Pressentimento

     Diferente da noite anterior, o acampamento agora se espalhava irregularmente pela paisagem, como vaga-lumes a dançar de forma aleatória entre as árvores. A tenda principal, onde antes os blacks conversavam quase como se estivessem na mesa de um boteco, tinha ficado desmontada daquela vez. Não havia espaço físico para comportá-la, nem ânimo para uma roda de conversas depois do dia exaustivo de caminhada. As barracas de dormir, então, tinham se tornado os assentos definitivos, dividindo-os em pequenos grupos de três ou quatro pessoas.

     Léo, todavia, resolveu tirar um instante longe de qualquer um. Afastou-se da sua barraca, se sentou sobre os pedregulhos e se encostou no tronco de um pau-terra, robusto e inclinado. O cheiro de mato, o frio da noite que aos poucos chegava e o barulho dos insetos eram como uma canção de meditação; um instante em que as águas conturbadas da mente podiam estagnar e os pensamentos desordenados, decantar no fundo calmo.

     Se por um lado conseguia definir bem o cansaço físico do dia de caminhada, por outro a cabeça ainda se mantinha em conflito, tentando entender quais eram seus verdadeiros sentimentos diante de mais uma nova realidade. Sentia-se mais seguro junto aos blacks, mesmo sabendo que se aproximava cada vez mais de um embate feroz? Isso não fazia sentido, porém era o que seu coração dizia. Por algum motivo que ele estava longe de descobrir, estar ali, no meio do mato vestido igual a seus inimigos, trazia um alívio que o esconderijo na indústria abandonada era incapaz de trazer. Talvez a esperança estivesse reacesa; um fim perigoso e quase suicida era, afinal, melhor que fim nenhum.

     Mas ainda tinha medo, isso era inegável. Não seria a primeira vez em que acreditava fazer a melhor escolha e quebrava a cara, e essa sensação era o que ainda apertava o peito. Havia uma luz no fim do túnel, contudo poderia ser apenas uma miragem. A escuridão poderia vencer a qualquer momento.

     Recostou a cabeça na árvore, olhando para o céu sem estrelas, e respirou fundo. Já tinha perdido a noção do tempo quando escutou passos vindo em sua direção; os coturnos pesados a amassar o capim úmido.

     — Estava te procurando — seu pai falou, tomando a liberdade de se sentar ao seu lado. — Por que tá escondido aqui?

     No escuro da noite, longe das lanternas das barracas, poderia muito bem imaginar seu pai como um delírio nostálgico da sua mente. Ainda não tinha se acostumado com a presença viva do homem.

     — Cê confia nessas pessoas? — Léo questionou. — Confia no comandante Amir e nesses blacks?

     Fernando pareceu refletir, antes de responder:

     — Sei o quanto deve ser difícil para todos vocês se aliarem aos planos do Projeto, mas, meu filho, não há motivos para desconfiar de ninguém que tá aqui com a gente. Na hora em que eles se colocaram do meu lado e do de Andréia, eles sabiam que não tinha mais volta. O Paulo não vai perdoá-los nem se eles se ajoelharem e beijarem seus pés. — Ele fez uma pausa, como se para deixar o garoto absorver o que dizia. — Cada um que está aqui, ou mesmo os que ficaram na central militar em que estávamos, toparam essa luta por motivos pessoais também. Afinal de contas, quando o Paulo decidiu que as famílias dos adaptados tinham que morrer, ele colocou todos vocês contra a pesquisa e isso acabou gerando uma bola de neve de mais sangue e mais mortes. Os soldados, os blacks, como vocês gostam de chamar, também foram vítimas das péssimas escolhas do Paulo e eles sabem que mais deles irão morrer se isso não acabar de alguma forma.

     Aquela era uma visão que Léo ainda não tinha tido. Analisou as colocações de seu pai por alguns segundos, no entanto era difícil se colocar no lugar dos guardas da pesquisa. As mortes daquela corja tinha gosto de justiça para ele, e não sabia se queria ver as coisas de uma forma diferente.

     — Mas eu não deixo de temer o que está por vir... — disse Fernando, depois de perceber que o rapaz se perdia nos próprios pensamentos.

     — Do que o senhor tem medo?

     — Tenho medo por você, Léo - ele revelou. — A verdade é que eu não queria que você estivesse aqui. Torci muito pra que não aceitasse a proposta de lutar e ficasse em segurança na central.

     — Eu não podia fazer isso. Meus amigos...

     — Eu sei, eu sei... Eu entendo. — Léo escutou seu pai suspirar, antes de prosseguir: — Mas tenho medo. Se perdermos, não será um final muito bonito para nenhum de nós, mas se ganharmos e algo de ruim acontecer com você, eu terei perdido do mesmo jeito.

     A culpa continuava pesando sobre o pesquisador, Léo entendeu. No fundo do seu âmago, ver aquilo o incomodava de alguma forma, como se pudesse entender a dor que o homem sentia e estivesse disposto a amenizá-la. No entanto, nada disse. A culpa que consumia seu pai era legítima e outra parte da consciência de Léo até se deleitava ao saber que ele sofria com a consequência dos seus atos. Era justo que fosse daquela forma, com o homem perdendo sete anos de sua vida preso num porão, e também seria justo — principalmente para os outros jovens adaptados — caso ele perdesse alguém querido naquela batalha. A vida não deixava de cobrar suas dívidas.

     — Vamos vencer — garantiu Léo, tentando aliviar a tensão que tinha ganhado densidade.

     Passou-se um breve momento de silêncio, com as vozes abafadas das cabanas ao longe e o som da mata como música ambiente. Até que Fernando pigarreou.

     — E quem é aquela menina que fica te olhando, hein? — ele quis saber, dando um tom zombeteiro às palavras e mudando totalmente de assunto. — Sua namorada?

     Léo endireitou o corpo sobre o tronco da árvore.

     — A Amélia?

     — Ainda não decorei os nomes... Uma loirinha de olhos azuis.

     — Ah... — Léo sentiu as bochechas arderem. — A Janaína.

     Léo abaixou a cabeça ao notar que o olhar observador de seu pai caía sobre ele.

     — Por que esse tom triste? Você não gosta dela?

     — É complicado... Também gosto da Amélia e... bem, a verdade é que não sei de quem devo gostar.

     Dizer aquilo em voz alta era estranhamente desconfortável; o coração estava descompassado, como se houvesse acabado de confessar um crime hediondo. Doía ter que admitir que não era capaz de gostar apenas de uma pessoa e que, no fundo, tinha deixado a situação chegar àquele estado. Doía mais ainda saber que Amélia, por quem tinha tanto carinho, já havia percebido a verdade antes mesmo que ele acumulasse coragem para proferi-la, e que a tinha deixado extremamente decepcionada com seu ciúme hipócrita. E não deixava de doer quando tomava ciência de que, apesar de saber que precisava de uma decisão, sentia suas emoções confusas demais para que o fizesse sem remorsos. De maneiras distintas, Janaína e Amélia tinham a capacidade de mexer com seu organismo - e ele gostava das duas sensações.

     Fernando riu e depois disse:

     — Você precisa seguir o que seu coração fala, Léo. Não importa o que veio antes, apenas o que você sente agora. — Colocou a mão sobre o ombro do filho. — Mas acima de tudo, cê precisa decidir. Fazer uma escolha implica em deixar todas as outras opções de lado e aceitar o bônus e o ônus que possam vir com o caminho escolhido. É isso que se espera de um homem em uma situação como essa, entende? Quando tudo isso passar, resolva essa história de uma vez por todas.

     O rapaz se manteve calado enquanto a decepção consigo mesmo preenchia os espaços da sua mente e fazia queimar a sua face. Naquele instante, foi inevitável não se lembrar dos momentos com Amélia, de toda a luta que tinham enfrentado juntos desde o início dos desaparecimentos até aquele dia, da força e do controle que ela tinha a capacidade de fazer aflorar nele. Entretanto, quando deixava sua mente vaguear solta pelas memórias, não conseguia impedir que Janaína também aparecesse sorrateira como uma boa lembrança. Tinha sido ela, a patricinha que ele tanto odiara e que tinha aprendido a admirar nos últimos meses, a responsável por acalmá-lo quando Amélia não estava presente. Haviam passado pelo luto da morte de Mônica juntos, de um jeito que ele jamais pensara que seria possível de acontecer.

     Léo estava longe de chegar na conclusão que tanto queria, quando escutou uma movimentação anormal vinda das barracas. Algumas vozes estavam mais altas que de costume. Comandante Amir emitia suas ordens de forma exasperada, Léo logo entendeu, enquanto seus soldados ressoavam os comandos para outras barracas.

     Fernando rapidamente se colocou de pé.

     — Aconteceu alguma coisa — ele disse, rumando em direção à clareira.

     Já alardeado, Léo também se colocou de pé em um pulo e seguiu o pesquisador. Pôde avistar de longe os homens emergindo de seus dormitórios, recolocando as botas, afivelando os coletes ao corpo e se juntando, todos, ao centro da clareira. Diante da sensação de emergência, Fernando apressou os passos, desvencilhando da grama alta e dos pedregulhos que ameaçavam torcer o pé a qualquer deslize. Léo fez o mesmo, dividindo a atenção em correr e em observar a agitação. A certa distância, conseguiu avistar seus amigos junto aos blacks; as feições sérias deixando transparecer que não se tratava de nenhuma brincadeira.

     — Comandante, o que está acontecendo? — Fernando perguntou, antes mesmo de se colocar ao lado do soldado.

     — Aparentemente, temos problemas, senhor — respondeu o comandante de forma vaga. Sem esperar por mais perguntas, apontou o queixo para os jovens adaptados, que se mantinham juntos como se para ter certeza de que estavam realmente protegidos.

     Léo foi até seus amigos, estudando cada um dos rostos sérios que o observavam. Tentou ignorar os gritos de alguns dos soldados, que ainda cumpriam a tarefa de avisar os poucos que não estavam a postos. Também não perdeu tempo assistindo os que corriam para pegar seus equipamentos de proteção.

    — O que aconteceu? — ele quis saber, afoito.

     — Léo... — para a sua surpresa, foi Graziela quem respondeu. — Tô tendo um pressentimento ruim, que tá crescendo mais a cada minuto. Minha adaptação tá me pedindo para ficar em alerta, mas não consigo saber o motivo. Mas posso sentir... — Enquanto falava, seus olhos cor de âmbar vagavam por um universo que apenas ela era capaz de enxergar. — É uma ameaça, e ela tá próxima.

     Compreendendo a situação, o rapaz se juntou ao grupo. Mirou a vegetação além da clareira, onde a luz fraca das barracas perdia a batalha para o breu da noite, e deixou que o medo desse asas para a sua imaginação. Fantasiou o exército inimigo saindo da mata, com o olhar impiedoso de Manuel na linha de frente a ditar o quão violento seria o ataque. Ou talvez sequer apareceriam; manteriam-se resguardados pela escuridão e atirariam de todos os lados, sem nunca mostrar as suas posições. Estaria, a clareira, cercada naquele exato momento?

     Todas as suas hipóteses caíram por terra no instante seguinte, quando o som do farfalhar do capim denunciou a aproximação de alguém. Os soldados apontaram as suas lanternas imediatamente para o local, e lá estava ele. João caminhava de maneira despretensiosa de encontro ao grupo; sem pressa, desviava dos arbustos e se equilibrava no terreno desnivelado como se sequer estivesse prestes a adentrar no campo inimigo. A certa distância, já próximo o bastante para que precisasse levar a mão aos olhos para protegê-los da luz das lanternas, parou e estudou o batalhão à sua frente. A feição estava séria como nunca Léo presenciara antes. João era um rapaz de sorriso frouxo e debochado, que não deixava de mostrar os seus dentes amarrados ao aparelho ortodôntico mesmo nas situações mais inoportunas. Vê-lo expressar sua versão reflexiva era incomum demais para que pudesse significar coisa boa.

     — O que faz aqui, Paciente 09? — o comandante quebrou o silêncio.

     João não respondeu. Deixou que o olhar vagueasse para além dos adversários, como se refletisse sobre algo que Léo jamais teria acesso.

     — Onde tá o Lucas e o Tomás? — indagou Camila.

      A pergunta serviu para trazer o garoto de volta à realidade. Tentando ganhar coragem, João ergueu o queixo e inflou o peito; os punhos cerrados para dizer:

     — Não estão aqui. Ninguém tá aqui comigo. Vim sozinho dessa vez.

     Léo olhou para a mata escura às costas do rapaz, torcendo para que pudesse avistar alguém escondido, esperando um único descuido dos adversários. Ele sabia como funcionavam os ataques de Manuel. O comandante do lado inimigo era traiçoeiro e adorava montar emboscadas. Tanto, que conseguira matar Mônica em um de seus ataques ardilosos.

     — Veio se entregar? — Comandante Amir questionou, deixando escapar um pouco da sua soberba.

     João riu pela primeira vez, balançando a cabeça em negação.

     — Cêis se acham muito superiores, né? — falou, enquanto tirava do bolso um pequeno objeto. — Não conseguem ver o quanto nossas vidas poderiam ser melhores da forma que tá. Estão tão presos no passado, num mundinho tão pequeno, que nem conseguem olhar o lado positivo de tudo isso.

     Léo travou a mandíbula, mas não se contrapôs. Aquelas palavras não faziam muito sentido para ele, como se fossem uma parte avulsa de um pensamento bem maior. João parou por mais um segundo, fazendo questão de encarar cada um dos adaptados. E só então, quando seus olhos se encontraram com os de Léo, foi que o loiro enxergou um pouco do João que ele conhecera no Centro de Pesquisas. Havia ódio ali, mas também não deixava de ter medo e, de certo modo, força; estava numa batalha interna com seus próprios pensamentos.

    Antes que alguém quebrasse o silêncio, João pareceu se decidir. Segurou o objeto com mais força, e o levantou, preparando-se.

    — Espera! — pediu Doutor Fernando, exasperado. João parou o movimento, dando vez a curiosidade. — Isso é uma caneta injetora, não é? — Esperou por uma resposta, no entanto o garoto permaneceu impassível. — Eu não sei o que tem aí dentro dessa caneta e nem sei o que o Doutor Paulo te disse para te convencer a vir aqui, mas não precisa ser assim...

     — Quem é você? — João se ateve.

     — Uma pessoa que conhece muito do Projeto Gênesis e que sabe que as coisas não podem continuar como estão para nenhum dos lados. — O cientista estudou a recepção do garoto, Léo percebeu, esperando que houvesse algum esboço de reação diante de sua fala. Somente quando uma lágrima escorregou pelo rosto de João, quase inconscientemente, foi que ele prosseguiu: — As coisas podem ficar normais de novo, eu te garanto isso. Você vai poder voltar pra sua família!

     Ao ouvir Fernando, os olhos de João se arregalaram, num instante súbito de decisão.

     — Que se foda minha família! — ele grunhiu, levantando novamente a caneta injetora.

     — Espera! — Fernando pediu outra vez.

     Contudo, era tarde demais. Sem deixar tempo para outros argumentos, o garoto cravou a caneta no lado da coxa direita. Passou-se um período de paralisia total em todos. Do comandante ao último black, de Fernando ao jovem adaptado mais corajoso, todos imitavam a reação de João: esperavam pelo que estava por vir com os olhos arregalados e o corpo inerte, prontos para reagir assim que a injeção misteriosa cumprisse o seu papel, que era tão misterioso quanto.

     Não demorou mais que cinco batidas descompassadas do coração. Ao primeiro movimento de João — um leve curvar, como se de repente os órgãos anunciassem uma dor aguda —, Léo sentiu o corpo inteiro se eriçar. Ao seu lado, sentiu a rigidez de seus colegas; nenhuma reação diferente da sua. Graziela era a mais tensa. Carregava em seu rosto uma preocupação que ele nunca presenciara antes, como se seu dom a obrigasse a sentir cada decisão de João como uma dor própria. Léo pensou em acalmá-la, porém o pensamento se esvaiu quando João soltou um grito de dor e foi ao chão. Aos murmúrios, rolou no capim, ignorando o desconforto dos pedregulhos pontiagudos.

     Mais um grito.

     — Precisamos fazer alguma coisa! — Amélia se compadeceu.

     — Não! — Grazi falou com todas as certezas do mundo. — Não se aproximem dele. Não é seguro.

     Como se para confirmar as impressões da menina, João emitiu outro grito; mais esganiçado e menos humano dessa vez. Do meio do capim, uma massa disforme de músculos começou a emergir, crescendo velozmente e ganhando contornos que em nada lembravam o garoto que antes estava ali. E enquanto crescia, começou a ganhar contornos estranhos. As oito patas surgiram do tronco, cada uma tentando ocupar seu espaço na nova anatomia, os braços ganharam aparência de palpos, a cabeça retraiu-se, dando margem para o surgimento de avantajadas órbitas negras, que ocuparam os seus lugares de direito no corpo do ser. Entretanto, de tudo que surgia diante dos jovens e dos soldados, o que mais chamou a atenção, fazendo até alguns homens darem um passo para trás, foi a imensa cauda portando o ferrão. O membro reluzia sob a luz das lanternas; meio descontrolado, chicoteava o ar, contorcendo-se com a dor da transformação.

     O menino-escorpião voltou a exprimir sons animalescos à medida que se erguia e dava ao novo corpo a devida postura. No entanto, Léo sabia que o que vislumbrava não era mais o garoto que conhecera no Centro de Pesquisas. João estava totalmente tomado pela adaptação, não era mais humano, e por isso, não sentiu nenhum remorso em atacá-los com toda a força que possuía.

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