Ratos de rua
Era estranho escutar o chiar dos pneus no asfalto da avenida mais importante da cidade, pois fazia-o lembrar constantemente que, mesmo estando tão perto da civilização, sua nova realidade se resumia a viver nas surdinas. Escondendo-se durante o dia, saindo apressado após o crepúsculo apenas quando extremamente urgente, havia passado de rato de laboratório para rato de rua.
Aquele tinha sido o melhor lugar que haviam encontrado: uma indústria de papel abandonada há muito tempo ao lado da avenida que partia Goiânia ao meio. Ficava, também, às margens do córrego Capuava, um fio d'água que se perpetuava cristalino apesar das casas construídas em sua encosta, dos barrancos descobertos e da facilidade em encontrar lixo navegando correnteza abaixo. As dezenas de garças que repousavam famintas nas árvores marginais denunciavam que aquele não era mais um ambiente saudável. Mesmo assim, o córrego tinha se tornado a água de beber e de banhar do grupo.
Léo analisou as suas novas instalações pela milésima vez, e pela milésima vez teve que segurar a inconformação para si. Estava evitando reclamar das coisas; todo mundo estava perdido demais, e não precisavam de mais alguém remoendo amargamente a situação. Apesar do silêncio, a visão não era nada agradável — de forma implacável, a natureza tomava conta do que um dia fora uma grande indústria. A mata ciliar emergia do concreto, pequenas árvores já faziam sombra em quase todo o terreno e ajudavam na difícil tarefa de se manterem escondidos. Não era uma toca aconchegante e nem trazia a calma que ele sentira dentro do galpão abandonado, contudo o que precisavam no momento era de proteção e estava disposto a se enfiar nas valas de esgoto se assim fosse necessário.
Encostou-se nas paredes carcomidas, analisando o pátio central do esconderijo a sua frente, envolto pelos diversos departamentos da indústria que agora abrigavam os jovens. Conseguia ver dali Victor e Ariel abraçados, conversando carinhosamente, e mais ao longe Márcia se recostava em Guilherme, buscando o conforto dos braços do irmão. Encontrou com o olhar Pedro, sentado embaixo de uma das árvores a brincar tediosamente com alguns gravetos. Sozinho. O restante, ele percebeu, mantinha-se dentro dos cômodos escuros, sem ânimo para a socialização.
— O que essa cabecinha tanto matuta? — escutou a voz vir da porta mais próxima.
Amélia caminhou até ele com um sorriso meigo na cara, como se dizendo que não precisava que ele respondesse para que ela tomasse a decisão de animá-lo, fosse o que fosse o problema. Apesar dos dias enfurnados ali, sem muita higiene e sem os produtos de beleza que uma garota estava acostumada a usar no dia-a-dia, a menina guardava uma beleza natural surpreendente. Não precisava de perfumes e nem do cabelo hidratado para que ele enxergasse o sorriso estonteante e o brilho nos olhos, nem de roupas cem por cento limpas para que ele soubesse que aquelas vestes guardavam um corpo de pele macia, que ele adorava abraçar.
Os dias estavam sendo difíceis, contudo ter Amélia ao seu lado era o porto seguro de que precisava. Principalmente quando seu melhor amigo mantinha-se afastado, nos cantos, sempre sozinho. Os gravetos secos eram constantemente a companhia de Pedro, como estava sendo naquele momento.
— Não é nada demais… — respondeu ele, sem se importar se parecia convincente.
— Certeza? — Não pareceu. Amélia o envolveu em um abraço, enquanto procurava no grande pátio o motivo pelos minutos de reflexão de seu namorado. E lá estava Pedro. — Não se preocupe, ele vai te perdoar. Ele precisa passar por esse momento sozinho.
Léo suspirou.
—Eu sei…
Não havia nada que ele pudesse fazer, ele já tinha se conformado com os fatos. A paciência, como Sandro sempre dizia, era uma dádiva. Porém, por mais que todo mundo lhe desse o mesmo conselho e lhe dissesse as mesmas palavras de motivação, não era nada agradável engolir a situação quieto. Estava certo de que chegava a hora de tentar uma reaproximação com o amigo, mesmo que os gravetos não estivessem dispostos a dividir a atenção com mais alguém.
— Tava conversando com a Grazi — Amélia expôs, mudando de assunto.
— E…?
— Ela tá preocupada com a falta de notícias do Matheus. Era pra ele ter chegado ontem aqui, mas não chegou e também não entrou em contato. — Ela se virou, ficando ao seu lado o bastante para poder enxergar os seus olhos; para analisar o que se passava na cabeça do loiro. — Cê acha que…?
— Ele foi o primeiro? Acho que sim. — Não era uma conclusão tão complicada de chegar, ele percebeu. Os anúncios estavam em todos os jornais, avisando quem quisesse saber que o Projeto Gênesis estava caçando adolescentes por toda a cidade. — Acho melhor a gente não contar mais com a chegada dele.
Sentindo o peso daquelas palavras, Amélia encolheu o corpo em direção ao seu, abraçando-o ainda mais forte. Aquelas eram conclusões aterrorizantes, que faziam o futuro parecer nada mais que um breu, uma nuvem de fumaça espessa pela qual era impossível deixar de se aventurar. Em pouco menos de dois meses, a única coisa que ainda carregavam de suas vidas normais era a saudade; nem mesmo os corpos, nem seus espíritos, eram os mesmos.
E acima de todas as coisas comuns que Léo deixara para trás, estava a sua mãe. Lembrar que não havia tido a chance de encontrá-la após o incêndio no prédio do governo só não doía mais que perceber que poderia morrer sem tê-la visto uma última vez. Queria pedir desculpas pessoalmente por tudo que estava acontecendo. Precisava pedir desculpas pelas atrocidades de seu pai.
— Sabe que dia é hoje? — ele perguntou depois de alguns minutos de silêncio. O pátio em ruínas não costumava sair daquele estado: um eterno e fúnebre silêncio.
— 16?
Era incrível como as lembranças podiam estar tão vivas depois de tanto tempo.
— Sim… 16 de Março… — O peito ainda se contraía em desgosto. — Hoje faz sete anos que ele morreu.
Durante seis anos, aquela data sempre trazia consigo um sentimento de injustiça. Afinal, um acidente automobilístico não parecia a melhor forma de um cientista prestes a ganhar o mundo morrer. Tinha sido cedo demais; comum demais para um homem com tantas particularidades. Léo sempre se negou a pensar de forma profunda sobre o ocorrido, como se manter as lembranças longe também pudesse afastar o amargor da injustiça do universo. Talvez, ponderou, estivesse em uma conjuntura melhor se tivesse refletido sobre o assunto e enxergado as pistas desde o início.
— Eu sinto muito — escutou Amélia dizer, e por mais que soubesse que ela estava sendo sincera, as palavras aportaram em seus ouvidos sem muito significado, como se tudo estivesse longe demais para que o salvasse das lembranças ruins.
O aniversário de morte de seu pai sempre o deixava distante da realidade.
— Minha mãe… — ele pensou em voz alta. — A gente costumava fazer alguma coisa pra sair da rotina todo ano, meio que pra não ficar pensando no ocorrido. — Recordou-se dos últimos anos, em como sua mãe sempre conseguia tirá-lo de casa naquela data. Cinema, shopping, shows… Riu, apontando para o pátio. — Mas não posso dizer que a tradição foi quebrada. Não tem nada de rotina nisso tudo.
Léo comprimiu os lábios e olhou para o céu azul do fim da manhã, percebendo que suas palavras estavam prestes a fazer as lágrimas descerem. Não queria chorar, disto estava convicto. Havia se cansado de responder aos acontecimentos com prantos.
Amélia o fitou; a face era séria, mesmo que cheia de empatia.
— Sei que tá sendo difícil, eu no seu lugar também estaria louco para ver minha família…
— Eu só achei que fosse ser mais fácil manter distância dela depois de contar tudo — tentou argumentar. — Mas hoje é um dia que mexe muito comigo, só isso.
— Eu sei, Léo. Mas só lembre que se manter distante ainda é a melhor forma de deixar ela protegida. Ainda mais agora, sair pelas ruas é quase um atestado de suicídio. — Ele queria discordar, contudo não tinha como. — Já estamos perdendo pessoas demais.
E de forma involuntária, o loiro observou Pedro novamente. O rapaz tinha se tornado parte da paisagem; uma estátua bastante realista de um garoto e seus gravetos.
— Não se preocupe — acalmou-a.
— Ótimo.
Amélia o beijou rapidamente, e então se afastou com um sorriso de satisfação.
— Ei! Onde cê vai? — ele perguntou, confuso.
Sem deixar os passos cessarem, ela se virou novamente para o namorado, andando de costas enquanto respondia:
— Procurar o Alex. Preciso conversa com ele.
— Mas… — começou a falar, porém a menina já estava muito distante para ouvir seu tom receoso.
Havia um pequeno sentimento ruim que se acendia toda vez que Amélia mencionava o nome de seu mais novo amigo; Léo percebera a sua existência no instante em que encontrara a menina nos braços do gigante, sendo salva das chamas do Centro de Pesquisas. Alex era um bom garoto, isso ele não podia negar, contudo não era pela maldade que Léo se preocupava. O loiro gordinho tinha conquistado a amizade de sua namorada rápido demais para seu gosto. Uma amizade que, com o passar dos dias, com os dois juntos naquele esconderijo, se tornava cada vez mais forte.
Observou a garota adentrar um dos precários cômodos daquele lugar e, então, obrigou-se a apagar o sentimento estranho. O dia já estava recheado de pensamentos e memórias tristes para que alimentasse desnecessariamente mais uma e, ainda por cima, havia muito o que planejar antes que o sol se pusesse.
Resolveu finalmente desencostar das paredes e se pôr em ação. Tinha muita coisa a ser feita, e como líder sua função era se certificar de que as coisas estavam nos trilhos. Não podia deixar que os ânimos do grupo se tornassem depressivos, tinha a obrigação de se colocar esperançoso diante dos amigos.
Aquela noite seria uma noite importante. Afinal, nem só de uma toca segura viviam os ratos. Também precisavam se alimentar.
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