Os muros

     Andar durante a madrugada se mostrou uma missão mais difícil do que imaginava. O desnível da mata parecia se intensificar com a escuridão e a constante sensação de que poderiam estar caminhando para a direção errada não ajudava a amenizar o clima tenso que havia se instalado. 

     Mas Léo estava coberto por uma pressa incontrolável, por isso mantinha-se vários metros à frente dos demais, mesmo que todos tentassem acompanhar o seu ritmo. A cada passo, a certeza de que se aproximava mais dos inimigos paralisava suas emoções, deixando espaço para que a fera se movimentasse pelo seu corpo como um animal enjaulado que sabia poder escapar a qualquer momento. Era como uma pré-ativação da sua adaptação; cada roçar das folhas, cada raiz que precisava saltar ou pedra que se equilibrava em cima, eriçava seus pelos e animava seus instintos. A respiração se mantinha firme, sabendo que precisava estar centrado para que nada saísse do controle. Das poucas coisas que se gabava de ter acontecido nos últimos meses, manter a fera sob suas rédeas estava, sem dúvidas, em primeiro lugar. 

     Sequer esperou para saber se os homens comandados por Amir iriam participar da empreitada, mas no fundo torcia para que sim. Sabia apenas que seus amigos estavam logo atrás, caminhando a passos receosos, porém contínuos. Já não tinha certeza da distância. Os havia perdido de vista fazia mais de meia hora. 

     De repente, quando as pedras que tinha pulado e as árvores que deixara para trás já não cabia nas contas, parou. Sentiu o cheiro dos inimigos disperso na brisa, o que só podia significar que estava mais perto do que imaginava do destino final. A audição estava aguçada, contudo ainda não ouvia nada além dos barulhos da mata. Resolveu, então, se transformar por completo. Já era hora; precisava de todas as suas habilidades inteiramente disponíveis dali para frente. O impulso então fluiu pelo seu corpo, deixando que a fera finalmente se visse livre para respirar o ar fresco.

     Num segundo após sua transformação, conseguiu ouvir os passos de seus colegas vindo em sua direção. A voz suave de algumas das meninas também era audível, apesar de não conseguir compreender o que era dito. Todavia, o que lhe chamava realmente a atenção era o cheiro dos blacks que era trazido pelo vento da noite e que com a metamorfose se tornava ainda mais intenso. O odor já tão característico para a fera empesteava o cerrado, trazendo lembranças de perseguições e de instantes de medo e fúria. Léo mal percebeu quando a fera colocou as quatro patas no chão e seguiu adiante. 

     Com a agilidade e a velocidade dobradas, a vegetação não tardou em deixar despontar uma grande construção de concreto. Os muros se estendiam incansavelmente para os dois lados, e para cima não contava com menos de quinze metros. Era um colosso que sobreviveria até mesmo ao choque de um rinoceronte, ou de um mutante gigante como Alex.  Havia luzes apontadas para a mata, de forma que mesmo um calango desavisado poderia ser visto caso se aproximasse. Léo tinha certeza de que encontraria câmeras se procurasse bem, contudo não seriam elas que parariam seu avanço. 

     O animal caminhou de maneira furtiva por entre as árvores da encosta, sempre evitando ser alcançado pelos raios de luz. Deixou que o instinto comandasse seus sentidos. A audição se ampliou, conseguia ouvir os insetos a sua volta. A visão, porém, era do que ele mais precisava no momento; cada movimento da brisa ou vacilar da claridade podiam ser detectados por seus olhos felinos. Poucos metros de caminhada e lá estava o que procurava: soldados em vigília. 

     Encontrou de imediato dois. Três, quatro… Seis no total. Permaneciam parados, deitados sobre o muro, próximos a um dos holofotes. Um inimigo comum seria facilmente cegado pela luz, dando a eles a proteção necessária para não serem avistados. Mas Léo via com nitidez a suas cabeças estáticas e os rifles a postos. Aguardavam a chegada dos adversários, ele compreendeu. 

     Para a fera, avistar os adversários e se esconder da luz era uma tarefa natural. O que o preocupava era a aproximação de seus amigos, que não tinham a mesma habilidade. Ao alcançarem os muros, poderiam muito bem serem surpreendidos com os tiros vindo de cima, com poucas chances de defesa. Atacar era uma opção pouco inteligente, mas esperar seria ainda pior. Ele não podia deixar que seu medo se tornasse realidade, por isso se esgueirou entre os arbustos até o ponto mais próximo dos inimigos, apoiou as patas no cascalho, flexionou os músculos do corpo e saltou para a área desprotegida. 

     Com apenas um pulo, cravou as unhas no concreto do muro e começou a subir. 

     — Vocês viram? — escutou um dos blacks perguntar. 

     — O quê? 

     — Não sei, vi algo se mexer naquele ponto. Parecia um animal. 

     — Eu também vi. 

     As luzes se voltaram para onde, poucos segundos atrás, era seu esconderijo. 

     — Não tem nada ali — outro soldado constatou. 

     Léo continuou a subir. Colocava uma força extraordinária para que as garras não se soltassem da parede, apesar do silêncio de seus passos. Não teria como se defender se fosse avistado naquela posição; bastava uma escorregada, uma olhadela de um dos soldados, um dos holofotes que o encontrasse, e tudo estaria findado. 

     Conseguiu deixar um pouco do medo para trás somente quando alcançou uma altura satisfatória. Com mais de dois terços do muro escalados, juntou o máximo de força e se atirou para cima, se agarrando no anteparo de concreto. 

     — Ali! — um dos blacks urrou. 

     A fera deu mais um salto, caindo de pé sobre a torre, e atacou em meio a um rugido. As garras alcançaram as costas de um dos homens, talhando a carne como um bisturi afiado. O homem gritou, largando a arma, enquanto a boca do animal se dirigia para o colega mais próximo e abocanhava seu pescoço, arrancando tufos de pele, sangue e artérias. Um dos quatro soldados restantes vacilou; deu alguns passos para trás, numa indicação de fuga. O felino, porém, segurou sua perna antes que se afastasse, e o jogou para além do muro, deixando-o cair direto no cascalho da mata. 

     Gritando de desespero ao ver seus colegas sendo caçados, um dos blacks tomou coragem para apertar o gatilho. Léo usou de sua agilidade para escapar dos primeiros disparos e o parapeito como proteção, atacando outra vez quando o homem cessou os tiros para averiguar a sua posição. Com um salto certeiro, caiu sobre ele, fazendo com que a cabeça, coberta apenas pela fina máscara preta, se chocasse violentamente com o cimento. Sem se delongar, cravou as garras no abdômen do próximo, perfurando intestino e rins. 

     Restava apenas um, que corria desesperado para longe sabendo que sua vida dependia daquilo. Ia em direção a uma escada, o animal percebeu, que descia para o pátio interno, um local amplo e bem iluminado. 

     — Eles estão aqui! — ele gritou, entre um passo e outro. 

     Léo correu sobre suas quatro patas e chegou na escada tão logo o homem pisava nos primeiros degraus. Atirou-se sobre ele sem pensar duas vezes, num salto digno de um guepardo na savana; os dentes encontraram caminho na jugular e calaram os gritos por socorro do black. 

     Ele largou o corpo aos pés da escadaria e vislumbrou o interior do Centro de Pesquisas. Era como o primeiro Centro, ele concluiu. Contudo, não tinha ali o grande telhado de vidro para evitar que fugissem, pois os pesquisadores supunham que estariam naquele lugar por livre e espontânea vontade. O local também parecia não terminado, com  aspecto cinza de construções em acabamento, o que mostrava que Doutor Paulo tinha adiantado as coisas. Diante das dezenas de luzes que davam nitidez ao grande pátio, Léo não conseguia avistar nenhum soldado. Mas sentia o cheiro de vários deles, escondidos, à espreita. Não duvidava de que tivessem colocado aqueles seis homens em cima do muro com uma forma de atraí-lo até o ponto desejado. 

     Fez menção de dar alguns passos para o lado, em busca de um local mais reservado para estudar as possibilidades que tinha. Mas conseguiu somente girar o tronco antes de sentir a primeira picada entre a pelagem grossa. Léo olhou para o dardo preso à coxa com certa surpresa. Não tardou para que outros dardos encontrassem espaço entre seus músculos, vindos de diferentes direções. 

     — Tranquilizantes? — a fera gritou aos quatro ventos, enquanto arrancava as agulhas do corpo. — Achei que tivéssemos passado dessa fase — ironizou. — Quero dizer… Não é como se cêis não soubessem que tranquilizantes não fazem efeito em mim. 

     — Não precisamos que eles te derrubem — outra voz grave se sobressaiu ao longe, também de um adaptado em sua transformação; Léo o reconheceria em qualquer lugar. — Eu mesmo me encarrego de fazer isso. 

     O lobisomem apareceu como uma entidade sobrenatural; como se a própria escuridão além dos holofotes ganhasse forma, se materializasse e andasse impiedosamente para a luz. Lucas sorriu, antes de continuar: 

     — Leonardo, Leonardo… Cê parece tenso. — Caminhava devagar, ganhando terreno aos poucos. — Os últimos dias parece que não foram fáceis pra você, né? Consigo sentir o seu medo. O medo da derrota que te cerca. 

     — Não tenho medo de nenhum de vocês. 

      — Tem sim — o canídeo constatou com convicção, em meio a um riso. — Do contrário, não taria aqui agora, tentando bater de frente com o Projeto Gênesis. Continuaria escondido se achasse que tava protegido. Mas não tá, né? A sua única opção é enfrentar de frente, mesmo sabendo que não vai ganhar. Mesmo sabendo que fez a escolha errada quando não quis se aliar ao Doutor Paulo.

     A fera revirou os olhos amarelos. 

     — Só tô aqui porque cêis tão com nossos amigos. 

     — Amigos? Que amigos? — Cerca de quinze metros separavam os dois transformados. — Ah, sim! Os mortos… — Léo apertou os punhos e travou a mandíbula. — Como se sente sabendo que foi você que levou eles para a morte, incentivando eles a se tornarem rebeldes? Élida, Guilherme, Matheus… Como é o nome da outra? A bonitinha? Ah sim! Mônica. 

     O felino rugiu, incapaz de conter a fúria, e Lucas sorriu, contente com o resultado de suas palavras. 

     — Pelo jeito cê realmente não se preocupa com ninguém — Léo disse. — Me pergunto se um dia cê realmente se importou com a morte da Letícia. 

     A feição do lobisomem se transformou. 

     — Não toque no nome dela, seu nerd idiota. 

     — E agora nem parece se importar também com o João. Como consegue confiar nesses caras que acabaram de mandar seu melhor amigo para uma missão suicida? 

     Aquilo pareceu chamar a atenção do adversário, Léo percebeu. Lucas parou o avanço; as sobrancelhas arqueadas formavam um ponto de interrogação. 

     — João? — questionou. — O que cê tá querendo dizer? 

     — Uai, não sabe onde seu amigo tá? Pelo jeito o Projeto não te deixa saber de todos os detalhes então… — alfinetou a fera. — Agora a pouco, nos encontramos com ele no meio da mata. Ele tava numa missão de ataque, pelo que notamos. Sozinho. 

     O cão balançou a cabeça em negação, antes de contrapor: 

     — Isso é mentira, vi ele faz algumas horas. 

     — Foi tudo muito rápido, não tivemos tempo de conversar, nem de entender o que tava acontecendo. Mas ele não encontraria nosso grupo no meio da mata se não tivesse recebido ordens pra ir até lá. Lutou sozinho. — Léo analisou as expressões do animal e compreendeu que Lucas desconhecia o ocorrido.  — Eu sinto mui… 

     — Vocês… — o lobisomem rosnou. — Mataram… ELE?! 

     Léo nem mesmo teve tempo de dizer mais nada. Porém, mesmo se o tivesse, a verdade era que tempo faria pouca diferença. Lucas tinha, mais uma vez, enxergado a situação por uma ótica torta, que o garoto felino jamais entenderia. Era como se o rapaz quisesse se convencer de que o ódio que sentia era natural e legítimo, nem que para isso precisasse ignorar a racionalidade. Era como se o lado lobo falasse sempre mais alto. 

     O lobo avançou com um rosnado e com a bocarra pronta para rasgar a carne do inimigo. Léo deu um salto para trás, fugindo do golpe, e logo em seguida também atacou com as garras. Tufos de pelo cinza caíram sobre o concreto, enquanto o sangue minava no peitoral do animal. 

     Mais dardos tranquilizantes o atingiram, vindos de todos os lados — ele conseguia sentir a presença dos blacks à sua volta, mesmo não os enxergando diretamente. Ignorando as agulhas, ele saltou sobre Lucas e abocanhou o ombro; as presas afiadas talharam o trapézio esquerdo. Contudo, o lobisomem não se entregou à dor. Invés disso, socou o estômago do felino, obrigando-o a afrouxar a mordida, e então o segurou pelo pescoço, com as garras a perfurar a nuca e o punho a apertar a glote. Léo puxou ar para os pulmões, mas o movimento não teve o resultado esperado. Lucas o prensou contra o chão — a cabeça se chocando com um baque oco —, e lançou-se outra vez com os caninos à mostra. 

     Sem muitas opções para fugir do golpe, a fera pôde somente usar o braço como escudo. Lucas cravou a mordida no antebraço e, impiedoso, mastigou os músculos o máximo que conseguiu; saliva e sangue respingou para todos os lados. As garras do pé estavam livres, e foi com elas que Leo iniciou a sua defesa, usando-as para lacerar os membros inferiores de Lucas. Demorou um tempo para que o lobo sentisse a ardência dos cortes; tempo o bastante para que a mão esquerda de Léo perdesse os movimentos diante das dentadas. Lucas se afastou para se preparar para um novo ataque e ele se levantou com certa dificuldade, mas sem indícios de que entregaria os pontos. 

     Foi quando Léo notou que mais dardos estavam fincados no corpo. Os soldados continuavam a dopá-lo enquanto Lucas o mantinha ocupado com a briga. A dor dos cortes e das mordidas era maior do que a de agulhas, afinal. O tranquilizante demoraria a fazê-lo dormir, porém isso não significava que não retardaria seus movimentos. 

     Ao notar que Léo havia entendido o plano, o lobisomem sorriu — o boca suja de sangue —, antes de se gabar: 

     — Não adianta tentar fugir agora. Tarde demais pra você. 

     Lucas saltou mais uma vez e Léo teve tempo apenas de rolar para o lado, desengonçado. Os movimentos imprecisos mostravam que o que ele temia já estava acontecendo. Lucas não tardou em ir em sua direção; desferiu um soco em sua mandíbula. Léo sentiu a bochecha se romper do lado interno e, enquanto a boca se enchia de sangue, o lobo o derrubou, desferindo uma sequência de chutes no abdômen. 

     Cansado e letárgico demais para reagir com a velocidade necessária, Léo sentiu a consciência oscilar. A cada chute que recebia, a cabeça parecia viajar para longe e então voltar, só para ouvir os ganidos de êxtase do lobo, o deleite em seus olhos negros, e receber outro golpe, repetindo o processo. Num último instante de força, tentou se arrastar para longe, mas foi logo puxado de volta para mais chutes e urros de empolgação do inimigo. Lucas se vingava de todas as vezes em que ele tinha levado a melhor e nada atrapalharia o seu momento. 

     Sem notar a hora certa em que entregou de vez os pontos, Léo somente percebeu que os chutes haviam cessado quando viu que estava na forma humana de novo. Com o corpo diminuto, o tranquilizante agiria mais rápido. Ele deu uma última olhada em volta: o corpo sujo, os ferimentos, a mão imóvel. Lucas, ainda transformado, andava de um lado para o outro, como se segurando a vontade de terminar o que havia começado. Mais ao longe, os blacks finalmente tomaram coragem para sair da surdina. Vários deles despontavam de todos os lugares. Dezenas de soldados. Entre eles, na linha de frente, o comandante Manuel fazia a escolta de seu chefe. Doutor Paulo sorria para a cobaia abatida como um caçador que pega um pato-do-mato. 

     — Você tinha razão, Doutor — Manuel falou. — Ele fez exatamente como o senhor queria. Veio até nós de mãos beijadas. 

     — É claro que veio — Paulo enfatizou. — Não poderia ser diferente, soldado. Está no instinto dele. 

     Léo sentiu o corpo ser levantado. 

     — Parabéns pelo trabalho, Lucas — o cientista continuou. — Agora, temos a arma de que precisávamos para vencer. — Aproximou-se de Léo e segurou o seu queixo para que a cabeça, que pendia sem forças, fosse sustentada. Olhou diretamente nos olhos do garoto para perguntar: — Está pronto para salvar a nossa pesquisa, Casteliori? 

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