Partes de um

Depois do silêncio, a inércia. O mundo ao redor se encolheu. O tempo se perdeu e o espaço se dissipou, moldando-se num hiato em que tudo e nada não passavam de meras palavras vazias. Se era branco ou se estava imerso numa escuridão sólida, ele não saberia dizer. Sabia apenas que não queria sair dali. Não queria voltar para aquela prisão pseudoconsciente. Não queria assistir a mais nada, nem queria sofrer. Mas... já não estava sofrendo? Não importava. Ali, fosse onde fosse, era melhor do que a realidade. Se a morte não havia chegado há tempo de impedir o pior, que encontrasse então uma morte dentro de si.

Daquele hiato de existência, poderia construir qualquer coisa. Construiria tudo, porém isso não queria dizer que fossem se materializar diante de seus olhos. Olhos? Desejou então construir um mundo onde nada anormal havia existido. Sua mãe voltava do banco, sempre esgotada mentalmente, pois líder com números só era mais fácil que lidar com o dinheiro das pessoas e de pessoas que precisavam de dinheiro. Seu pai? Nunca tinha trabalhado na Cooperativa, mas sim aproveitado o belo currículo para ingressar como professor na faculdade de biomedicina da federal. Era até chefe do seu departamento! Chegava sempre cansado também, era claro. Sentava no sofá, colocava os pés para o alto, ligava o aparelho de som com o disco dos Engenheiros já posicionado. Ouviam de uma por uma, os dois juntos, cantando as partes mais marcantes. Até que o jantar ficava pronto; sua mãe vinha avisar. A novela das 9 não era tão boa quanto a que tinha sido transmitida no ano passado, mas sua mãe não perdia um capítulo e vocês também não perdiam por tabela. Ficava enviando mensagens para Pedro, conversando fiado até ficar com sono. Depois subia para dormir, sabendo que no outro dia acordaria com ainda mais sono, ouvindo os resmungos de sua mãe ao acordá-lo quase atrasado outra vez.

Desejou. E no meio do desejo, sentiu angústia por admirar de tão perto aquela paz que aquele Leonardo da vida normal sentiria. Era como um frio na barriga, daqueles que só quem deixa uma taça de cristal escapulir das mãos sente, segundos antes do vidro se partir em zilhões de pedaços.

Desejou problemas comuns. Tinha que focar nos estudos, afinal o ensino médio era bem diferente do fundamental. Senhorita Bernardete gostava de graça dele, mas não conseguiria manter esse agrado por muito tempo se as notas se afundassem. Já bastava não ter lido a Carta de Caminha na última aula... Estava decido: olharia qual a próxima obra a ser estudada e leria com antecedência — até porque com certeza teria que ler mais de uma vez. Sandro poderia o ajudar a entender, ele gostava de livros. Afinal, numa existência sem pesquisas científicas, os alunos do 3° ano do fundamental não teriam mudado de escola. Seriam os mesmo por toda uma vida, como costumava ser. Uma existência onde amigos estavam presentes desde sempre; em que a morte não passava de uma metáfora hiperbólica.

— São belos sonhos, Léo — uma voz nasceu ao seu lado.

Em outras situações, aquilo seria motivo para um enorme susto. Mas ele sentia como se qualquer reação que esboçasse seria artificial. Já não sentia mais nada. A voz, contudo, era bem conhecida. Fazia algum tempo que não a escutava; o tom alegre de quem tem mais certezas do que dúvidas sempre fora sua marca registrada. Mas não sabia dizer se ela estava realmente ao seu lado. Existia algum lado? Conseguia, entretanto, visualizá-la ali.

— Todo mundo sente sua falta.

— Mas eu tô bem aqui, uai! — Ela riu.

Ele suspirou, antes de contrapor:

— Cê sabe do que eu tô falando, Mônica.

— Cê tá meio abatido — ela observou. — Quer dizer, mais do que o normal. Aconteceu alguma coisa?

Ele viu os olhos negros da amiga colocados a sua frente, convidativos, dispostos a ouvi-lo o quanto fosse preciso.

— Eu... matei a... — Doía muito proferir aquelas palavras. Será que ela ficaria decepcionada? — matei... uma pessoa.

Ela bufou.

— Ah, Léo, mas cê já matou várias pessoas.

— Não, dessa vez é... diferente.

— Hm... Foi alguém que cê amava? — Ele balançou a cabeça, confirmando. — Entendi. Nossa, as coisas realmente estão fora do controle então.

— Eu não tive culpa. — A voz saiu arranhada. Respirou fundo e engoliu o choro para só então prosseguir: — Eu jamais faria isso.

Um minuto de silêncio se formou. Parecia que estava sozinho outra vez.

— Mônica?

— Oi?

— Não vai falar nada?

Ela inflou os pulmões e constatou:

— Cê não acredita nisso.

— Como?

— Não acredita que não tem culpa. Sua voz não deixa esconder. — Ele resmungou, preparando-se para argumentar, contudo ela continuou antes que houvesse tempo: — Por que não esperou eles chegarem para invadirem juntos o Centro de Pesquisas?

Ele se assustou.

— Como sabe disso?!

Ela pareceu refletir sobre a indagação.

— Não sei. Mas não importa. Importa? Você deveria ter esperado.

— Eu precisava ter certeza que era seguro entrar, precisava preparar o caminho pra que eles chegassem em segurança! — Tinha aumentado o tom de voz involuntariamente. — Tinha uma coisinha na minha cabeça dizendo que tudo daria errado se eu não tomasse a dianteira. Eu precisava seguir meus instintos!

— Instintos... — Ela ponderou a palavra como se dissecasse um cadáver. — Eu tinha tanto medo disso. De seguir os meus. Tinha medo de que os meus me levassem a ser o que eu não era. Primeiro veio a transformação e cê sabe como foi difícil coexistir com um monstro. Depois veio a sede de sangue, um desejo que ia contra tudo que eu acreditava. Sabe, Léo, eu só me permitia beber sangue porque vinha de pessoas que eram nossas inimigas. Tavam tentando nos prender e matavam nossas famílias e amigos, então, tipo, eu estava me defendendo acima de tudo. Mas no fundo, bem lá no fundo, eu sabia que eu também tava só relativizando os meus desejos. E quando chegava a noite, quando eu colocava a cabeça no travesseiro, vinha a pergunta na minha cabeça: e quando os inimigos acabarem? De quem eu vou tirar a vida pra manter a minha? Da minha vozinha deitada no quarto ao lado ou de um estranho passando na rua? O que seria pior?

— Mônica...

— Cê segue muito os seus instintos, Léo. E olha onde isso te levou — disse com dureza. — Cê não é um animal, não é uma fera. Ela não te controla, é você quem tem o poder. Nós dois, mais do que qualquer um de nossos amigos, aprendemos a não ser uma marionete de nossas adaptações. Foi assim no começo e precisa ser assim agora e sempre, até o fim de nossas... Até o fim da sua vida.

Ele enxugou o rosto.

— Não sei se eu consigo. — Balançou veementemente a cabeça em negação. — Não sei como.

Ela se aproximou, lavando a mão em seu rosto num afago invisível.

— Léo... Não precisa chorar. Seu dom não precisa ser controlado, precisa ser entendido. Ele não é um alienígena, ele é voce! Vocês são e sempre foram partes de um só. — Ela se afastou. — Faz isso por mim. Faz isso por ela.

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