixou os três blacks mais receosos do que o normal. Não fosse a tensão acumulada, ela teria revirado os olhos por debaixo da invisibilidade. Os soldados eram os mais experientes que haviam sobrado, porém fazia falta a presença obstinada do Comandante Amir para guiá-los. Abriram a porta com o máximo de sutileza; as armas apontadas, dedos no gatilho, prontas para atirarem a qualquer sinal de movimento.

— Estão vendo algo? — o black perguntou. Dos três, parecia ser o que tinha maior autoridade.

— Nada daqui — respondeu o primeiro.

— Nada — confirmou o outro. — Parece estar va... — Uma bala atravessou seu capacete, cortando suas palavras. Sangue espirrou nas paredes brancas, no tempo que o corpo despencou no piso reluzente.

— Se proteja!

Por mais que a ordem não fosse para si, Camila a obedeceu de prontidão. Mais tiros vieram do outro lado, pipocando para todos os lados. Não se lembrava de ver o Doutor Paulo acompanhado durante a fuga para o prédio, o que queria dizer que aqueles eram certamente blacks que já estavam posicionados mesmo antes da rebelião estourar. Homens da guarda pessoal, talvez. Os dois soldados revidaram o ataque na mesma proporção; sons de disparos preencheram o ar. Se ela fechasse os olhos, era bem provável que se imaginaria numa festa, um réveillon ou uma pecuária, com os céus se enchendo de cores e com todo mundo a sua volta soltando interjeições, admirados. O gemido que ela escutou, porém, era de dor. Mais um de seus aliados caía com uma bala alojada na glote.

— Mas que merda! — xingou o último black restante, vendo o desespero ganhar forma. — Atenção! — ele gritou ao rádio instalado no peito esquerdo. — Encontramos resistência! Preciso de reforços! Agora! Vou precisar recuar! Mande reforços!

Agachada em seu cantinho protegido, Camila assistiu ao homem desferir mais alguns disparos. Não se moveu. Estava longe demais para ajudá-lo e seria acertada assim que saísse dali. Além do mais, o sucesso do seu plano não dependia de um batalhão de guardas. Sabia que estava tão sozinha quanto aquele pobre homem na empreitada. Quando a munição já revelava seu fim, o soldado saiu da pilastra de proteção, atirando incansavelmente enquanto dava passos para trás. Mais alguns metros e ele conseguiria virar o corredor, o mesmo por onde tinham vindo. Chegava tão perto, que o desespero enfim falou mais alto: deu as costas e saiu correndo, disposto a atravessar os últimos metros vencendo a velocidade das balas que estivessem em seu encalço. A sua esperança, entretanto, se perdeu no segundo seguinte, quando seu sonho de êxito culminou no beijo de um projétil com sua nuca. Os miolos voaram para as paredes e o corpo caiu de bruços. Um ser inerte. Um manequim tingido de vermelho.

Os disparos cessaram em seguida, deixando para trás a falsa tranquilidade do silêncio outra vez. Mas Camila não podia perder tempo. O reforço chegaria a qualquer momento, o que a impediria de continuar. Ainda sobre seu manto invisível, se levantou e caminhou até a porta sem pressa, desviou dos três corpos e seguiu em frente, entrando noutra sala que em nada se distinguia das outras salas vazias senão pelos quatro homens distribuídos pelo recinto e pela segunda porta que dava para outro corredor.

— Ele chamou reforços — ressaltou o homem a esquerda. — Não devem demorar muito.

— Mantenham-se nos seus lugares, vamos continuar seguindo as ordens do Comandante Manuel — o mais distante deles, próximo a porta de saída, deu as orientações. — Atirem em qualquer um que aparecer naquele corredor.

— Se o garoto felino aparecer, não vamos conseguir pará-lo.

O terceiro riu, mas não parecia estar achando graça da situação.

— Se ele aparecer, estamos mortos — disse ele. — Não vou ser eu que vou ficar aqui tentando impedir ele de passar.

Camila se posicionou no centro da sala, com os quatro homens ao seu redor. Eles tinham medo do Léo, no entanto não seria o felino o carrasco de suas vidas. Ela mirou no primeiro, o que dava as ordens — sempre era bom eliminar os cabeças, essa fora uma das instruções que recebera durante os treinamentos com o comandante Amir. Atirou e acertou em cheio. O homem caiu sem chances de reação.

O som do tiro assustou os outros três.

— Mas que porra foi essa!? — Correndo até o companheiro, o soldado exclamou: — Jorge! O que aconteceu?

— Ele tá morto!

— Quem atirou?

Ela não estava disposta a deixar que instaurassem uma investigação. Mirou, então, no metido a detetive e atirou. Mais um estrondo e mais uma morte.

— Que merda tá acontecendo aqui?!

— O barulho tá aqui! O barulho veio daqui de dentro!

— A menina metamorfa! — concluiu o da esquerda. — Ela tá aqui! Pegue o óculos de visão de calor!

Ele começou a vasculhar em seus bolsos, procurando o que Camila achava ser os óculos de radiação infravermelho. Demorou por tempo suficiente para que ela voltasse o cano do revólver para sua direção e atirasse. O terceiro homem se esborrachou com o tiro no centro da face e o nariz afundado para dentro. Aproveitando o embalo, ela girou novamente o tronco e mirou no quarto homem. Esperava encontrá-lo colocando os óculos. Achava até que ele veria a sua posição e a arma apontada para si, antes que ela apagasse sua visão para sempre. Mas não. Encontrou-o ajoelhado, de cabeça baixa e os cenho franzido, com os olhos procurando por todos os lados a direção em que sua morte viria. Num ato de aflição, levantou as mãos em súplica.

— Não atire, por favor!

Ela refletiu por um tempo. No fim, ordenou:

— Coloque as armas no chão. — Ele obedeceu sem hesitação. — Quantos mais de vocês eu vou encontrar aqui dentro?

— Nenhum, eu te garanto. Eram só nós quatro, todos os outros estavam lá fora.

— Já decorei sua cara. Se estiver mentindo...

— Não tô, eu juro.

— Levanta — ela mandou e foi atendida antes mesmo que terminasse de falar. Então era assim que Janaína se sentia com seu poder? — Vai lá pra fora e se renda se quiser realmente viver.

Ele concordou com um aceno e começou a andar. Sequer olhou para trás. Passou pelos amigos, dando uma última averiguada incrédula em seus corpos, depois pelos corpos dos adversários e desapareceu pelos corredores.

Camila tomou um pouco de ar, desfrutando do silêncio que novamente pairava no ambiente, mas não demorou-se. Apanhou do chão as novas armas e seguiu adiante, atravessando o enésimo corredor. Acreditava na sinceridade do black; não parecia que encontraria mais homens como ele. Contudo, conservou a cautela nos passos, pisando devagar para que não chamasse a atenção. Também se manteve invisível.

Quanto mais adentrava, sentia um frio lhe envolver e os pontos de escuridão adensando e cobrindo as superfícies. Podia jurar que as paredes brancas ganhavam mais tons de cinza, perdiam o brilho. Aquilo era parte de um pesadelo? Ou pior: estaria se deixando levar pelo medo? Bufou e balançou a cabeça, espantando qualquer sentimento ruim que anuviasse a sua determinação. Era meio irritante como, por mais que se sentisse corajosa, a simples menção ao geneticista limitava suas ações. Os passos seguintes precisaram de uma firmeza maior para que não abrandasse o caminhar e estagnasse de vez. Cruzou outras salas, cópias das anteriores, e atravessou mais corredores e escadas. Parou apenas quando uma luz azul surgiu diante de si.

Nos enormes tubos de vidro estavam conservados os seus amigos e colegas. O líquido azul preserva-os inertes, como se dormissem e pudessem acordar a qualquer momento. As feições petrificadas, paradas no tempo, e os semblantes calmos, feito estátuas de cera. Se não os conhecesse, poderia até dizer que estavam dentro dos tubos por livre e espontânea vontade. Élida, Guilherme, Letícia, Thiago, Mônica e... Segurou o soluço na garganta. As lágrimas, no entanto, já desciam pelas bochechas. Matheus. O amigo que tanto a fizera sorrir e sempre estivera ao seu lado. Quando suas amigas ficavam irritantes demais com problemas supérfluos, ele se tornava seu confidente. E conciliador, quando alguma discussão de relacionamento imbecil entre ela e Víctor abalava o vínculo do grupo. Uma pessoa que definitivamente não merecia morrer e que, assim como todos eles, tinha sido obrigado a abdicar de uma vida normal.

Lamentava tanto por não ter podido se despedir.

— Fico feliz por ser você aqui. — A voz ácida do Doutor ressoou pelo grande covil.

Ela o encarou, alarmada com a sua falta de atenção. Paulo estava a poucos metros de distância, encostado em uma mesa; os dedos a tamborilar sobre o móvel. Só então ela notou que sua desatenção a tinha feito desativar seus poderes. Paulo a fitava com um sorriso receptivo — ela tinha nojo de todos os sorrisos que ele expressava. Mirou o revólver, segurando com as duas mãos dessa vez. Apesar do gesto intrêmulo, as lágrimas continuavam a obedecer as leis da gravidade.

— Não se mexa!

— Sendo sincero, — ele prosseguiu: — eu odiaria ter que ver a cara do Fernando outra vez. Muito menos a do Leonardo. Só Deus sabe o quanto eu acho aquele moleque irritante. Odiaria também que fosse um adaptado qualquer que estivesse diante de mim, algum por quem eu não tivesse nenhum tipo de sentimento. Mas, você, não. Você é especial, Paciente 02. Camila... — Soltou um arzinho de divertimento, como se risse de uma piada que só ele tivesse escutado. — De todas as pedras no meu sapato, você era a que eu mais admirava. Quase uma pedra preciosa. Uma jóia. Fico me perguntando o quanto disso tudo já estava escrito no caderninho do destino. Se eu não tivesse escolhido a sua turma escolar para ser os meus cobaias, se nossos destinos nunca tivessem se encontrado, será que eu estaria nessa situação agora? — Ele a estudou como um pai que avalia as destrezas de sua prole. — Acredito que não há mais tempo pra orgulho nem modéstia, minha menina. Você e eu sabemos muito bem que se não fosse a sua inteligência em coordenar um levante dos adaptados, os outros não teriam feito isso por conta própria. — Olhou para o céu, como se procurasse alguma coisa em seus pensamentos. — O poder da camuflagem para a cobaia mais arisca de todas. O destino realmente foi bastante irônico comigo, temos que reconhecer. Olhando por esse ângulo agora, os sinais da minha derrota estavam o tempo todo diante de mim, mas eu me recusei a observá-los com a atenção que mereciam.

— Me dá... — Não queria, mas os soluços a impediram de falar com vigor. — Só... Só um motivo pra eu não t-te matar agora.

Ele negou com um gesto. O sorriso se mantinha.

— Eu estaria mentindo se dissesse que tenho algum. No seu lugar, eu me mataria neste exato segundo. E digo mais: se ainda adiantasse alguma coisa, eu também te mataria. Não estaríamos nem tendo essa conversa. Você é bastante piedosa por me dar esses minutos finais. — Ele refletiu, antes de continuar: — Não... Mas não espere que eu agradeça, nem que eu implore por misericórdia. Sabe porque, minha ruivinha? Por que eu a-b-so-lu-ta-mente não me arrependo de nada. NADA. Olha o que fizemos! Nunca na história desse planeta chegamos tão longe na transgenicidade humana. Produzimos verdadeiros milagres dentro dessa pesquisa. Eu faria tudo de novo, se soubesse que teria os mesmos resultados. Mataria quantos fossem preciso, produziria dez vezes mais cobaias se necessário.

Ele começou a andar vagarosamente.

— Para trás! — ela ordenou, entretanto foi ignorada. O cientista se aproximava a passos lentos. — Pra trás ou eu atiro!

— O mundo jamais será o mesmo depois do que produzimos e isso me alegra tanto! Você precisa atirar, porque só isso vai te garantir que eu não vou continuar. Enquanto eu estiver nesse mundo, o Projeto Gênesis estará vivo e eu estarei no comando, porque as ideias são MINHAS!

— Pra trás! AGORA!

— Enquanto eu estiver vivo, você pertencerá a mim e será minha criação!

Um disparo. Paulo abriu a boca, renovando o fôlego. Olhou para o peito, para o sangue que manchava a camisa branca e escorria pela barriga. Sorriu mais uma vez, com as pernas começando a perder as forças.

— Eu sabia que tinha coragem. Sabia que não ia me decepcionar.

Tudo que veio em seguida se tornou um borrão desconexo da realidade na mente de Camila. A queda do cientista, seus olhos arregalados durante os últimos suspiros, o sorriso que não saia de sua boca, o sangue, os espasmos... Em algum momento, ela também caiu, sentindo o ar faltar-lhe nos pulmões. As mãos tremiam — ou era o corpo inteiro? A garganta doía, mas não sabia porquê. Estava gritando, era isso. Como faria para parar? A visão se escureceu, mas logo voltou, nebulosa e ainda incongruente. Viu blacks ao seu redor. Alguns apenas observando, sem saber o que fazer. Outros pediam para que ela se acalmasse, que tudo tinha acabado e que ficaria bem. Alguém a pegou no colo, o que a incomodou num primeiro instante. Como faria para se desvencilhar daquele toque? Não queria que nenhum homem desconhecido lhe pusesse as mãos.

— Sou eu, amor. — Era Pedro quem a abraçava. Com o ar retornando para os pulmões, sentiu-se finalmente segura. — Calma, sou eu. Vai ficar tudo bem.

Ia ficar tudo bem. Pedro estava afirmando isso para ela, com uma voz tão serena e acolhedora que se tornava inevitável confiar. Ele repetia incansavelmente aquelas mesmas palavras. Repetiu tantas vezes que ela decidiu que podia acreditar.

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