Na madrugada
Estava no colégio outra vez. As coisas calmas, rotineiras, como se nada de anormal tivesse acontecido, ou há muito tivesse ficado no passado. A apreensão que sentia todo santo dia não se fazia mais presente, nem eram audíveis os medos que costumavam gritar em seu ouvido. Tudo estava em seu perfeito lugar; a vida nada mais era que a sequência de dias comuns, um atrás do outro, sem nada para interferir. E, ao concluir aquilo, sentiu-se ainda mais feliz.
A sirene que anunciava o intervalo tocou e, então, todos os alunos começaram a sair das salas de aula. Léo se viu no meio da multidão, tentando alcançar o pátio externo, onde ficava o pé-de-manga que era o seu local de descanso todos os dias. Certamente Pedro já estava lá.
Pela primeira vez, a quantidade de gente na sua frente, atrapalhando o seu caminho, as crianças gritando no seu ouvido, nada daquilo o importou. Eram problemas tão pequenos, que sabia não significarem um décimo do sofrimento que teria se estivesse sob os comandos do seu tio Paulo. No fundo, até se sentia agradecido por poder reencontrar os rostos familiares do colégio, pessoas que ele jamais achou que poderiam significar tanto.
Alcançou, enfim, a área externa e não se enrolou para chegar a grande árvore no meio do gramado. Entretanto, não havia ninguém abaixo de sua copa; o terreno de direito de Léo e de seu melhor amigo se encontrava vazio.
O rapaz imediatamente se voltou para o extenso pátio as suas costas, procurando Pedro entre as dezenas de cabeças. Vasculhou em cada canto, aproveitando da visão privilegiada que tinha do local; o leve relevo colocava a mangueira em ponto estratégico no campo de guerra que era aquele lugar durante os recreios. Mas nada. Nenhum sinal do outro garoto. Havia algo de errado, ele percebeu.
— Léo? — a voz de Amélia surgiu repentinamente, o assustando.
Ele se virou outra vez para a árvore, e lá estava ela, a menina por quem ele se apaixonara no meio de toda aquela tempestade. Estava linda como sempre, com os cabelos castanhos bem cuidados, as ondas caindo sobre os ombros, e os olhos cor de mel a cintilarem o brilho da manhã ensolarada. O vestido de tecido leve se movia com a brisa, expondo e escondendo sua silhueta ao mesmo tempo. Ela sorriu, da forma espontânea que costumava fazer quando estava com alguém que lhe fazia bem.
— Onde tá o Pedro? — ele perguntou, sem se deixar esquecer da ausência do amigo.
Amélia não respondeu. Em vez disso, olhou para a árvore sem tirar o sorriso da face.
De trás da árvore, Janaína surgiu como se houvesse um portal mágico ali. A calça jeans parecia feita sob medida para seu corpo, assim como a blusa de cetim. Os fios loiros e perfeitamente lisos pareciam ter luz própria, dando a sensação de que seus raios eram capazes de iluminar os olhos azuis. Também sorria, o sorriso malicioso que vinha acompanhado com a sobrancelha arqueada e o olhar de imponência. O mesmo olhar que o fizera passar a odiá-la na escola, mas que agora o envolvia completamente, o fazia querer mergulhar e conhecer suas profundezas.
Pararam uma do lado da outra, e não precisaram dizer nada para que ele entendesse o que acontecia. Era o momento derradeiro. Estavam ali para que ele tomasse uma decisão final.
O rapaz tentou se esquivar, girando os calcanhares e tentando fugir para o pátio a céu aberto — para longe da mangueira. Todavia descobriu que estava preso àquela visão independente do que fizesse. Para todos as direções que olhava, enxergava somente a mesma coisa: as duas meninas, eretas sob a sombra da árvore, os sorrisos receptivos e, também, imperativos, como se afirmassem de forma silenciosa que não existia escapatória.
— Não pode passar a vida inteira se escondendo das suas escolhas, Léo — disse Amélia, depois de um tempo que o garoto não sabia contabilizar. Ele percebeu que o sorriso em seu rosto se desfazia, assim como no rosto de Janaína. — O tempo passou e não te amo mais.
Ele esticou os braços para alcançá-la e viu que estava longe demais; os pés presos ao gramado.
— Não, Amélia, espere!
— Ela tem razão — Janaína concluiu. — Cê não merece nenhuma de nós.
Sem se despedir, as duas caminharam novamente para trás do tronco robusto da árvore, desaparecendo da mesma forma que haviam surgido.
E, então, Léo caiu no chão, sentindo um vazio dentro do peito. Sentia que não havia sobrado ninguém. Todos tinham ido embora de alguma forma e estava completamente sozinho. Enganara-se ao achar que aquela era a sua vida normal, que as coisas estavam em seu perfeito lugar. Percebeu que a vida era como um objetivo flexível, que suportava pressões e tensões, e até conseguia voltar ao seu estado anterior, mas não quando tinha se deformado por completo. Era impossível restaurar o que tinha sido amassado e derretido. E ele agora não passava de uma deformação.
…
As luzes se acenderam, todas, de uma única vez, o que, junto ao sonho esquisito em que se encontrava, serviu para que acordasse com um pulo de susto. Permaneceu perdido por algum tempo, tentando entender onde estava — o sonho tinha sido real demais, com sensações vívidas ao ponto de fazê-lo acreditar. Sentou-se na cama, colocando os pés no chão; o coração acelerado, a vista embaçada, tentando se acostumar com o excesso de claridade.
Só retomou totalmente a consciência quando escutou a porta do quarto coletivo abrir. Avistou Fernando entrar, um tanto sério e apreensivo, acompanhado de três soldados; Léo os reconheceu do dia do enfrentamento na indústria de papel. O cientista parou no meio do quarto. Muitos continuavam imersos em um sono pesado, como se nada estivesse acontecendo.
— Atenção, todos — ele falou alto para que todos acordassem, e, aos poucos, os adolescentes começaram a se levantar. — Eu sei que ainda é cedo demais, mas não podemos mais esperar. Temos que partir imediatamente.
O garoto se ergueu alarmado. Lembrava-se bem da conversa que tinha escutado na tarde anterior, onde seu pai afirmara para Andréia que só sairiam daquele prédio na manhã. O rosto preocupado do pesquisador não deixava esconder que alguma coisa muito importante tinha acontecido, obrigando-o a mudar seus planos.
— O que houve? — Camila também captou a urgência dos acontecimentos. — Tamo sendo atacados?
Foi inevitável para o loiro imaginar aquela hipótese assim que a amiga a cogitou. Viu em sua mente as entradas do prédio sendo cercadas por blacks guiados por Manuel, dezenas deles, todos prontos para adentrar o edifício e iniciar a execução dos que ali estivessem. O corpo gelou com a visão, porém o aceno negativo de seu pai o trouxe de volta à calma; não era um ataque.
Ele vasculhou na mente o que se lembrava da conversa que escutara, tentando buscar uma pista para os vincos que preenchiam o rosto do bioquímico. Enquanto repassava as palavras ditas por Andréia, o entendimento veio como um trovão, iluminando seus pensamentos e tornando a conclusão até óbvia.
— Onde tá a Doutora Andréia? — Léo indagou, atento nas reações que o homem produziria.
Fernando o fitou por um breve instante, como se caçasse uma boa desculpa, todavia pareceu desistir; os olhos abaixaram, ressentidos. Estava claro o que tinha acontecido.
— Ela subestimou a capacidade deles de encontrarem tão rapidamente os culpados pelo contra-ataque. Estava errada. Não recebemos notícias dela, tudo indica que foi executada dentro do último Centro de Pesquisas.
Camila grunhiu.
— Então eles sabem da nossa localização — concluiu ela.
— Quase certeza que sim. — Fernando segurava a ira que aquela constatação aflorava em si. — Por isso precisamos sair agora! — ele gritou, para que todos do quarto ouvissem. — Não podemos contar com a sorte, não podemos prever quais serão os passos do comandante Manuel. Um confronto aqui acabaria com as nossas chances de alcançar o Centro de Pesquisas Avançadas. Aos que optaram por não ir conosco, serão encaminhados para um local seguro ainda hoje.
— Vamos! — Camila também pediu.
Léo olhou em volta e percebeu que todos já estavam de pé. Arrumavam as suas mochilas, colocando dentro as mudas de roupa e os materiais de higiene pessoal recém-adquiridos. Resolveu fazer o mesmo; organizou as suas coisas, enquanto refletia sobre o que tudo aquilo significava. Estava mais uma vez indo de encontro ao que tanto queria ficar longe, como se houvesse um ímã que o impedisse de tomar outra direção, ou mesmo uma estranha maldição, da qual ele ainda não sabia escapar. Era diferente das outra vezes, no entanto. Agora, o outro lado estava ciente da sua aproximação. Não contava mais com o elemento surpresa, que tanto tinha o ajudado nas demais ocasiões. As armas estariam voltadas para eles, a guarda estaria reforçada e, daquela vez, tinham permissão para matar. Os dardos tranquilizantes tinham ficado no passado.
Percebeu que a apreensão que tinha chegado no quarto com seu pai se alastrava de forma veloz, infectando todos os seus colegas. Terminavam de aprontar as coisas com as feições sérias, a maioria se mantendo em silêncio, pensativos. Não duvidava que também fizessem as mesmas reflexões que as suas e que tivessem chegado às mesmas conclusões aterrorizantes. O destino estava selado fazia tempo, entretanto a força das suas decisões só começavam a doer ali, com a iminência de um confronto.
Pego pela súbita notícia da morte de Andréia, ainda anestesiado pelo sono, a ficha demorou a cair para o rapaz. Estava longe de sentir algo pela cientista, pois seu espírito estava cheio de luto por Matheus, por Élida e por Guilherme, e não cabia espaço para sofrer pela morte de um membro do Projeto Gênesis. Mas não podia negar que sentia por seu pai. Andréia era a única amiga que restara depois dos anos de confinamento. Estava sozinho de novo.
Sem postergar a estadia no prédio, os adaptados foram levados assim que terminaram a organização. Os blacks os conduziram novamente para o subsolo, onde as dezenas de veículos de cor preta enfeitavam o estacionamento amplo.
Distribuíram-se em diversos automóveis. Léo percebeu que não apenas eles estavam saindo em debandada; diversos veículos se enchiam de soldados aliados, como se fosse um verdadeiro exército se preparando para a batalha.
— Esperem! — Léo escutou alguém chamando no meio do alvoroço. Olhou para trás, vendo Márcia se aproximar, e, sem aviso, o abraçou. — Se cuida. Todos vocês, se cuidem, por favor.
Victor e Ariel também estavam ali, se despedindo dos amigos e dando forças. Todavia não escondiam a indignação, continuavam considerando a aventura um suicídio em grupo.
— Não se preocupe — ele respondeu a loirinha, enquanto era pego por um sentimento totalmente diferente, como se o abraço tivesse a capacidade de apaziguar todos os ânimos. Por um curto momento, esqueceu-se do burburinho de blacks ao redor. — Vai dar tudo certo — disse com convicção.
Entrou junto com seus amigos dentro de um superjipe militar, o que o fez se sentir mais preparado para o que viesse. A presença de Pedro e Camila, de Amélia e de Janaína, fazia-o recordar de tudo que haviam passado juntos. Compartilhavam mais que as tramas do acaso e do destino e guardavam em comum um sentimento maior que o simples desejo de vingança. Eram a turma do galpão abandonado; tinham descoberto os poderes juntos e, desde então, construído uma amizade genuína.
Os motores foram ligados e os veículos deram partida em direção ao desconhecido, rumo ao inevitável. O frio da madrugada não demorou a envolvê-los no lado de fora, lembrando-os que o sol estava longe de surgir no horizonte.
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