Engasgo

    "Obrigado"

    Parecia que uma eternidade tinha se passado desde então, mas a verdade era que fazia pouquíssimo tempo desde a hora que Léo havia encarado os olhos tremeluzentes de João. Com a respiração entrecortada e o sangue empapando as palavras, o garoto-escorpião tinha proferido um agradecimento após a derrota, como quem finalmente tem um grande favor atendido. Léo se lembrava da estranheza do momento, do arrepio que percorrera sua nuca e da pergunta que ficou martelando na cabeça nos minutos após o último suspiro do rapaz. Estava certo de que aquela sensação esquisita o acompanharia para sempre, mesmo após o fim de tudo, pois acreditava que a única pessoa que poderia te dar alguma explicação já não estava mais presente. No entanto, enganara-se. Preso dentro da fera, ele sentia a mesma angústia que João sentira, e recebia, então, as respostas que tanto almejava. A impotência, o desespero, a culpa, o arrependimento... Tudo culminava de forma inevitável no desejo mais puro de que alguém acabasse com seu sofrimento. Só existia uma solução: precisava ser parado. Precisava morrer.

    Por isso, se encheu de um imenso alívio quando sentiu o soco de Alex, já transformado em gigante, atingindo-lhe a têmpora. A fera cambaleou para o lado, perdendo parcialmente os sentidos tempo o bastante para que Amélia conseguisse correr para longe antes do bote final.

    — Atenção, soldados! — a voz de Comandante Amir se sobressaiu no alvoroço. — Atirem!

    — Não! — Fernando pediu.

    Os primeiros disparos vieram de forma rápida. Alguns, os que até aquele tempo guardavam alguma pena, insistiam nos dardos tranquilizantes inofensivos àquela altura do campeonato. A grande maioria, contudo, disparava para matar, mesmo que suas armas pouco fizessem para acelerar o processo. Léo sentia as perfurações — a dor como a de pequenas picadas de mutucas —, mas também sentia a fúria da fera aumentar a cada uma delas.

    — Vem! — Alex urrou, chamando sua atenção. — Vem brigar com alguém do seu tamanho!

    O felino atacou, rugindo e com as garras à mostra. Alex então colocou um dos antebraços na frente para receber o golpe, protegendo o pescoço de uma mordida lacerante, e com a outra mão desferiu um soco no abdômen. A fera grunhiu, destravando a mandíbula imediatamente, e se afastou alguns metros para recomeçar o ataque. Léo sabia que o gigante via toda a situação como uma luta pessoal. Derrotá-lo era para Alex nenhum sacrifício. Aquela constatação, em outras circunstâncias, teria mexido com o ego de Léo. Mas naquele momento era disso que seus amigos precisavam: de alguém que não tivesse remorso em fazer o que devia ser feito.

    Mais tiros. Léo percebeu que os blacks caiam no chão, com perfurações sanguinolentas em diversos lugares. A luta, obviamente, não era apenas contra ele. Os soldados do Comandante Amir também precisavam se preocupar com os homens do Comandante Manuel. Para todos os lados do grande pátio, para onde a fera fixasse as grande órbitas amarelas, havia luta e morte.

    Viu Sandro mais a frente, usando de seus poderes para dar um salto sobre-humano e, já sem as luvas, intoxicar um black. A espuma que extravasava pela boca da vítima era sempre uma visão perturbadora.

    — Ei! Aqui! — Alex gritou novamente, fazendo com que voltasse a ser o foco do animal. Estava ganhando tempo, Léo compreendeu.

    Felizmente, surtia efeito. O animal caminhou, cercando o garoto; o tronco abaixado, a calda a balançar de forma sugestiva. Alex se mantinha firme, com os olhos atentos a qualquer movimento suspeito. E como dois animais de uma savana, o encontro dos corpos ecoou pela noite, abafando os demais gritos e sons de tiro. O gigante apoiou os polegares nas presas, forçando a fera a manter a bocarra arreganhada. Recebeu alguns novos cortes nos antebraços como resposta, que logo foram tomados por sangue fresco e quente. Léo sentiu o odor férrico empestear o ambiente e uma repulsa enorme o tomou em seguida. Mas a fera, não. O cheiro de carne recém-talhada apenas funcionou para alimentar sua ânsia por mais. As investidas se tornaram ainda mais sangrentas; a cada novo roçar das unhas do felino sobre os braços, ombros e onde era de seu alcance, tufos de pele se desprendiam de seus lugares de direito. Não demorou para que o corpo de Alex começasse a protestar.

    Tomado pela dor, Alex gradualmente perdia a parcimônia diante do animal. A cada nova ferida, a dúvida se a fera estava disposta a matá-lo ou não dava espaço para a certeza, e não havia muito o que fazer senão agir com a mesma ferocidade. Seu olhar foi endurecendo e as pupilas, já grandes, pareceram duplicar de tamanho. Mais instinto, mais adrenalina e mais força. A hemorragia, contudo, também se intensificou, brotando dos membros como uma nascente límpida e quente.

    A dor viva de ter uma de suas presas fraturadas alcançou Léo. A fera rugiu chorosamente. Sem tempo a perder, Alex tentou cravar o dente nas costelas do felino. Teria sido um grave ferimento caso o gigante tivesse obtido sucesso na empreitada. A espessa pelagem, contudo, barrou boa parte da perfuração.

    A verdade amarga era que o felino estava longe de ser parado e a dor da presa fraturada, persistente e cáustica, não era suficiente para amedrontá-lo. Léo viu que nem mesmo ele imaginava um dia ter força física para encarar o gigante frente a frente. Mais do que força, havia também uma determinação titânica que ia além de sua compreensão. O animal estava três vezes mais raivoso, o que não era uma notícia boa para um Alex empapado de sangue.

    O ruído da luta era interrompido somente pelo som dos disparos. Léo queria poder visualizar de onde vinham e em quem acertavam; queria saber como estavam seus amigos, como estava seu pai. Quanto sangue teria sido derramado naquela altura do campeonato? De quem eram os urros abafados de angústia, de dor, que surgiam de tempos em tempos em lugares aleatórios? Mas não adiantava. Podia pedir para a fera — podia implorar! — e não seria atendido. Tudo que os grandes olhos âmbar do animal conseguiam enxergar era o imenso inimigo diante de si.

    Foi quando Alex cambaleou para o lado, com o joelho esquerdo perdendo a estabilidade e encontrando apoio no chão. Se Léo tivesse um corpo, teria visto aquela cena em câmera lenta, enquanto sentia um frio percorrer sua nuca. A sensação de desespero teria tomado suas entranhas ao entender que aquele era o primeiro sinal da derrota iminente do colega. Contudo, estava impedido até mesmo de ter aquelas emoções. No lugar delas, apenas o êxtase inebriante do felino ao também perceber que a sua caça abria espaço para um golpe definitivo.

    — Alex! — alguém gritou. — Alex, sai daí!

    Com o pavor da iminência de mais uma morte, Léo assistiu ao gigante se desvencilhar do abraço do fera, afastando-se brutalmente com as últimas gotas de força. Trôpego, Alex se jogou para alguns metros de distância; o chão tremendo com a pancada do corpanzil sobre o concreto. O peito, desnudo, talhado e tingido de carmesim, arfava de forma profunda. Estava terrivelmente cansado, tanto que sequer se levantou do ponto onde caiu. Poucos segundos depois, a exaustão venceu por completo e o corpo começou a diminuir de tamanho, voltando às proporções humanas. A fera se pôs outra vez em posição de bote, observando feliz que agora poderia engolir numa só mordida a cabeça do adversário. Abaixou o tronco, expôs as garras e avançou.

    Tonto pela pressão do sangue que caía e de pulmões ardentes pelo esforço, Alex assistiu a aproximação sem poder reagir. Fechou os olhos e prendeu a respiração, preparando-se para o fim. Se houvesse uma forma de fazer o mesmo, fechar os olhos e evitar o que se seguiria, Léo teria feito. Também urraria, espernearia e socaria o vento, caso isso fizesse o animal frear o ataque. Mas a verdade era que ali, naquela espécie de cativeiro mental em que se encontrava, não passava de um mero espectador.

    Um espinho atravessou a pata do animal antes que pudesse ceifar a vida de sua vítima. A fera rugiu com a dor aguda — e Léo comemorou. Não muito distante, Pedro estava a postos com os pés firmes ao chão e o suor escorrendo das têmporas e encharcando a camiseta. De suas mãos, longas estacas negras brilhavam sob a luz dos holofotes. A postura era de quem tinha acabado de sair de uma luta, mas estava disposto a entrar em outra sem pestanejar.

    Léo sentiu medo ao entender que toda a fúria do animal mudava de direção. No instante seguinte, o garoto-gigante desfalecido — a presa fácil — já não existia mais. Seu melhor amigo, se colocando desafiador diante de um predador, era um alvo bem mais interessante. O felino, então, arrancou o espinho de sua pata como uma onça que pisou sobre um tronco de tucum; esticou os dedos, analisando o pequeno ponto de dormência que havia surgido no local. Nada que pudesse pará-lo. Rugiu outra vez, demonstrando vigor.

    Pedro soltou o ar, quase esboçando um sorriso.

    — Vem me pegar, vem! — A respiração estava pesada, quase arfante. Os blacks caídos ao seu redor, empalados com os maiores espinhos que Léo já tinha visto ele produzir, certamente tinham dado trabalho até serem derrotados. — Gatinho malvado. Vem!

    Alheia a todas aquelas observações, a fera avançou com energias renovadas. O cheiro de sangue empesteava o ambiente e, o que para os humanos era apenas um odor pungente, metálico e inebriante, para o animal era como se tivessem borrifado uma infinidade de perfumes diferentes no ar. Aromas doces, alguns fortes ao ponto de incrustar em suas marinas, outros suaves, facilmente levados pelos vento, alguns ácidos, pouco palatáveis, no entanto a maioria era como bombas de desejo, que davam água na boca e dilatavam as pupilas. A fera se apegava a estes, dando passos fortes e imaginando se Pedro teria aquele mesmo sabor.

    O garoto não esperou pela aproximação para que iniciasse o ataque. Léo notou no olhar do amigo um misto de decisão e revolta, como se soubesse o que era preciso fazer, mesmo que doesse muito. O estado de Alex não deixava dúvidas a ninguém das intenções do felino. Pedro lançou de seus punhos os espinhos em prontidão. Lindas flechas negras, aerodinâmicas, livres das forças da gravidade. Letais. A fera saltou, desviando com maestria, e então mudou sua estratégia. Uma investida direta era vantajosa para o adversário, que desejava um alvo estático para seus projéteis. Era preciso ser furtivo então. Se embrenhar entre a movimentação dos soldados e se aproveitar dos pontos cegos.

    Mais alguns dardos tranquilizantes atingiram o seu dorso, tão inofensivos quanto muriçocas. Léo praguejou. Quem naquela altura do campeonato ainda usava tranquilizantes? De certo algum black que já não ouvia mais as ordens dadas pelo Comandante Amir.

    Disposto a não deixar que a fera ganhasse confiança, Pedro soltou mais espinhos. Apesar disso, a cada salto ágil, Léo assistia o amigo se aproximar perigosamente. Tinha que reconhecer: o felino era bem mais inteligente sem os seus comandos. Era uma verdadeira máquina, do jeito que Doutor Paulo tanto queria. Pedro deu alguns passos para trás, enquanto expelia novos espinhos. O felino desviou. Já não tinha medo. Era muito mais rápido que as lanças e o ambiente iluminado fazia-as reluzir, o que lhe dava bons segundos de reação.

    Era uma questão de tempo. Mais alguns passos para trás. Mais alguns saltos para frente. Quantos mais seriam precisos para que aquela dança chegasse ao fim? Pedro não teria chances em uma luta corporal, disso Léo estava certo.

    — Pê! — A voz de Camila surgiu em meio ao alvoroço. — Corre!

    — Espera! — ele respondeu. Léo tentou encontrar a garota em seu campo de visão, mas não conseguiu. A voz, contudo, não estava distante. — Só mais um pouco!

    Mais um passo para trás. Poucos metros os separavam agora.

    — Vem, gatinho! Vem me pegar!

    A fera encolheu o corpo, se preparando para finalmente dar o bote.

    — Pé!

    — Agora! — Pedro rolou para o lado, atirando alguns espinhos durante o movimento.

    No entanto, o que verdadeiramente o atingiu foram os olhos hipnotizantes de Janaína. Prostrada alguns mestres atrás de Pedro, a loira apenas aguardava a ocasião perfeita para entrar em ação. Léo estava familiarizado com as orbes cintilantes e com a sensação quase espontânea de se sentir preso a elas. Quantas vezes fora preciso que a garota o acudisse e evitasse o seu descontrole? Uma vez, a primeira delas, na casa de Pedro, quando as adaptações eram novidade para todos. Outra, no galpão abandonado, quando as transformações eram ainda moduladas pelo seu humor. Sempre dera certo. Sempre bastara. Mas Léo percebeu, no segundo em que a fera, apesar da hipnose, deu um passo adiante, que algo de diferente acontecia naquela vez.

   — Pare! — Janaína ordenou.

    O felino hesitou quando os músculos ameaçaram seguir o comando dado. Porém, assim que a determinação ganhou fôlego renovado, o efeito se dissipou feito um truque de mágica que é desmascarado. Janaína arregalou os olhos, entendendo, assim como Léo, que seu dom não funcionava em animais. E não havia parte humana num ser sanguinário movido pelos instintos mais primitivos.

   Graziela a puxou para longe assim que previu o insucesso da missão. O felino fez que iria segui-las, no entanto foi recebido por uma sequência de balas. Nada de dardos, mas sim tiros, atravessando a grossa camada de pelos e se alojando nos músculos. A dor imediata reprogramou seu foco de atenção. Ele rugiu, mostrando os dentes para o vazio. Camila estava ali, Léo entendeu. Usando sua invisibilidade, a garota tinha se aproximado o bastante para acertar todos os disparos. Provavelmente estava perto o suficiente para um tiro certeiro no meio de sua cabeça, mas alguma coisa a impedia de consumar o ato. Léo orou para que ela mudasse de ideia e aproveitasse a oportunidade.

    O animal continuou a procura. Três pontos novos de dor se espalhavam pelo corpo, latejando enquanto se movia. O barulho das outras batalhas o impediria de ouvir os passos da menina, tampouco a respiração, por isso inspirou profundamente, sentindo os odores espalhados ao redor. O já habitual cheiro de sangue era o que mais saltava, mas também era possível sentir o cheiro do suor dos corpos cansados; o cheiro da adrenalina e do medo. E, sutil, mas inconfundível, o cheiro dela. Mas onde estava?

    Mais dois tiros acertaram as suas nádegas. A vontade de encontrá-la era tamanha, que o felino ignorou a dor lancinante e girou o corpo, levando as garras na direção dos disparos. Cortou o vazio, somente. Mas ela estava ali, ele podia sentir — e Léo também. Antes que a localizasse, mais disparos surgiram de outros lugares. Blacks se colocavam em sua volta num cerco desajustado e iniciavam um ataque conjunto. A fera se assustou pela primeira vez naquela noite. Eram muitos e por um momento a ânsia por sangue deu lugar ao ímpeto de preservação. Poderia matar todos, mas não todos de uma vez.

    — Atirem! — Comandante Amir ordenou.

    — Não matem! Não matem! — Seu pai urrava para quem pudesse ouvir. Outra saraivada de balas ganhou asas em sua direção. — Não! Léo!

    Sentia pena do pai, mas estava contente por ele não ter voz naquele momento.

    A fera se agitou com os furos recém-chegados. Girou o corpo, procurando uma brecha, um elo mais fraco. Um espinho de Pedro encontrou apoio em seu cotovelo, despejando no seu organismo mais da toxina paralisante. Era um sinal claro de derrota e ele não podia deixar a situação caminhar para aquela direção. Rugiu de forma ameaçadora, demonstrando a força que ainda possuía. Mostrou todos os dentes possíveis. Foi quando um tiro passou perigosamente próximo a sua face, acertando em cheio seu canino direito. O dente explodiu como festim, transmitindo uma dor que até mesmo Léo foi capaz de absorver. Estava, agora, sem as duas presas.

    Atônito, o felino se guiou pela fúria na direção que seu instinto pedia por vingança. Encontrou Comandante Amir a preparar o revólver para um outro disparo, talvez ainda mais certeiro, e avançou sem pensar duas vezes. Amir levantou o braço para disparar, mas antes que apertasse o gatilho, a fera engoliu o membro quase por inteiro, cravando uma mordida com os dentes que haviam sobrado no braço do homem e chacoalhando o corpo a seu bel-prazer. O homem urrou ao sentir o ombro deslocado, e urrou mais ainda quando o corpo foi jogado para longe. O braço, no entanto, ficou entre os maxilares travados do animal. O sangue jorrando para fora do rasgo como um chafariz digno de um filme de guerra. Mas aquilo era uma guerra, Léo se deu conta, e o Comandante Amir era mais um soldado que morreria às mínguas, gotejando até o último suspiro.

    "Não, não!"

    Ondas supersônicas atingiram o felino no segundo seguinte. Léo reconheceria o dom de Amélia em qualquer situação, mas ser o alvo dele era muito pior do que vê-la usando noutros adversários. Descomunal, o som invadia seu organismo, espancava seus tímpanos, revirava seu sentido de direção, de equilíbrio e fazia vibrar suas vísceras. Era como se seu sangue parasse de percorrer as veias para dançar na mesma sinfonia, ou como se o seu cérebro se apropriasse de sua essência gelatinosa e ameaçasse  derreter a qualquer sinal. A audição hiperaguçada da fera tornava tudo pior, mas Léo sabia que aquela era uma ótima forma de pará-lo. Pouco importava o desconforto.

    A fera se encolheu, protegendo com o tronco as orelhas. Não surtia muito efeito, mas a posição dava o alívio que precisava para estudar a direção por onde vinha a investida. Léo acompanhava as mudanças de estratégia do animal com bastante atenção. E com um certo espanto. Era incrível a maneira como era capaz de buscar soluções para os problemas que surgiam e contra-atacar numa velocidade impressionante. Nem com toda a dor do mundo, desistir era uma ideia que raiava no horizonte de sua mente; nem mesmo como uma pequena fagulha no subconsciente. Era até injusto chamá-lo de animal. Animais possuíam um mínimo instinto de sobrevivência.

    Enclausurado num canto de sua psique, o garoto se alarmou ainda mais ao perceber que a posição de Amélia havia sido descoberta pelo felino. As ondas, por mais que se dissipassem pelo pátio de modo a ninguém conseguir escapar, tinha um ponto bastante específico de origem. Os pelos se eriçaram em contentamento: ela estava a poucos metros à esquerda.

    "Não..."

    Para a fera, o incômodo de se manter como alvo do grito supersônico era maior que a dor de se aproximar do ponto de origem. Não importava que a audição fosse sair inteiramente prejudicada na empreitada, o sacrifício de uma boa audição era preço baixo diante do prêmio de abocanhar o mundaréu de pessoas presentes naquele pátio. Deu, então, o primeiro passo de forma lenta — como se experimentasse a sensação de caminhar contra uma barreira de força invisível — e descobriu que não havia barreira nenhuma senão a dor. As garras arranharam o concreto diante da constatação.

    "Não, não! NÃO!!"

    Avançou de uma vez, sem dar tempo de ninguém a sua volta reagir. Sem tempo de perceberem que o poder de Amélia já não surtia nenhum efeito prático. Sem tempo de uma fuga, de um ímpeto, de um susto sequer. Três longos passos; quase saltos. O rugido se perdeu em meio ao som que reverberava de seu alvo. E apesar do sangramento que começava a escorrer pelas têmporas, dos tímpanos em profusão, a investida seria certeira. Tão certa quanto a morte. Resguardado em sua impotência, Léo assistiu ao alcançar como num filme em câmera lenta. Os olhos arregalados de Amélia, percebendo no último segundo o que estava prestes a acontecer, foram marcados a ferro quente em seu interior. Eram castanhos, com o tão característico brilho de esperança que neles habitava. O microcosmo de singeleza que tanto admirava... Tudo. Absolutamente tudo estava prestes a chegar ao fim.

    As garras foram cravadas no abdômen. Sem cerimônias, nem hesitações. O grito se perdeu em um engasgo. Depois disso, apenas o silêncio.

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