Prólogo

    O carinho pela natureza, pelas coisas verdes e pelo característico som do mato parecia ser algo que involuntariamente todo mundo precisava criar, como uma lei universal elaborada nos confins da sociedade moderna; silenciosa e inquestionável. Mas a verdade era que Matheus nunca tinha gostado de sair da área urbana. As viagens que sua falecida família costumava fazer para o sítio de seus tios sempre se mostrou uma grande furada para ele. E, no fim, ele tinha razão; lugares afastados e calmos envoltos por verde só serviam para soldados do Projeto matarem famílias sem serem percebidos. Era, então, uma grande ironia que estivesse buscando alcançar o parque mais próximo naquele momento. 

    O anúncio tinha sido feito fazia poucas horas, mas a cidade que Matheus atravessava já não podia ser considerada o mesma cidade que tanto amara. Jamais imaginou que as coisas poderiam chegar àquele estado, porém os seus pés cansados de tanto correr não o deixavam duvidar de que tudo era real. 

    A passos largos, virou mais uma esquina, emaranhando-se entre os edifícios em busca de camuflagem entre as pessoas na calçada. Pensou em diminuir o passo, agir como um adolescente normal que seguia para sua casa depois de um cansativo dia de aula. Entretanto, o medo no peito rapidamente jogou a ideia para escanteio. A melhor opção era encontrar uma área verde onde pudesse tirar vantagens de seus poderes. Precisava continuar correndo, o Parque Zoológico da cidade não estava muito longe de sua localização; era o local perfeito. 

    Não demorou muito para que começasse a avistar um furo entre os edifícios a frente. O espaço sem as grandes construções estava a pouco menos de meio quilômetro de distância, servindo de recanto para pássaros e pequenos animais em plena Goiânia. Respirou fundo, buscando oxigênio para os músculos já exaustos. Se desistisse ali, todo aquele esforço teria sido em vão. 

    O plano que precisava executar era simples, tratava-se apenas de uma questão de sair do orfanato que servira de casa no último mês e encontrar seus amigos do outro lado da cidade, para que lutassem juntos. Não imaginou, contudo, que pudesse encontrar soldados vestidos de preto sob a luz do dia, andando pela cidade como se fossem parte da guarda municipal. Não esperava dar de cara com aquela corja na linha do BRT, caçando adolescentes entre os milhares de passageiros do eixão. O coração disparava ainda mais ao refletir sobre o que poderia acontecer após a exposição do Projeto. 

    Depressa e sem diminuir a corrida, olhou para trás. Viu que uma carreira de pedestres perdidos se formava a medida que iam cruzando com seu caminho; olhavam-no com curiosidade, estranhavam a sua destoante pressa e, então, luzes pareciam se ascender em suas mentes, como se finalmente entendessem o que se passava ali. Apesar de tudo, seu maior problema se encontrava um pouco mais atrás: um sedan preto que dobrava a mesma esquina que ele havia dobrado, acelerando na rua pela qual os carros andavam calmamente, chegava cada vez mais perto. 

    — Merda… — ele grunhiu, buscando novamente se concentrar em terminar o percurso. As pernas pedindo arrego cada vez mais alto. — Sai da frente! 

    A voz saiu arranhada, o peito se ocupava inteiramente na tarefa de buscar ar e não havia tempo para palavras. Não havia tempo para mais nada, senão escapar. Aos poucos, Matheus enxergava o campo aberto se abrir mais diante de seus olhos; já era possível vislumbrar as primeiras árvores no horizonte, chamando-o afoitas para um esconderijo seguro. A verdade era que estava com medo, não podia e nem precisava negar. Tinha sido capturado duas vezes nos últimos meses, contudo sabia que daquela vez era diferente; conseguia sentir no ar que, daquela caçada, só restaria a sua pele exposta na parede da sala do Doutor Paulo. 

    Seu medo aumentou ainda mais quando, ao olhar para as árvores que lhe serviriam de abrigo, viu outro sedan surgir em seu caminho. O segundo carro parou no cruzamento sem se importar em atrapalhar o  trânsito. Soldados imediatamente emergiram do carro como maribondos saindo da caixa, o armamento pronto entre os dedos, e se colocaram em pontos estratégicos. Uma barreira. 

    Matheus freou os passos, completamente perdido. O que deveria fazer? Olhou para traz mais uma vez, para o primeiro sedan que o alcançaria em poucos segundos. Depois, encarou os mascarados, escondidos atrás de outros carros e postes, esperando apenas um comando para atirar, ele tinha certeza. 

    O que deveria fazer?! 

    E, então, quando a desistência parecia ser a melhor das opções, o garoto olhou para cima, para o aglomerado de prédios velhos de todos os tamanhos, formatos e cores. Um céu de um azul forte com nuvens de algodão  estava pintado sobre sua cabeça. O ar pareceu se purificar de uma outra para a outra com um pingo de esperança renovada. Era pouco, mas era o suficiente. Deixou que os impulsos nervosos percorressem seu corpo dos pés ao último fio de cabelo. Os pelos brotaram aqui e ali, os pés se modificaram por debaixo dos sapatênis e o rabo ganhou vida a partir de seu cóccix. E sua adaptação estava exposta no segundo seguinte, pronta para ser usada. 

    Jogou a mochila com seus pertences no chão, tirou mais que depressa os calçados e correu em direção ao poste elétrico mais perto. Começou a subir, mãos e pés se agarrando ao concreto de uma forma que só um macaco-prego ou um guariba conseguiriam executar. A rabo, vez outra, ajudava no equilíbrio, enquanto ele ia como um foguete para cima. Ao alcançar o topo, saltou para o prédio mais perto, agarrando-se ao primeiro parapeito de janela que suas mãos palparam; apegou-se às telas de proteção, pendurado a mais de dez metros, até que os pés conseguiram encontrar o alicerce necessário. 

    Respirou um pouco mais aliviado. Os pedestres, por sua vez, prenderam a respiração, incrédulos com o que presenciavam. O burburinho logo se instalou na rua e foi se alastrando como uma doença contagiosa. Para muitos, Matheus sabia, ele estava sendo a prova de que os adolescentes mutantes não eram uma teoria da conspiração, que os sites e jornais não tinham enlouquecido de vez. 

     Um disparo estourou o concreto da parede ao seu lado de repente, lembrando-o de que ainda não estava em local seguro. Olhou para baixo e não foi nenhuma surpresa quando se deparou com o comandante dos soldados fitando-o com sede de sangue. Manuel, o único soldado que não usava a habitual máscara negra, apontava o revólver para cima, pronto para acertar o segundo tiro. 

    Matheus voltou a se mexer, escalando a partir das janelas e batentes, segurando em cada diferença de relevo que encontrava no caminho. Mudava a posição do corpo ao máximo para fugir da mira do guarda. E quando alcançou a parte mais alta, partiu em direção ao edifício a frente, e depois para o próximo e novamente para o seguinte. Pulando e escalando; segurando-se com uma força que não sabia possuir. Os músculos fatigados pela corrida pareceram se renovar com a ativação de seus dons. 

    E, então, o imenso parque surgiu lá embaixo, sob seus pés. Árvores e mais árvores, circundadas por um anel de construções altas. O parque se estendia para a esquerda e para a direita. Grande o suficiente para que pudesse dar vantagem necessária sobre o grupo de captura; o local mais seguro que poderia encontrar nas redondezas. 

    Mas ainda não estava lá dentro, e, nas ruas que cercavam o área verde, pequenos pontos negros anunciavam a presença de soldados, prontos para impedí-lo de se emaranhar entre as folhas. Decidiu descer com mais cautela, indo devagar pela parte que não ficava tão exposta para quem andasse nas calçadas. A vontade que tinha era de arrancar a calça jeans como havia feito com os calçados, só fazia atrapalhar seus movimentos, porém precisava dela caso conseguisse escapar daquela emboscada, já que todas as suas roupas tinham ficado na mochila. 

    Desceu até se aproximar da altura das copas das árvores; podia sentir o cheiro da fotossíntese, o aroma aconchegante que sua parte humana rejeitava, mas que era o melhor lugar para a sua parte mutante. 

    — Procurem ele! — escutou alguém ordenar não muito distante. — Não deve está muito longe. 

    — Não deixem que entre no parque — outro falou, ainda mais perto. 

    Estavam cientes de sua estratégia, o rapaz percebeu. As vezes, ele se esquecia de como aqueles homens detinham conhecimento sobre ele e seus amigos. Podiam prever cada passo seu caso quisessem, e pensar naquilo o deixou ainda mais tenso. 

    Estudou as árvores que estavam mais perto, os poucos galhos que ultrapassam os limites do parque, cobrindo a avenida como se quisessem tocar os edifícios do outro lado. Alguns finos demais para aguentar o seus quase oitenta quilos, entretanto avistou um que sustentaria sua passagem. Inclinou o corpo, flexionou as pernas e, então, saltou para além da proteção das paredes de concreto, caindo e se afastando até que as mãos agarraram as primeiras ramificações. O galho chacoalhou, emborcou até que conseguisse frear a queda do garoto; as folhas ganhando asas com o impacto. Mentalmente, Matheus praguejou pelo barulho, tinha imaginado uma aterrissagem bem mais sutil, contudo não havia prazo para arrependimentos. 

    — Ele tá aqui! — um dos guardas anunciou. 

    E antes que ganhasse o equilíbrio do corpo, sentiu uma bala perfurar seu calcanhar. O grito de dor ganhou a rua, abafando o som dos carros que passavam abaixo dos seus pés. Matheus, sem pensar duas vezes, embrenhou-se na escuridão das folhas, buscando a proteção de galhos mais fartos. O som de tiros acertando a madeira e rasgando o ar próximo ao seu corpo era sua motivação para não parar. E quando percebeu, estava longe da rua, pulando pelos troncos ainda úmidos pela última chuva, espantando pássaros e assustando algumas pessoas que aproveitavam o dia. Estava longe dos soldados. 

    O parque parecia menor quando visto de cima dos prédios, mas a verdade era que tinha espaço de sobra para se perder ali dentro. Ainda pego pela adrenalina, buscou um canto onde a mata se fechava para o mundo, afastado das pistas de caminhada e dos campos abertos que a população comumente usava para piqueniques e jogos. Demorou alguns minutos, mas lá estava o local perfeito: árvores grandes se misturavam a vários arbustos, impedindo que a maioria da luz do sol chegasse ao chão; a consequência disso era que o gramado não mais crescia naquele ponto, e o solo era inteiramente coberto por folhas secas. 

    Desceu das árvores, sentindo a adrenalina diminuir e a dor latejante do pé aumentar a cada segundo. Parou ali para descansar, pois, por mais que tivesse ganhado distância daqueles homens, tinha absoluta certeza de que não haviam desistido e precisava do resto do corpo bem para quando se encontrassem de novo. Não poderia atravessar o parque e sair do outro lado também, quem garantiria que o parque inteiro não estava cercado? 

    O sangue escorria dos seus tendões e empapava todo o peito do pé, era questão de tempo até que o organismo esfriasse e a dor o consumisse por inteiro; o tempo ameno do parque aceleraria o processo e o pé se tornaria inválido em poucos minutos. Imaginou-se tentando escalar aqueles troncos grossos a sua volta sem um de seus membros em perfeito estado. Não sabia se… 

    Parou imediatamente de se mover, ao perceber que alguém se aproximava. E antes que pudesse fugir, viu uma figura verde sair de meio aos arbustos, como se brotasse do chão e ganhasse forma. O lagarto gigante não tardou em avistá-lo com os olhos amarelos sanguinários e a expressão sempre ambígua. As garras permaneciam a mostra, afastando os galhos para que passasse, enquanto a enorme cauda balançava, sinuososa. Os adaptados estavam ali, obviamente, ajudando a corja do Projeto a cumprir a missão. 

    Matheus pensou em correr, entretanto, ao colocar o pé ferido no chão, o corpo expeliu uma reclamação impossível de ser ignorada; a dor percorrendo toda a perna, avisando-o que havia perdido a capacidade de correr. Restou-lhe, apenas, encarar o lagarto a se aproximar. 

    O bicho, por sua vez, parou a alguns metros do garoto, observando-o com a carranca misteriosa característica. A língua bipartida saía e entrava da boca. 

    — Por favor… — Matheus arriscou. — Não me entrega pra eles, Tomás, por favor.  

    Tomás manteve-se parado, fitando-o com as feições extremamente sérias. Poderia até ser confundido com uma estátua no meio da vegetação, caso o peito não arfasse de forma tão violenta, nem a língua aparecesse segundo sim, segundo não. Matheus estava ciente de que só teria chances de escapar se conseguisse alcançar outra vez as copas, todavia duvidava da sua capacidade de subir nas árvores com o pé a cuspir sangue como a nascente de um rio. Precisava da misericórdia de Tomás, aquele era um fato frustrante e desesperador. O animal permaneceu implacável durante mais algum tempo, e só então olhou sem pressa para os lados. 

    — Se esconda — resumiu-se a dizer; a voz áspera, como o grunhido de um dinossauro. — Rápido. 

    Tomás continuou a andar, deixando Matheus de lado e fingindo que continuava a procurá-lo. O animal foi se misturando outra vez à vegetação, deixando para trás um menino-macaco a observá-lo ir embora, confuso e aliviado. 

    Não demorou muito para que a fisgada no pé baleado o trouxesse de volta para o imediatismo da situação. O ferimento ainda gotejava nas folhas secas, tornando-se inchado e avermelhado a cada segundo que passava; logo não aguentaria nem andar, percebeu. Resolveu obedecer a ordem de Tomás: caminhou manqueba até o tronco mais volumoso que encontrou — uma gameleira de copa vasta e raízes proeminentes —, e ali se escondeu entre arbustos e os ramos radiculares que a árvore soltava. Era um ótimo esconderijo, analisou. Por um instante, cogitou a hipótese de tentar escalar a árvore, mas seria uma tarefa difícil demais na atual conjuntura, e ali, agaichado e em silêncio, nem mesmo a onça com os melhores olhos o avistaria. 

    — Nada aqui! — a conhecida e nada agradável voz de João resoou de muito longe. 

    Matheus imediatamente suspendeu a respiração, temendo que as partículas de ar dedurassem sua encoberta ao menino-escorpião, mesmo que as palavras tivessem chegado aos seus tímpanos abafadas pela mata. 

    — Continue procurando! — Contudo, não era com onças que ele deveria se preocupar, e entendeu isso no segundo em que escutou a voz grave do único adaptado que realmente era capaz de tirar-lhe arrepios. Estava perto. Perto demais. — Ele deve tá perto… — Lucas concluiu; o som que saia da sua garganta não podia ser chamada de voz. Parecia bem mais gutural e selvagem do que Matheus se lembrava. 

    O quebrar das folhas sobre as patas do lobisomem cobriu o ar, impedindo de vez que o pulmão do garoto se movesse. As batidas do coração, entretanto, como uma escola de samba descompassada, faziam-no lembrar do dia em que perdera sua família. 

    — Macaquinho? — cantarolou Lucas, cheio de divertimento. — Cadê você? 

    Os passos continuavam cada vez mais altos. Quatros metros de distância? Não dava para ter certeza. 

    — Ah… Sangue. — Ele riu. — Eu consigo sentir o seu cheiro, sabia? 

    Não se sentia mais seguro naquele esconderijo. Deixou que o peito inflasse de ar, enquanto saltou para longe da forma mais veloz que conseguiu. A perna latejou, os primeiros passos vacilaram, porém buscou deixar os gritos de dor para que viessem depois. Definitivamente, aquela era sua última chance. 

    Foram cincos sofridos pulos, até sentir ser abraçado por garras e dentes. E, antes que pudesse se arrepender, o vulto negro o jogou no chão, prendendo-o pelo pescoço com a força de dez cães. 

    Lucas rosnou. 

    — Aí está você… 

    Encarou o animal com todo o pavor e o ódio que ainda guardava, os dentes caninos à mostra em um sorriso de satisfação só servia para que Matheus desejasse matá-lo. Contudo, estava visivelmente em desvantagem; as garras pontiagudas do bicho o prendia rente ao chão com extrema facilidade, o bafo era sentido a cada nova expiração e os olhos transmitiam uma calma e normalidade que estava longe de transparecer no garoto capturado. Aquela tinha sido a sua última chance, ele sabia. 

    — Me solta! — gritou, remexendo o corpo em todas as posições possíveis. — Me solta, Lucas, não precisa ser assim. Por favor! 

    Lucas só fez sorrir. 

    — Que tipo de caçador eu seria se deixasse a presa ir embora? Hein? — Apertou mais o pescoço. — Não me leve a mal, macaquinho, mas é uma questão de honra. 

    — Desgraçado! — Não demorou muito para que seus gritos atraíssem os outros dois garotos, Tomás e João surgiram por um canto, onde se puseram a observar a cena. — Traidores! Todos vocês, ajudando a derramar sangue inocente. Traido… 

    — Cala a boca! — o lobisomem vociferou, apertando mais ainda a glote de Matheus. — Traidor? O que ceis fizeram quando o sangue inocente da Letícia foi derramado pelo Leonardo? De que lado você ficou mesmo? 

    Matheus não precisava responder. Naquele momento, percebeu que não havia mais o que argumentar, Lucas se alimentava do ódio como um lobo se alimentava de carne, ruminava os acontecimentos da morte de sua namorada, incapaz de aceitar a perda. Tudo não passava de uma vingança pessoal. 

    De repente, o local isolado se encheu de pessoas. Soldados começaram a aparecer de todas as direções, tingindo de preto o verde do pequeno matagal. Era quase um exército de homens, o que fez o garoto compreender que sair daquele parque era um plano ingênuo demais. Tinha subestimado mais uma vez o Projeto. Tinha subestimado as notícias que eram anunciadas nos jornais. 

    Manuel se aproximou com um andar lento e ritmado. O comandante não precisou dizer nada, sequer cumprimentou o garoto, como havia feito na última captura. O ar de vitória em suas feições já deixava claro como era bom vê-lo preso como um animal. Retirou a arma da bainha e aprontou para a cabeça de Matheus. 

    — Para onde você estava indo? — Matheus fechou os olhos, negando-se a responder. — Onde estão os outros?! — O sangue ainda molhava o seu calcanhar, com certeza o ferimento havia pegado alguma artéria ou veia, porém a dor, apesar de enorme, já não o preocupava mais. — Fala! 

    Nenhuma resposta. Nada de reações. O silêncio era a sua última arma contra aquela pesquisa. Não seria lembrado como um traidor. 

    O tiro, então, ecoou pelo parque, e a dor no calcanhar finalmente cessou. 

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