Palavras rígidas

     A panturrilha já deixava escapar lamúrias pelos quilômetros percorridos durante o dia, por isso Janaína decidiu que o melhor era permanecer o maior tempo possível quieta, descansando as pernas, deitada na barraca que tinha sido montada para as quatro meninas. Do lado de fora, tudo estava perfeitamente organizado. A tenda principal,  montada no centro da clareira, servia de abrigo para os homens que conversavam alto e até conseguiam encontrar razões para soltar algumas piadas. E nos arredores, as barracas para dormir; a maioria ainda desocupada, mas ela tinha certeza que os garotos também deviam estar dentro da que os pertencia. Nenhum deles tinha disposição para socializar com os blacks. 

    Ela massageava os músculos das pernas, torcendo para que a ação surtisse algum efeito. Sabia que o cansaço muscular ficava ainda mais forte depois de vinte e quatro horas, o que queria dizer que poderia não suportar mais um dia de caminhada. 

    Dentro da barraca, Camila e Graziela conversam aos montes. Os assuntos corriam de mãos dadas, um puxando o outro. Falavam de memórias do tempo antes das adaptações surgirem, da vida comum de colégio, como se tentassem não esquecer como seria quando as coisas voltassem ao normal. Alheias a realidade das duas amigas, Janaína e Amélia assistiam ao diálogo interminável com meios-sorrisos de quem estava se divertindo, mas preferia manter o silêncio. Provavelmente, ela inferiu, Amélia sentia o mesmo diante da demonstração de afetos das duas meninas: saudades. A diferença era que Clara permanecia viva. 

    — Lembra daquela vez no festival? — Grazi puxou mais uma recordação do seu álbum de fotos mental. — A gente tentando entrar no camarim dos cantores e os meninos morrendo de medo dos seguranças. 

    Camila se deixou levar com um riso. 

    — O Victor batendo o pé, falando que não ia ajudar — lembrou. 

    — Naquela época ele já gostava de você, tava na cara. Eu e o Matheus estávamos de olho no clima entre cêis dois.  

    Janaína percebeu o riso da ruiva esmaecer ao ouvir a nome do amigo. Matheus... Tinha morrido sozinho enquanto atravessava a cidade em uma missão fadada a dar errado. Ela se lembrava bem dos avisos que Léo, Grazi e outros adaptados tinham lhe dado, dizendo para não sair da indústria de papel durante o dia. 

    Grazi captou o seu deslize tarde demais. 

    — Era um teimoso, cê sabe disso. 

    — Eu sei. — Camila suspirou. Depois, ergueu o corpo e animou o tom de voz, como se dissesse que não queria falar daquilo. — Não fica falando do Victor perto do Pedro não, hein? — mudou de assunto mais uma vez. — Ele vai ficar chateado. 

    — Até parece que o Pedro é ciumento. — Grazi fez cara de descrente. — Com aquele jeitinho de bobo. 

    — Ei! — Com um empurrão, Camila jogou a amiga para longe, quase acertando Amélia no ato. — Não fala mal do meu namorado. 

    — Tá, tá, não vou apontar os defeitos do seu príncipe encantado. No momento, preciso só de fazer xixi. — Graziela encarou a amiga com olhos pidões. — Não vou ir no meio do mato sozinha a essa hora. 

    — É assim que a primeira pessoa morre nos filmes de terror — Amélia se intrometeu na conversa. 

    — Exatamente! Não vou lá sozinha, cê vem comigo — Grazi disse, enquanto puxava a ruiva para fora da barraca. 

    A medida que a voz das duas se afastava, um certo constrangimento tomou conta do lugar. Amélia mexia nas unhas com um foco surpreendente, fingindo se manter ocupada, ao passo que Janaína prosseguia com a sua massagem, agora nas coxas. Ela podia sentir o desconforto se esticar entre as duas, pronto para tornar insuportável a escolha de permanecer dentro da barraca. 

    — Minhas pernas não tão acostumadas com essas aventuras em trilhas. — Tomou a iniciativa e quebrou o gelo. Recebeu um olhar curioso como resposta. — Se a Clara tivesse aqui, com aquelas mãozinhas mágicas, seria uma benção. 

    Amélia sorriu e, então, respondeu: 

    — Tenho certeza que ela não vai gostar nada de saber que viemos sem ela pra esse lugar. Mas não tinha como esperar… — Ela olhou para o nada, parecendo buscar nas lembranças algo importante. — Mas talvez tenha sido melhor assim. A gente não sabe o que vai acontecer, né? Espero que ela teja segura onde tá. 

    Aquela era uma conclusão em que Janaína também chegaria caso fosse Mônica no lugar de Clara. Se era para enfrentar o maior perigo de toda aquela história, preferia que estivesse sozinha, com a amiga salva e bem longe do olho do furacão. 

    — Ela não tá desamparada — tentou aliviar um pouco da sua preocupação. — Tem o Victor, a Ariel, a Márcia… Eles a protegerão caso alguma coisa saia do controle aqui.  

    Com o sorriso singelo, Amélia aceitou de bom grado as palavras de acalento da loira. Um sorriso cru, tão verdadeiro, que não havia como ela não se sentir à vontade diante da colega. Resolveu aproveitar o clima bom para tocar em um assunto que há muito queria ter. 

    — Eu… — Hesitou por um breve momento, buscando uma forma de colocar tudo o que sentia em frases regradas e neutras. — Percebi que você e o Léo… Bem, cêis não estão tão juntos como antes… 

    Ela sentiu o nervosismo enlaçar a garganta, enquanto esperava por uma reação. Amélia fitou o chão acolchoado, os lábios comprimidos, o que fez Janaína se sentir ainda mais ridícula. De forma alguma queria que sua indagação soasse como atrevimento; não estava querendo saber se Léo estava definitivamente solteiro, se a concorrência tinha sido descartada, nem nada disso. Ou será que era exatamente isso que desejava? 

    — Me desculpa, eu não queria parecer… 

    — Não, tudo bem — Amélia finalmente respondeu. — A gente não precisa ficar fingindo as coisas, isso não é uma competição pra mim. Eu sei que cê gosta dele... tanto quanto eu, até.  

    Abrindo a boca, Janaína buscou na mente dezenas de tipos de negações diferentes para confrontar o veredicto da menina, mas selou os lábios ao perceber que seria inútil. Amélia tinha razão; estava na hora dela assumir para si mesmo que o rapaz tinha conseguido, de alguma forma, mexer com seus sentimentos. Não sabia exatamente quando as coisas tinham mudado. No galpão? No primeiro Centro de Pesquisas? Ainda no colégio? Pouco importava quando a semente tinha sido plantada, estava mais preocupada com a árvore que crescia e florescia, descontrolada, fincando na alma  as raízes. 

    Amélia continuou, ao perceber que ela não tinha nada a falar:

    — Não me leve a mal, não quero ser mal-educada, mas a verdade é que não me importo com o que cê sente por ele. Me preocupa o que ele sente.  — Levantou o olhar e conseguiu fitar a loira nos olhos. — Eu sei que ele gosta de mim, mas também sei que ele sabe que cê gosta dele. E no fundo ele gosta dessa sensação de disputa, desse joguinho. Eu não. Por isso decidi me afastar por enquanto, até ele se decidir com quem quer ficar. 

    Pega de surpresa pela certeza que emanava da garota, Janaína não sabia o que deveria dizer. Amélia lembrava Léo em muitas coisas; ambos faziam parte do grupo de colegas que ela nunca se importou em conhecer, mesmo com tantos anos na mesma sala de aula. Mas do pouco que tinha analisado durante os últimos dois meses, vendo-a quase sempre quieta, observando cautelosamente as situações com um sorriso doce na face, não acreditava que um dia escutaria palavras tão rígidas. Não era a mesma menina abalada, que mal sabia como reagir diante da cena do namorado beijando outra garota em um Centro de Pesquisas. 

    — Me desculpa, eu não queria… — começou a dizer, contudo percebeu que não adiantaria tentar remediar a situação com desculpas que não surtiriam efeito nenhum. Amélia permaneceria zangada, Léo continuaria indeciso e ela… Ela continuaria apaixonada e envolvida em uma história que não era sua por direito. Era mais do que ridículo, aquilo tudo. 

    Entendendo a bagunça em que se encontrava a mente da hipnotista, Amélia resolveu encerrar o assunto de vez: 

    — Esse rolo não é só culpa sua, não se preocupe. — Uma curta risada de Camila denunciou que as outras duas garotas voltavam para a barraca. — Como eu disse, não tá nas minhas mãos escolher isso, e eu acredito que nem nas suas. Eu gosto dele, mas não tá nas minhas mãos. 

    Não devia ter tocado naquele assunto, Janaína concluiu. Tinha tantas coisas para pensar com mais urgência, sequer deveria estar tomando seu tempo com paixõezinhas conturbadas.  Precisava vencer o Projeto antes de buscar um final feliz. 

    Após Camila e Grazi chegarem, as conversas prosseguiram com a mesma animação. Janaína, porém, se pegou remoendo as verdades ditas por Amélia, organizando cada uma delas em lugares bem visíveis da sua memória, para que não se esquecesse de como toda aquela conjuntura era boba, imatura. No resto da noite, desistiu de massagear as pernas — já não eram mais as únicas partes que doíam. 

… 

    A noite não foi das melhores. Enquanto as meninas dormiram, as quatro, sem muitas complicações, na barraca dos meninos o conforto passou longe de existir. Pedro tinha aprendido a roncar nos últimos meses e fizera questão de entoar sua nova habilidade madrugada afora. O chão também não era dos mais confortáveis; Léo conseguia sentir os cascalhos apunhalando suas costelas, apesar da cobertura acolchoada, porém disso não reclamaria — os dias na indústria de papel tinham sido ainda piores. Por sorte, a umidade da última chuva amenizou o calor e afastou as muriçocas. Ainda assim, foi um alívio quando o dia clareou outro vez. 

    Demoraram na clareira apenas o tempo necessário para desmontar a tenda e as barracas e fazer um desjejum com barras de cereais e algumas vitaminas. Não podiam gastar os minutos, porque, de acordo com o comandante Amir, aquela parte do percurso exigiria mais esforço de todos. Estavam chegando na proximidades do grande paredão e seria complicado escapar de regiões acidentadas. 

    Se por um lado Léo sentia o esgotamento físico que se intensificava no sol quente e com aquele uniforme pesado, por outro também sentia que uma parte do seu ser nunca estivera mais feliz. A cada roçar das folhas em seu corpo, a cada curto esforço que fazia para manter o equilíbrio sobre os pedregulhos, seu instinto felino apitava na jaula, animado pelo novo ambiente. Não se recordava dessa sensação tão viva antes, nem mesmo no galpão abandonado. Era como se a fera ganhasse força a medida que ele também fortalecia o controle sobre ela, em um jogo de amadurecimento mútuo. 

    O dia foi longo. E quando o ponteiro do sol começava cair para oeste, as primeiras reclamações de desistência foram ouvidas. Janaína estava cansada, porém Amélia e Camila também mostravam sinais de que não aguentariam por muito tempo mais. No fundo, Léo também sentia o mesmo e, pelos olhares empáticos dos outros rapazes e até mesmo de seu pai, ele sabia que estavam todos no mesmo barco. Entendendo a situação, mas nenhum pouco satisfeito, Amir pediu para que mantivessem o ritmo por alguns minutos, até que chegassem nas margens de um riacho, onde poderiam descansar. E assim fizeram. 

    Retomaram os passos cerca de meia hora depois e seguiram bravamente, até que a escuridão bateu na porta. Amir desceu a mochila das costas sem aviso prévio, em uma área que em nada lembrava a clareira da última noite; com muitas árvores, que não deixariam construir a mesma conformação das barracas. 

    — Ficaremos aqui. Espalhem as barracas por onde der — ele noticiou, com uma certa impaciência que revelava o cansaço que tentava esconder. — Não estamos muito longe do nosso alvo agora, precisaremos apenas de algumas horas para chegar aos muros dos Centro de Pesquisas. Descansem bem. Todos. Precisaremos do máximo de cada um amanhã.  

    Sentindo-se exaurido de suas energias, Léo deixou para mastigar aquela nova informação depois que tivesse arranjado um canto onde pudesse livrar as pernas do castigo. Naquele momento, não conseguiria pensar em mais nada, senão na barraca que dividiria com os rapazes e que já não parecia tão desconfortável assim. Tinha muita coisa para ser decidida e explicada antes de atravessarem os últimos quilômetros até o embate com o Doutor Paulo, no entanto os grilos mal tinham começado a cantar, e esperar o tempo das coisas fazia parte do seu treinamento pessoal. 


Deixe aqui pra gente saber: de que lado você está nessa história? #TimeAmélia, #TimeJanaína ou #TimeNinguém? Conta pra gente o que você espera dessa quadrilha! 😆

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