Pingos nos i's

     Não foi a coisa mais fácil do mundo, mas ele se deixou descansar no resto daquele dia. Quando chegou no local onde os demais adaptados estavam, ficou evidente que já esperavam por eles fazia algum tempo: tudo tinha sido muito bem organizado, com espaço suficiente para hospedar todos. Haviam camas, roupas, comida… Lembrava o primeiro Centro de Pesquisas; uma recepção digna de chefes de Estado. Um jeito nada convincente de agradá-los e, dessa forma, induzi-los a cooperar. 

    Mesmo ciente das segundas intenções por trás daquelas regalias, Léo não se recusou em aceitá-las. O banho era crucial, precisava tirar o sangue seco do corpo. Roupas novas também vinham em boa hora, por motivos óbvios. E só se deu conta de que estava faminto, quando conseguiu descansar um pouco a cabeça e os problemas maiores deram uma trégua.  

    Descansou, apesar de tudo. Em parte porque sabia que precisava descansar, não importasse o próximo passo a ser dado. Entretanto também porque sabia que aquele instante de paz podia não aparecer tão solícito quanto ali. Precisava aproveitar o sossego dado pelos cientistas; um segundo sem ouvir a voz pomposa de Andréia e sem precisar encarar o rosto desenterrado de Fernando. Seu pai… Ainda estava se acostumando em pensar naquele termo com naturalidade, sem ter que salpicar um pouco de saudade em cada letra. 

    A raiva que sentia permanecia da mesma forma, intacta e carente de justiça, contudo aos poucos as declarações de Andréia iam se assentando. Dissera-lhe que Fernando não tivera culpa nos anos de desaparecimento, que aquilo se tratava de mais um feito doentio do Doutor Paulo. O rapaz se perguntou se poderia confiar naquelas informações, ou se só era mais lábia para convencê-lo do que quer que estivessem planejando. Decidiu, por fim, que não tinha como decidir naquela hora, e refletir sobre algo sem ter os detalhes suficientes apenas o levaria a ter mais dor de cabeça. 

    Percebeu que seus amigos tinham entendido que ele buscava um pouco de tempo para ficar sozinho, deixaram-no quieto em seu canto durante toda a tarde. A verdade era que pouco se podia escutar das vozes dos adolescentes pelo grande quarto coletivo. As conversas eram raras e, quando audíveis, não se sustentavam por mais de três, quatro frases. A ficha caía aos poucos, à medida que a noite chegava do lado de fora; o luto pelas perdas era maior sem a adrenalina da fuga, assim como a dor física dos arranhões e hematomas. 

    Somente quando a noite tinha se firmado e a janta estava sendo servida — um caldo de feijão bastante cheiroso acompanhado com torradas — foi que Léo se sentiu pronto para se juntar aos demais. Aproveitou o momento para conversar com Márcia, para finalmente se colocar à disposição para o que ela precisasse. A loirinha de cabelo joãozinho agradeceu por ele ter encarado os tiros para salvá-la, sempre deixando uma lágrima escapar aqui e ali no meio do que dizia. De todos os adaptados, Márcia era a mais meiga e de aparência frágil. Corajosa, disso ele não tinha dúvidas; sempre estava disposta a ajudar em todas as missões. Lutara bravamente na destruição do primeiro Centro de Pesquisas, tinha sido a responsável por alertar sobre a volta dos ataques dos blacks e estivera firme ao seu lado na noite em que Mônica se fora. 

    Agora, como se não tivesse sofrido o bastante, havia perdido o irmão da forma mais cruel possível; Léo percebeu, no jeito como ela falava, que se culpava pelo ocorrido. Ele não podia fazer nada quanto àquilo. Era uma fase do luto, que ele tinha presenciado acontecer com sua mãe anos atrás, e que sabia ser irremediável e necessária, assim como também sabia ser passageira. 

    No resto da noite, ele conseguiu se aproximar dos amigos. As conversas ainda estavam raras, mas tinha se formado uma pequena roda entre algumas camas. Janaína, Pedro e Camila de um lado, Sandro, Amélia e Alex do outro. Com uma pequena exceção, aquelas eram as pessoas que mais gostaria de proteger, eram o motivo pelo qual ainda estava dentro daquele prédio, desfazendo a dor da morte do pai e preenchendo o vazio com a indignação de sua ressurreição. Percebeu que ninguém tocava diretamente no assunto, como se tivesse um acordo silencioso de que a noite estava reservada para descansar a mente. Camila, agora sem o uniforme preto, voltou a parecer a menina marrenta que ele conhecia, que fazia caras e bocas a cada segundo. Sua alegria por ter Pedro envolvido em seus braços estava clara no sorriso que não largava seu rosto. 

    Léo se deixou emergir pelo sentimento de paz momentânea. Era justo consigo mesmo que fizesse daquela forma. Estava ciente de que o outro dia reservava mais uma avalanche de informações, que certamente iriam levar seus nervos ao extremo. 

    Respirou fundo… Só esperava que tudo se esclarecesse de uma vez, que colocassem logo os pingos nos i's. 

 

    Como tinha virado rotina na indústria de papel abandonada, foi o primeiro dos adaptados a despertar, o que o deixou ocioso tempo o suficiente para que remoesse todos os acontecimentos do dia anterior. Depois da noite de descanso, o medo e a adrenalina, o sangue e o fogo, nada daquilo parecia se firmar na realidade. Era como se, mesmo depois de tantos dias passando pelos perrengues causados pelo Projeto, seu cérebro ainda tentasse resetar tudo de ruim, negando-se a validar tais atrocidades como parte da rotina. 

    Permaneceu imóvel na cama até que os demais foram acordando ao seu redor, e em poucos minutos a conversa tomou conta do quarto coletivo. 

    Léo escovou os dentes, apreciando cada pequena mordomia; a água saindo pela torneira, limpa e sabidamente tratada, era capaz de fazer brilhar os olhos. Nada de precisar beber água de um ribeirão que cortava a cidade, dividindo espaço com garças que podiam muito bem lhe transmitir parasitas, nem de dormir ao lado do ruído estridente dos morcegos. Tinha absoluta certeza que não sentiria nenhuma falta daquele esconderijo. 

    Não demorou muito para que um black aparecesse na porta, anunciando que Andréia os aguardava para a fatídica reunião. Logo, lá estavam eles, caminhando pelos corredores, seguindo o soldado para um encontro desgastante com a pesquisadora. 

    — Parece que tamo vivendo num loop — Sandro disse, aproximando de Léo. — Acho que já vivemos essa cena antes, não? Caminhando juntos em rumo a uma reunião com uma megera metida a Einstein. 

    O loiro se deixou rir. 

    — Só espero que essa megera não tente me congelar como a outra. — Lembrou-se de Mirna. — Ou te dê um tiro de novo. 

    Sandro fez uma careta, antes de fazer suas apostas: 

    — Acho que não. Essa parece saber com quem tá lidando. 

    Era o que Léo também esperava. 

    Chegaram em uma sala executiva, na qual uma grande mesa com várias cadeiras os aguardava para uma reunião de negócios. Léo enrijeceu o corpo quando se deparou com Fernando ali, sentado na ponta oposta a entrada, ao lado de Andréia. Por um curto momento naquela manhã, tinha se esquecido da inconformação nauseante que sentira no outro dia, contudo a simples presença do bioquímico era capaz de acordar todos os sentimentos ruins. Evitou contato visual. Sentou-se o mais perto o possível da porta — o mais longe possível dos pesquisadores —, ao passo que Andréia começava seu falatório com um destoante bom-dia. 

    — Trago boa notícias para vocês — ela prosseguiu. — A paciente 20, Clara, está fora de perigo. Está se recuperando maravilhosamente bem! 

    Amélia o fitou com um sorriso aliviado no rosto. Era bom começar o dia com pelo menos uma motivo para se alegrar. 

    Andréia continuou sem rodeios: 

    — Como eu disse ontem, Paulo Ricardo continua no comando do Projeto Gênesis, mesmo eu achando que as coisas mudariam depois do incêndio… — Aquilo parecia a amargurar, como se tivesse perdido uma batalha importante. — O fato é que se tornou insustentável a permanência dele no poder, mesmo que ele ainda tenha o apoio dos países membros da pesquisa. O Projeto se tornou um caos, com mortes demais e avanços científicos de menos… Precisamos acabar com isso. 

    — E a forma de acabar com isso…? — Victor perguntou. 

    — É matando o Doutor Paulo — foi Camila quem respondeu, se deleitando com as palavras. 

    A frase pareceu espalhar uma onda de choque por todos os jovens; as posturas mudaram, tornaram-se mais ávidas. Todos ansiavam pela mesma coisa. 

    — O Projeto Gênesis foi planejado para ser dividido em três Centros de Pesquisa — Andréia continuou didaticamente. — Um deles era Centro de Pesquisas da capital, que serviria como uma base de estudos avançadas e que não chegaria a receber vocês, os adaptados. Porém, tivemos que mudar nossos planos quando o Centro de Pesquisas Primário, onde vocês se desenvolveriam e alcançariam o amadurecimento de suas adaptações, foi destruído. Também por vocês. Tivemos que concentrar nossas atividades no Centro da capital, o que, como todos sabem, também não deu muito certo. Outro prédio destruído. 

    "A questão é que este prédio aqui, onde estamos agora, não se trata de um Centro de Pesquisas. É uma base militar, construída apenas para o apoio dos nossos soldados durante as missões, e a falta de recursos tecnológicos nestas instalações inviabiliza o andamento de todo o Projeto." 

    — E o terceiro Centro? — Alex questionou. 

    — O Centro de Pesquisas Secundário ou de Pesquisas Avançadas… Foi planejado para recebê-los quando estivessem com suas adaptações totalmente estabelecidas, com os poderes na força máxima! Seria a casa de vocês, onde se tornariam os maiores e mais resistentes soldados que a humanidade já viu. Onde aprenderiam a defender as fronteiras do nosso país na guerra inevitável que está por vir. — A pesquisadora parecia chateada pelas coisas não terem saído como ela desejava, o que fez Léo revirar os olhos. — Ele estava em construção, pois achávamos que só iríamos usá-lo daqui alguns anos. No entanto, com as mudanças drásticas nos planos do Projeto, ele foi a única coisa que nos restou. As instalações estão sendo concluídas às pressas para que a pesquisa atrase o menos possível. Então, logicamente, é lá que o Doutor Paulo está nesse momento. 

    "De certo modo, isso foi muito bom para nós… O nosso último Centro fica longe da capital, o que possibilitou que o Paulo se distanciasse das coisas que aconteciam aqui. E isso facilitou bastante as nossas vidas… — Ela falava calmamente, como se aquele discurso já tivesse sido preparado há dias. — Após a última fuga de vocês, quando finalmente libertamos o Fernando, o Paulo iniciou a missão para exterminá-los assim que descobriu que as pesquisas não eram afetadas se os corpos fossem devidamente conservados. Lidar com peças mortas, imóveis e que não resistem aos testes, com certeza é bem mais fácil, não? — Léo se encolheu; aquilo era de tirar arrepios da espinha. — Do lado de cá, agimos rapidamente para que vocês não fossem encontrados pelos soldados encabeçados por Manuel, o comandante aliado a Paulo. Era óbvio que eles se colocariam em prontidão na frente da casa de todos os familiares, então arrumamos uma forma de comprar a lealdade dos soldados sentinelas, para que, caso um de vocês aparecesse, essa informação chegasse primeiro aos nossos ouvidos, não aos deles. Achávamos que tínhamos conseguido fazer isso… Até a manhã de ontem. 

    "Ainda não consegui compreender onde foi a nossa falha… — Ela começou a andar de um lado para o outro, pensativa. — Não foi nenhum dos soldados que havíamos comprado. Havia um soldado a mais na missão, que desconhecíamos, e que estava encubido de vigiar aquele segurança da família Sonnenberg. — Ela olhou para Janaína, que comprimiu os lábios. — Um falhinha mínima que custou muito caro… Quando você, Leonardo — dirigiu-se a ele. —, resolveu encontrar sua mãe, o nosso soldado te rastreou, mas não só o nosso. E o resultado disso tudo vocês viram com os próprios olhos. Mais um desastre nas costas da nossa pesquisa." 

    Era inevitável que a imagem de Élida e Guilherme reaparecesse diante de seus olhos, ainda nítida demais para que não causasse pavor. De onde estava, Léo avistou Márcia murchar na cadeira, com os olhos prestes a transbordar. Graziela, por sua vez, parecia catalisar seu luto em um ódio infinito; as testa se enrugava e os olhos transmitiam sede de sangue. 

    — Obviamente, o Projeto está dividido. Por sorte, tenho aliados o bastante para me posicionar contra o Paulo, a maioria dos pesquisadores também concorda com meu ponto de vista da situação. Todos que estão nesse prédio se colocaram como nossos aliados, se comprometeram a fazer o máximo para que nossos planos não vazem para fora destas paredes. Caso contrário, Manuel e seus homens já estariam aqui. — Por mais que fosse uma situação perigosa, Andréia fazia questão de deixar incrustado no tom de voz que nada daquilo a amedrontava. — Queríamos ter evitado um confronto direto o máximo possível, no entanto a batalha de ontem com certeza vai fazer com que o Paulo perceba que as coisas não estão mais como antes. Vai tentar descobrir quem está por trás do contra-ataque, e por isso precisamos agir rápido agora. Temos que invadir o Centro de Pesquisas Secundário. 

    Sandro soltou um risinho irônico, chamando a atenção para si. 

    — Tudo muito lindo, tudo muito revolucionário. — A face debochada estava presente. — Mas não é só eu que tô lembrando que vamos bater de frente com os guardas do Manuel? E, detalhe, com a ajuda dos três mutantes traidores, ainda. Seria uma luta linda, se não fosse para ajudar o próprio Projeto Gênesis… Essa luta não é nossa, não ganharemos nada com isso, senão mais uma oportunidade de morrer. 

    A expressão confiante da cientista não se alterou. Olhou para seu companheiro de pesquisa. 

    — Fernando? 

    O homem se endireitou na cadeira e limpou a garganta. Léo abaixou o olhar. 

    — Bem… Com o Centro de Pesquisas em nossas mãos, poderemos colocar em prática uma parte do Projeto que foi negligenciada após a minha… estadia nos porões — ele iniciou. — Não será fácil, ainda mais por já estarem numa fase avançada da consolidação dos poderes. Mas, mesmo assim, ainda há chances… — Ele olhou nos olhos de todos os adolescentes. — Existe uma forma de reverter o processo. Se nos ajudarem, estarão livres. Aniquilaremos as adaptações. 




   O que me dizem desse proposta? Conseguem confiar em Andréia e Fernando?

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