Prisão

    O efeito dos tranquilizantes era forte, mas insuficiente para derrubá-lo de vez. Haviam trocado de substância ou modificado a fórmula para que ele permanecesse acordado e incapaz de reagir. Ou ele teria ficado mais resistente? Não sabia ao certo. Tinha ciência apenas que, apesar da letargia, via e ouvia muito bem. Aquilo era ainda pior, pois significava que racionava o bastante para perceber a burrada que havia cometido.

    As luzes foram acesas assim que  seus amigos alcançaram o pátio interno. Ele encarou de um por um, vislumbrando entre o torpor do medicamento os olhares de susto, de surpresa e medo. A raiva na feição de Alex e de alguns blacks já era esperada. O que doía mesmo era a decepção vinda dos seus amigos de verdade. Queria poder explicar que não tinha tido a intenção de fazer as coisas sozinho e que tinham feito uma emboscada para capturá-lo, mas algo no semblante de Sandro, Camila e até mesmo no de Pedro, Amélia e Janaína, lhe dizia que não acreditariam na sua história. Será mesmo que era culpado e não percebia?

    Seu olhar encontrou o de seu pai a tempo de vê-lo dar um passo para a frente.

    — Filho... — balbuciou ele.

    — Fernando, Fernando... Você me parece um pouco assustado, velho amigo — pontuou Doutor Paulo, disposto no fronte do seu grupo. — Mas dá pra ver que os dias de liberdade estão te fazendo bem. Pegou até uma corzinha!

    — Solta meu filho, seu desgraçado!

    — Ah, mas não precisa se preocupar. O Léo está em ótimas mãos. Está nas mãos do projeto que você ajudou a construir, veja que magnífico! Devia estar feliz com isso.

    Fernando apertou os punhos, segurando a fúria.

    — Esse não é mais o projeto que eu criei. Há muito tempo não é. Você destruiu o que construímos.

    — Não, não é verdade. — Paulo sorria, se deleitando com uma conjuntura inteiramente favorável aos seus planos. — Esse é exatamente o projeto que sempre sonhamos em ter e você, lá no fundo, por mais que diga que não, sabe disso. Não sabe? Tudo isso — ele apontou para o Centro de Pesquisas —, todas as fases da pesquisa foram planejadas previamente e você fez parte. Queríamos conquistar o mundo, lembra? Queríamos glória, fama e poder. Ser respeitados para além das paredes daquela cooperativa governamental mixuruca que nunca viu o quão geniais éramos. Você sabe disso, consigo ver nos seus olhos. Você se lembra.

    Fernando balançou a cabeça com convicção, antes de se contrapor:

    — Não! Nunca concordei em matar pessoas inocentes.

    — Ah, por favor, não se faça de bom moço. Matar estava implícito em tudo que planejamos. E eu sei que você sabia disso também. Mas sabe de uma coisa? Eu percebia que, por algum motivo, você não era totalmente confiável; que você estava disposto a fazer tudo, menos a parte antiética do processo. Não queria sujar suas mãos, né? Seria muito mais fácil assim: eu cuidando do lado sombrio enquanto você curtia sua vida feliz ao lado da sua família feliz. Tudo muito lindo e conveniente. — Ele fez uma pausa e se aproximou de Léo. — Foi por isso que escolhi a turma de escola do seu lindo filhinho loiro de olhos azuis para serem as cobaias finais. Seria a derradeira prova da sua lealdade quando, ao descobrir que sua prole faria parte dos mutantes, você aceitasse de bom grado o destino e agisse de forma profissional. Mas, advinha! Eu estava certo. Você não passou no teste, se abalou, quis destruir tudo. Fraco!

    Ao tentar se desvencilhar das mãos dos homens que o segurava, Léo percebeu que os solavancos só fariam com que gastasse energia à toa. Doutor Paulo o encarou. Para o garoto, seu  sorriso vitorioso continuava sendo o seu aspecto que mais irritante, e ali, com seus inimigos subjugados, o geneticista parecia se deleitar como nunca antes.

    — E quando eu achei que tinha me livrado de você, Fernando, e que as coisas finalmente iriam sair como tínhamos sonhado, veio seu filho — prosseguiu. — Uma versão menor, mais irritante e impulsiva sua. Só que diferente de você, ele era especial, pois tinha agora um poder magnífico! Uma arma, é verdade, que infelizmente foi colocada contra seus próprios criadores. Se não fosse pelo sangue ruim dos Casteliori, nada teria saído dos eixos. Mas cá estamos: às últimas consequências. Não pense que tô feliz com o desfecho disso tudo... Não, não estou. Mas também não vou deixar que se coloquem entre mim e o que é meu por direito. Não vou deixar que destruam a minha pesquisa. E acredito que concordarão comigo que não há nada mais satisfatório que poder reaver uma arma que é sua. — Afagou o queixo de Léo. — Nada melhor que usar o inimigo contra o inimigo.

    Um ponto de interrogação despontou no pensamento do grupo de invasores; cérebros em profusão tentando decifrar a mensagem por trás daquela última frase. Doutor Paulo gostava de ser teatral, isso Léo já havia percebido há tempo, mas gostava ainda mais quando o show estava sob sua direção. O garoto faria de tudo para poder tirar o brilho de satisfação dos olhos daquele homem — mataria-o com a força do pensamento se fosse possível —, no entanto, a única coisa que conseguia fazer era assistir à peça. Ao seu lado, viu o comandante Manuel entregar nas mãos do cientista uma caneta injetora.

    Sentiu seu coração acelerar apesar do torpor.

    — Não! — seu pai urrou, indo em sua direção.

    — Mais um passo e você vira uma peneira, doutor — ameaçou Manuel, já com o dedo no gatilho.

    — Não faz isso, Paulo! — Fernando implorou.

    — Ou...?

    — Essa briga não é dele. É entre você e eu!

    Paulo balançou a cabeça, negando, como quem deixava claro que era tarde demais para aquele tipo de argumento raso. Todavia, Léo duvidava que houvesse algum argumento capaz de trazê-lo à sanidade. A caneta injetora dançava entre seus dedos, ameaçando cumprir sua tarefa a qualquer instante.

    — É isso que você quer? Transformar eles em monstros sanguinários sem nenhum tipo de humanidade? Transformar eles em animais de caça?

    — Se é isso que o Projeto Gênesis é capaz de fazer, então é isso que deve ser feito.

    — Não! São apenas crianças, Paulo — o bioquímico apelou. — Você deve ter visto o resultado disso no paciente 09, o menino-escorpião. Você viu que ele estava totalmente fora de controle, não é? Mas não se importa, né? Você só o sentenciou à morte em prol de mais um teste. Mas isso não vai dar certo, Paulo. Você não consegue controlá-los assim. Deixe que eles tomem a cura, deixe-me aniquilar as adaptações deles antes que seja tarde demais.

    — Existe uma cura? — Léo escutou Tomás indagar; a voz, surpresa, não muito distante.

    Fernando se voltou para o rapaz.

    — Sim! Existe uma forma de fazer tudo voltar ao normal!

    — Isso é verdade, doutor? — questionou Lucas, dessa vez para Paulo.

    Sem saber como reagir diante da notícia, Paulo permaneceu imóvel, observando ora o olhar curioso de Tomás e Lucas, ora a expressão esperançosa de Fernando. Demorou um tempo precioso para se colocar novamente no lugar. Apenas quando percebeu o real significado da informação, que o desespero lhe tomou as rédeas por completo. Aquilo era tudo o que não podia acontecer ao seu projeto científico. Era tudo o que menos queria na vida.

    — Não... — balbuciou ele, ainda em choque. — Isso é... impossível.

    — Não foi só você que aprimorou suas pesquisas nas últimas semanas, Paulo.

    — Não! Cale a boca! Você não tem esse direito!

    — Agora, existe um outro caminho para essa história chegar ao fim.

    — Não! Não! Não!

    De pupilas dilatadas e veias saltadas, o homem segurou a caneta como se precisasse do objeto para respirar. E antes que alguém encontrasse uma nova maneira de atrasá-lo, avançou sobre Léo e cravou a ponteira em seu braço sem pestanejar.

    Léo grunhiu. O fluido invadiu seu organismo com um ardor insuportável e penetrou fundo em suas veias, misturando-se velozmente com o sangue. Queria gritar — e à medida que o fluido se alastrava cada vez mais, ganhando o antebraço e o peitoral, a vontade só aumentava —, mas estava grogue demais para que as cordas vocais respondessem. O máximo que conseguiu foi contorcer o rosto numa careta.

    Quando todos os seus órgãos ardiam feito carne na brasa, sentiu-se tragado para um mundo fora da realidade. Estava delirando? Era esse o efeito da droga? Não, ele sabia que não. Era psicológica aquela sensação, porém tão real que era como se estivesse numa abdução física; ao passo que subia, se encolhia e se alojava em sua própria cabeça. Dentro, viu também a sua consciência encurtada, de maneira que sequer sabia onde botava seus pés, ou até que ponto suas conclusões faziam sentido. Nesse momento, percebeu que já não tinha mais controle sobre nenhuma parte do que costumava ser. Nada do que estava ao seu redor lhe pertencia. Tentou virar a cabeça, depois tentou  controlar sua respiração, entretanto nenhuma mísera fibra se moveu. Ainda assim, entendeu que enxergava o que acontecia ao seu redor ao notar que tinham-no largado no chão e se afastavam com certa urgência. Queria pedir socorro — nunca quis tanto! —, mas até mesmo um boneco teria chances maiores de sucesso na empreitada.

    Foi então que as coisas começaram a mudar. Ainda sem controle, sentiu seu corpo se contorcer. No entanto, não precisava de controle para compreender que aqueles movimentos eram o gatilho de uma transformação. Os pelos foram aparecendo antes mesmo que tivesse tempo de se preparar, assim como as garras, a bocarra e as presas. Sua roupa se desintegrou, enquanto seu corpo crescia sem freio. Não se lembrava de um dia ter crescido tanto durante uma transformação, nem de ter garras tão afiadas. O pelo também estava estranho, irregular, como se uma juba tivesse tentado surgir, mas sem grandes conquistas, ou como se tivessem arrancado tufos pelo seu corpo com uma máquina de barbear. Mesmo sem poder ver sua aparência por inteira, tinha certeza de que estava horripilante.

    Mas nada se comparava a estranha sensação de descontrole. Lembranças vieram à mente, do tempo em que aprendia a manejar a fera, ainda no galpão abandonado. Lá, por mais que não tivesse o controle, também não tinha consciência. Sequer se lembrava dos momentos em que se transformara. Eram como apagões em sua memória. Ali, não. Enquanto a fera se erguia, endireitando o corpanzil e observando as minúsculas pessoas ao seu redor, ele conseguia entender tudo. Cada movimento dado, cada piscada, cada rugido, passava por sua percepção, mesmo que não passasse por seu crivo.

    Estava preso.

    Sentiu o coração acelerado — se era seu desespero ou a fúria do animal, já não sabia dizer —, e compreendeu então o que estava prestes a começar. Entremeio a visão vislumbrada da fera, avistou seus amigos. Todos assustados, davam passos instintivos para trás a cada novo rugido. Pedro puxou Camila para mais longe enquanto ela tentava se manter firme, blacks corriam para todos os lados, dispersando ambos os batalhões, e Comandante Amir emitia ordens fervorosas para quem pudesse ouvir. Léo queria olhar para o outro lado e ver a posição de seus inimigos, queria poder constatar na feição do Doutor Paulo que seu plano triunfara, ou ver o sorriso de prazer em Lucas,  mas a fera não tinha nenhum intuito de mudar de direção. As presas já tinham sido escolhidas.

    Com mais um rugido feroz, a fera curvou o tronco e preparou as garras. A cauda balançava sinuosa e astuta. Os pelos se eriçaram, num instante de êxtase, ao imaginar o sabor da carne fresca. No segundo seguinte, saltou, atravessando os longos metros com apenas um pulo. Sua primeira presa estava muito perto agora, quase ao seu alcance! De dentro de sua prisão, Léo implorava por misericórdia, enquanto via o terror nos de Amélia.

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