Irmãos


     Andréia caminhava alguns metros à sua frente. Com passos cadenciados e sobre os belos saltos, a mulher fazia dos corredores uma passarela de moda. Não pareceu se abalar pela conversa e as ameaças da fera, andava de nariz empinado e peito cheio, como se estivesse orgulhosa de algo que fugia da compreensão de Léo. Estava confiante; tinha recusado a escolta de seus blacks, dizendo com um sorriso aberto que não corria perigo na companhia do garoto. 

    Acompanhado de Amélia, Léo a seguia, sempre se certificando que não estava muito perto da cientista, evitando ao máximo que precisasse dialogar com ela. Ele tinha retornado a forma humana, pois não gostava de ser admirado como um extraterrestre pelos pesquisadores e soldados corredor afora. As roupas, que antes estavam manchadas de sangue, já não serviam de nada após a transformação. De fato, nem se preocupava com o guarda-roupa diminuto, aquilo estava distante de ser uma das coisas que martelava incessantemente seus neurônios. 

    Todos os outros adaptados haviam ficado para trás, levados para uma sala onde poderiam banhar, comer algo e descansar. Somente os dois estavam ali, caminhando sem saber para onde, seguindo os elegantes passos da pesquisadora. 

    O rapaz se sentia entorpecido, como se, dentro da cabeça, alguma chave com o poder de desligar todas as emoções tivesse sido ativada. Seguia andando não sabia como; as pernas funcionavam com uma força desconhecida e alheia. Os olhos estavam ardendo por causa do choro, mesmo que houvesse parado de chorar. Do turbilhão de emoções, só tinha restado a apatia. 

    — Como cê tá? — Amélia perguntou em certo momento do percurso, deixando escapar uma aflição na voz. Preocupava-se com o estado do rapaz. 

    Por mais que a face estivesse desprovida de reações, ele se pegou, lá no fundo, feliz pela garota permanecer ao seu lado. A preocupação em sua voz era a prova de que ela ainda se importava, de que a discussão do dia anterior talvez ficasse no passado, queimando junto ao helicóptero na fábrica de papel. 

    — No momento eu não sei o que pensar… — respondeu. 

    — Obrigada por pedir que me levassem até a Clara — ela agradeceu depois de mais metros de corredor em silêncio. — Sei que tem muita coisa na sua cabeça agora, então foi… bonito cê lembrar dela. 

    — Sei que ela é importante pra você — ele se ateve ao responder. 

    Silêncio. Passos. Mais uma esquina do corredor. 

    — Se quiser falar o que tá sentindo agora… — ela insistiu, o que o fez questionar o estado da sua cara. Devia se encontrar extremamente abatido, com os olhos perturbados, para que a menina estivesse tão aflita. 

    Entretanto não respondeu; sentia que falar não ajudaria em nada. Precisava focar nas diversas coisas sem explicação que rondavam de forma incansável sua mente. Precisava se manter em alerta, estudando os mínimos detalhes — dos corredores que passavam aos olhares dos cientistas que encontravam —, pois não podia se esquecer que aquele era um território de inimigos. 

    — Sei que tá estressado com seu pai, mas… 

    — Eu tô bem — cortou-a, longe de se importar se pareceria grosseiro. Aquele era um assunto proibido no momento. — Eu vou ficar bem. 

    Sentiu o misto de emoções ruins que havia sentido minutos antes voltar a se remexer, como um monstro que ameaça despertar no fundo da toca. No entanto, forçou os pensamentos para outra direção assim que percebeu o ardor dos olhos aumentar. Pensou em Camila, no olhar sincero que ela mantinha aceso o tempo todo, como se para afirmar sempre que estava ciente da complexidade dos fatos, mas que não havia motivos para que ele duvidasse. A ruiva era a única notícia boa no meio de todo aquele furacão, mesmo que ele mantivesse um pé atrás com ela também. Afinal, qualquer amizade com os blacks não podia ser aceita tão facilmente, e ele tinha certeza de que ela pensava do mesmo jeito. 

    — Chegamos, finalmente — Andréia quebrou o imenso gelo que tinha se formado. Parou de frente a uma porta ampla. — A área hospitalar do prédio. 

    Amélia se encolheu. 

    — Parece muito a entrada da enfermaria no prédio que pegou fogo… — Por algum motivo que Léo não conseguiu captar, havia medo em sua voz. — É a segunda vez que ela leva um tiro — completou. 

    — Sim, mas dessa vez as coisas foram ainda mais sérias — Andréia usou um tom calmo, como se não quisesse alarmar ninguém com o diagnóstico. Abriu a porta e continuou andando, enquanto concluía: — Da outra vez o tiro não pegou nenhuma parte nobre do corpo, mas dessa vez ele acabou atingindo uma veia importante. Ela perdeu muito sangue. 

    A forma amistosa com que a cientista se dirigia aos dois incomodava Léo. Apesar das informações relevantes sobre Clara, era como se todos os conflitos dos últimos meses, as mortes e o sofrimento, como se nada daquilo importasse mais. Uma borracha tinha sido passada sem o seu consentimento, e agora todos eram grandes e felizes amigos. Mais uma vez, sentia que o Projeto Gênesis, do lado do Doutor Paulo ou não, continuava a justificar todas as atrocidades cometidas. 

    Pararam de frente a uma parede de vidro, e a cena do outro lado jogou para canto toda a insatisfação que ele sentia. Era uma sala cirúrgica, onde meia-dúzia de médicos, envolvidos pelo capotes azuis, uniam forças em volta da mesa onde Clara repousava desacordada. Trabalhavam com toda a concentração do mundo, agilmente, como se lidasssem com uma bomba-relógio. 

    Amélia levou a mão a boca. As lágrimas brotaram novamente. Léo segurou o ímpeto de abraçá-la, de afogá-la no peito e acariciar o seu rosto até que os olhos retornassem à secura. 

    — É uma cirurgia simples, apesar de extremamente importante — Andréia voltou a abrir a boca, para o descontentamento do loiro. — Vamos trabalhar com a adaptação dela assim que ela ficar novamente consciente, para que melhore o mais rápido possível. 

    Aquilo lhe chamou a atenção. 

    — Como assim? Ela não consegue se curar, o dom dela só funciona em outras pessoas. 

    A mulher sorriu — o sabor da vanglória. 

    — Era o que achávamos até o último acidente, em que ela chegou ferida no Centro de Pesquisas — esclareceu didaticamente. — Percebemos ali uma cicatrização atípica, acelerada. Obviamente, nenhum pouco comparável com a cicatrização que ocorre quando ela usa os poderes em outras pessoas, mas mesmo assim… digna de análises. E foi o que fizemos. Tudo indica que ela consegue sim se autorregenerar, mas que isso ainda precisa ser trabalhado, treinado. Precisamos que passe a ser algo consciente, só então poderemos ver até quais níveis essa autorregeneração pode chegar. 

    De certo modo, aquilo era uma coisa boa, Léo concluiu. Por mais que Andréia falasse com um ar de posse, como se Clara fosse um animal talentoso que precisava ser adestrado melhor, a verdade é que no fim só uma coisa importava: a menina sairia bem do incidente. 

    Amélia não tirava os olhos da sala de cirurgia, desinteressada das coisas que a cientista falava. A apreensão que expirava de seus poros era quase visível. 

    — Bem… Queridos, vou deixá-los a sós agora. — O sorriso que a cientista botava na cara era aberto demais, branco demais para a situação, o que fez com que o rapaz travasse a mandíbula. — Há muitos detalhes a serem resolvidos, agora que vocês chegaram… Espero que tenham percebido que estamos finalmente do mesmo lado. — Ela esperou por uma resposta, os dentes sempre à mostra, contudo os dois fingiram que a voz da mulher se tratava de uma mera ilusão. Um som incômodo e inconveniente. Andréia saiu de mãos vazias. 

    O silêncio nunca tinha sido tão prazeroso. Léo verificou o corredor da área médica; estava completamente desocupado. Era a paz que ele precisava. 

    — Quando eu penso no sofrimento da Márcia — Amélia falou, depois de um longo tempo assistindo o vai-e-vem dos médicos em volta da amiga. — Imaginar que eu poderia tá sentindo a mesma dor nesse exato momento. Porque, pode parecer exagero, mas a Clara é uma irmã pra mim… A única coisa que restou da minha vida de antes, e por muito pouco eu não perdi ela. 

    Antes que as palavras da menina se perdessem na assepsia das paredes, a grande porta de entrada reabriu. 

    — Léo — o garoto chamou assim que apareceu. 

    Léo observou Pedro com um certa desconfiança. O medo de que aquilo significasse uma nova discussão, repleta de novas acusações, estava presente. Era um receio constante nas últimas semanas, como se existisse uma força sobrenatural que atacava sempre que Léo tentava conversar com o outro garoto. Todavia, ao observá-lo ali, no meio do corredor branco, o loiro conseguiu vislumbrar um tom diferente no olhar. Demorou alguns segundos para entender o que aquilo significava, porém, ao entender, foi como se uma onda de impotência o cobrisse de repente. A postura subitamente amistosa do rapaz tomou de si todas as suas armas, expôs ao sol todas as feridas e as colocou à mercê dos insetos. A dor e os sentimentos ruins ressurgiram de imediato, supitando feito um vulcão em erupção. Não conseguiu segurar as lágrimas. 

    Pedro o abraçou forte, também entendo a situação. 

    — Eu sinto muito. 

    De todos os adaptados, Pedro era o único que vivera o luto da morte de seu pai junto com ele. Sabia o quanto tinha sido difícil… O quanto ainda era difícil. Não tinha como fingir diante de seu melhor amigo, nenhuma máscara esconderia seus verdadeiros sentimentos. A dor era enorme. Consumia-o de dentro para fora, sem que pudesse impedir. Chorou inesgotavelmente, certo de que naquele momento tinha toda a liberdade de mostrar as suas fraquezas; estava cercado de pessoas que o amava. Estava no ombro do seu irmão — ele conseguia agora entender a comparação de Amélia. Chorou um choro sem fim, até que não tivesse mais lágrimas para chorar. 

    Só então percebeu a parte boa da situação. 

    — Eu… Tô perdoado? — questionou, ainda receoso em tocar no assunto. Sentiu que soara carente demais, mas a verdade era que estava pouco se lixando. Pedro valia mais que as aparências. 

    O amigo riu com a pergunta. 

    — Tá brincando?! — Ele olhou para Amélia, que o tempo todo admirava-os com um sorriso de satisfação. — Eu sempre quis namorar uma morta-viva, cara, cê realizou um sonho de infância. — Ver o bom-humor dele de volta era a melhor coisa daquele dia infernal. — A gente precisa tá unido agora, mano. 

    Léo concordou; a face vermelha e molhada. Depois, indagou com a voz rouca:

    — A Camila te contou alguma coisa? 

    — Ainda não. — Pedro falava sério agora. — Mas a gente precisa ouvir o que ela tem pra dizer. É a nossa Camila. A que salvou a nossa vida levando a gente pro galpão abandonado, a que planejou o ataque ao Centro de Pesquisas… 

    Concordou outra vez, entendendo aonde ele queria chegar. Camila era confiável, não havia como negar. E se ela tinha se juntado aos blacks, era porque aquela era a melhor estratégia para vencer. Fazia parte do jogo. Um jogo que ele ainda não compreendia totalmente, porém que tinha um alvo nítido: Doutor Paulo. 

    Com a reconciliação, sentiu-se forte o bastante para deixar que a dor se alimentasse do seu corpo solta. Era melhor assim, aquilo precisava ser sentido para que pudesse prosseguir e, então, derrotar o Projeto Gênesis de dentro para fora, assim como aqueles sentimentos ruins faziam consigo. Precisava aceitar os fatos. Fernando Casteliori estava vivo. Seu pai estava vivo. 

    Olá, lindos e lindas, como estão?

    Se está gostando da história, não deixe de presentear esse capítulo com uma estrelinha! ⭐

    Comente aqui: o que está achando de tudo isso que tá acontecendo? Acha que o Léo tá reagindo bem aos acontecimentos? Você reagiria diferente?

    Me contem tudo!

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top