Covil

     Sem serem informados do motivo, os três garotos se colocaram em prontidão no enorme laboratório do Doutor Paulo. Tomás não gostava nenhum pouco daquela parte do Centro de Pesquisas. Era escura, ainda mal acabada e guardava uma energia estranha digna de um covil soturno. Isso se devia principalmente a presença do doutor, ele inferia, que sempre os olhava como quem está se preparando para dar um bote. Uma das coisas que sua adaptação de réptil havia lhe ensinado a captar, era o quão traiçoeiras eram as pessoas a sua volta — um ser humano, ao tentar persuadir e se aproveitar das fraquezas, agia como qualquer outro animal do mundo. E não conhecia ninguém mais peçonhento que o líder do Projeto. 

    Os três garotos continuavam parados; a postura ereta como a dos soldados. Observavam, apenas, enquanto Paulo e o comandante Manuel conversavam, longe demais para que pudessem distinguir as palavras. 

    — Afes, por que será que chamaram a gente a essa hora?! — João resmungou, em um tom que somente os três escutaram. — Tô começando a ficar com sono aqui. 

    Lucas sorriu de forma zombeteira. 

    — Eu espero que já tenham descoberto o novo esconderijo daqueles ratos malditos — disse ele, carregando a voz com o máximo de rancor que conseguiu juntar. 

    — Poderiam deixar isso pra amanhã. — João coçou o olho e continuou, entremeio a um bocejo: — Duvido que a turminha do Léo teja em condições de lutar depois do último ataque. Devem tá só os trapos. 

    Tomás, por sua vez, mantinha a sua promessa de não fazer comentários sobre o que era feito ali; o que era obrigado a fazer. Mantinha-se calado a maior parte do tempo, ouvindo constantemente as reclamações e piadas de gosto duvidoso de João e os infindáveis discursos de Lucas, que tinha como assunto favorito as várias formas que planejara acabar de vez com os adaptados fugitivos. 

    Ele ainda buscava deglutir tudo o que tinha acontecido na última investida contra os outros adolescentes. As imagens da confusão de acontecimentos continuavam sem uma lógica, como se estivesse, na verdade, se recordando de um sonho de uma noite desconfortável. Os adaptados dentro daquela construção em frangalhos, carcomida pelo tempo, depois os tiros, a explosão do helicóptero, o ataque repentino de soldados do Projeto contra o seus próprios aliados… Não era de se duvidar que a conversa de Paulo e Manuel rondasse essas mesmas questões e buscasse as mesmas respostas. 

    Antes que alguém pudesse fazer outro comentário, os três escutaram passos adentrando o laboratório. Saltos altos, o som era inconfundível. A cientista entrou na sala, imponente, da mesma forma que Tomás se lembrava de vê-la no Centro de Pesquisas incendiado. Ela olhou para os três rapazes e sorriu. Um sorriso meramente social, mas que não deixava de ser bonito por isso. O garoto percebeu que a doutora se destacava, como se de alguma forma ela fosse um ponto de luz em meio ao clima frio das instalações do doutor Paulo. 

    — Olá, queridos, como vão? — ela os cumprimentou. 

    — Bem, sim, senhora — Lucas respondeu pelos três. 

    — Andréia! — Paulo exclamou do outro lado do laboratório, caminhando em direção a colega com os braços abertos. 

    — Este lugar está uma bagunça, Paulo. — Ela o abraçou, esbanjando o seu charme. Depois, cumprimentou Manuel, que seguia seu chefe como um animal de estimação. — Comandante? 

    — É um prazer revê-la, doutora — Manuel gastava o que tinha de educação quando estava com seus superiores, Tomás já havia percebido, e sempre deixava para o momento das missões o seu lado mais brutal. 

    — Ainda falta muito o que arrumar aqui — esclareceu Paulo. —, mas não tardará em voltarmos a nossa rotina de pesquisas, eu te garanto. 

    A mulher estudou o laboratório a sua volta de cima a baixo, rodando em seu próprio eixo. Era noite, e os engenheiros e trabalhadores de construção descansavam, porém aquele lugar se enchia de pessoas e sons durante o dia, todos empenhados na tarefa de concluir o edifício o mais rápido possível. 

    — Bom, se não estamos aqui para trabalhar… Qual o motivo da reunião? — ela quis saber. — Onde estão os outros pesquisadores? 

    — Chegarão amanhã. 

    Andréia fitou o parceiro com as rugas de dúvida a saltar na testa. 

    — Amanhã? Achei que a reunião fosse urgente. 

    Paulo riu, andando pelo espaço em volta da mulher, como se a rondasse. Não tardou em desatar a falar: 

    —  Por causa daquele monte de criança que se acha mais inteligente que todo um time de cientistas, esse lugar foi a única coisa que nos restou… que me restou. Você pode até não entender, minha amiga, pode até achar que eu não precisaria estar aqui agora, tendo que conviver no meio de um prédio ainda em construção, mas o Projeto Gênesis é o meu lar. — Ele parou, depois de dar uma volta completa em torno dela. — Então você deve imaginar o quanto o que aconteceu ontem me feriu, não é? 

    Algo mudava no clima do laboratório, o ar aos poucos se condensando. Tomás conseguia sentir o ódio por trás das palavras do pesquisador, e Andréia também. 

    — Ontem? — O rosto ainda carregado de confusão. — Se refere ao incidente na missão de extermínio? Ouvi boatos do que aconteceu… Então realmente há um grupo de soldados desertores? 

    Paulo balançou a cabeça afirmativamente. 

    — Fiquei tão surpreso quanto você. — Ele caminhou até um painel de controle e, então, apertou algum botão entre os inúmeros dispostos ali. Sem demora, uma das paredes começou a se erguer, revelando um espaço oculto. — Olhe isto — disse, com certo entusiasmo. 

    Do outro lado, enormes tubos de vidro guardavam um líquido azulado, de aparência estranha, fluorescente. Eram vários, a maioria ainda em desuso, contudo seis deles já cumpriam com a tarefa para os quais tinham sido construídos. No primeiro tubo, Letícia flutuava, inerte e bem conservada, mesmo após quase dois meses de sua morte. Tomás viu Lucas se enrijecer ao seu lado, a mandíbula travada e os dedos comprimidos, pego desprevenido com a visão de sua namorada. Também estava ali Mônica, por quem ele sabia ser extremamente culpado pela morte. Tinha aceitado servir de isca para o grupo dos amigos de Léo. Haviam confiado na sua redenção, na sua boa intenção… no seu caráter. Diante da visão da menina-morcego, refletiu se aquele tinha sido o momento em que se tornara impossível deixar de lado as ordens de Manuel e se juntar aos jovens fugitivos. Concluiu que sim. Fizera sua escolha; e mesmo sabendo que era a melhor opção para sobreviver, um buraco tinha sido criado no seu espírito desde então.

    Recém-colocados, Matheus, Élida e Guilherme dormiam o sono eterno de forma esplendorosa, como se finalmente a paz tivesse chegado para eles. No entanto, o que mais lhe doía encarar era o segundo tubo, no qual seu melhor amigo, Tiago, encontrava-se mergulhado.  Como se não tivesse passado nenhum dia, conseguia se lembrar da sua morte com extrema definição. Recordava-se da sua revolta diante da obrigação de procurar os adaptados fugitivos, de tentar usar os seus poderes contra o Doutor Paulo — os tentáculos saindo de sua costas como grandes serpentes —, e, por fim, do tiro fatal saído das mãos de Manuel. 

    Definitivamente, não queria terminar daquele jeito. Não podia acabar como um feto do laboratório de ciências, em conserva feito um bando de azeitonas. O medo de morrer era o que mantinha a sua vida. Precisava aprender a lidar com o buraco criado a partir das suas escolhas, precisava ser forte. 

    — É lindo, não? — Paulo perguntou, admirando pela milésima vez os suas cobaias empalhadas. Esperou por uma resposta de Andréia, mas a pesquisadora se ateve a observar os tubos, sem se deixar impressionar. — Você não imagina quanta coisa eu consegui aprender nessas últimas semanas. Com eles assim, fiz diversos avanços nas nossas produções, alcancei um nível de detalhamento genético que antes seria impossível! 

    — E o que isso significa? — ela foi prática. — Quais melhoramentos você conseguiu? 

    Paulo parecia absorto na visão dos tubos; não fez questão de respondê-la. 

    — Queria que você visse como é lindo tudo isso. Quietinhos, sem questionar nenhuma das nossas regras, sem tentar fugir, nem destruir as nossas instalações. 

    — Sem podermos vislumbrar a evolução de seus poderes também, sem nunca chegar ao máximo que eles chegariam — ela se contrapôs. — Nem tudo são flores. 

    — Nem tudo são flores… — Paulo concordou. Fez-se um instante de completo silêncio. Tomás sentiu a tensão emanando dos poros do cientista, como se aos poucos ele estivesse liberando algo que estava guardado. — Sabe, ontem, depois do incidente com os soldados traidores, fiquei pensando, pensando… Fazia tempo que não aparecia uma coisa capaz de me tirar o sono assim. Foi um alívio muito grande quando eu finalmente consegui ver luz no fim do túnel. Eureca! — Ele riu e Andréia sorriu de volta. — Apenas dois soldados tinham a informação do paradeiro dos adaptados: o que estava responsável por vigiar o segurança de Lúcio Sonnenberg, que trouxe a informação até mim, e o que estava encubido de vigiar a porta dos Casteliori. Curiosamente, o segundo não apareceu para me informar nada, apesar de ter retornado para cá. 

    Paulo, não se importando se estava sendo claro, apertou outro botão no painel de controle. Um vídeo começou a passar na imensa tela. Havia um homem amarrado em uma cadeira, o rosto irreconhecível debaixo dos inúmeros ferimentos e do sangue que escorria para a sua roupa — o uniforme típico dos soldados do Projeto. A cabeça tombava para os lados, como se se encontrasse no limite de suas forças; a dor quase o fazendo desmaiar. Tomás percebeu que Paulo assistia ao vídeo como uma criança acompanhando um desenho animado. 

    — Quem tá por trás do ataque? — a voz de Manuel apareceu no vídeo. Tomás fitou o comandante, que também apreciava a tela com o peito cheio de orgulho. 

    Manuel caminhou até o homem ensanguentado com um alicate em mãos. Posicionou o instrumento no local desejado, na ponta de uma das falanges, e então torceu com o máximo de força e o mínimo de piedade. O homem urrou de dor, ao passo que o comandante repetiu a pergunta: 

    — Quem está por trás do ataque?! 

    — A Doutora Andréia! — o homem confessou em meio à saliva, sangue, grito e choro. — Ela… Foi ela… junto com… 

    Mutilado, o homem pareceu se entregar momentaneamente para a dor, adormecendo de vez. Manuel, entretanto, bofeteou o seu rosto para que retornasse à consciência. Pareceu funcionar. 

    — Junto com…? Anda! Fala! 

    — Com o Doutor Fernando… 

    Paulo encerrou o vídeo e encarou a sua colega com um sorriso que beirava a insanidade. Ódio e prazer ocupando o mesmo rosto. Tudo aquilo não passava de uma armadilha, Tomás entendeu. 

    — Os momentos finais não são tão bonitos, vou poupá-la de ter que assistir — zombou, dando alguns passos em direção a mulher. Andréia repetiu os passos na direção oposta, afastando-se com os olhos já arregalados. — Logo você, Andréia? Até tu? 

    — Você está fora de controle, Paulo — Andréia entregou as fichas. — Alguém precisa te parar antes que seja tarde. O Projeto Gênesis não é seu! 

    — E então quer dizer que o Fernando está vivo! Que bela notícia, não? — Como um ser peçonhento, ele preparava o bote. 

    De repente, Andréia saiu em disparada em direção a saída do laboratório; a face mostrando saber o que poderia acontecer caso teimasse em ficar ali. O salto alto a atrapalhava na tarefa de ganhar velocidade, os calcanhares ameaçando torcer a qualquer instante. 

    Paulo apreciou a fuga por alguns segundos. Como um monstro que se alimentava de medo, deixou que a colega tomasse distância o bastante para ganhar confiança, esperança de que sairia ilesa daquela traição. 

    — Lucas — ele chamou, depois de um tempo. 

    Lucas entendeu imediatamente o que o geneticista queria, e sem pestanejar se colocou a correr atrás da mulher. Não demorou para se transmutar na besta canídea. Três vezes mais corpulento que sua vítima, o lobisomem a alcançou antes que ela transpassasse a porta. Andréia gritou por misericórdia, porém era tarde demais. O lobo a jogou no chão, se colocou sobre ela — a mão-pata sobre o seu tronco, paralisando-a por inteira —, e então abocanhou o primeiro pedaço de sua carne. Tomás se arrepiou, enquanto os gritos se intensificaram, ganhando notas de dor. 

    Até que as dentadas do animal alcançaram a garganta e os berros cessaram de forma abrupta. Andréia não estava mais ali. 

    — Manuel, arranje alguém para limpar essa bagunça — Paulo ordenou, enquanto começava a sair. O show tinha acabado para ele. 

    O comandante o acompanhou, enquanto falava: 

    — Sim, senhor. Também vou providenciar uma missão urgente para capturar o Doutor Fernando e os mutantes. 

    — De jeito nenhum! — ele bradou. — Não entendeu nada, soldado? Só há um motivo para Andréia e Fernando estarem acobertando essas pestinhas. Estão preparando um ataque. Querem o meu Centro de Pesquisas. Querem tomar o meu lugar. — Os olhos pareciam que iriam saltar enquanto constatava os fatos. Voltou a andar. — Deixem que tentem! Vamos esperá-los aqui. 

    E em um piscar de olhos, todo o alvoroço se dissipou no ar, ficando para trás apenas os três garotos e um corpo dilacerado a empoçar sangue no chão. A tensão morrendo à medida que corpo se acomodava no piso. 

    — Caralho… — João deixou escapar. — O que foi isso? 

    Lucas se aproximou outra vez, já voltando a sua versão humana. 

    — Ela teve o que merecia — falou, limpando a boca. — É o que todos os traidores merecem. 

    O rapaz se voltou para os tubos de conservação uma outra vez, encarando a sua namorada, alimentando-se do sentimento de ódio que o motivava desde sua morte. Se aproximou dela, em uma conversa muda; Tomás e João se mantiveram calados. 

    Haviam muitas perguntas a serem respondidas, que Tomás sentia vagarem sem rumo certo em sua cabeça. Quem era Fernando? Não se lembrava de encontrar nenhum pesquisador com esse nome. Não, ao menos, do alto escalão do Projeto. 

    — Se isso tudo for verdade — ele resolveu expressar um pouco das suas dúvidas. — Não tão curiosos para saber o porquê dos adaptados fugitivos tarem ajudando os cientistas e os soldados? 

    Lucas grunhiu. 

    — Eu quero que se dane os motivos deles! Não importa pra mim, só quero que aqueles imbecis tenham uma morte lenta no final de tudo isso! Que estejam todos aqui. — Apontou para os tubos. — Todos! 

    Era contraproducente dialogar com Lucas, ele concluiu. O menino-lobo, por algum motivo, era consumido por suas emoções de uma forma incomum, o que o impedia de ver o que acontecia diante de seus olhos. João, por sua vez, era um capacho do melhor amigo e seguiria o que Lucas decidisse sem questionar. Definitivamente, não valia a pena gastar a sua saliva. 

    — Eu só espero que depois que todos eles estiverem mortos aí dentro, não sobre três tubos vazios pra gente — ele disse, enquanto se virava e ia para os dormitórios.

    Não deu atenção para os resmungos furiosos que Lucas emitia. Evitou olhar para os restos da pesquisadora enquanto passava, tentando manter na memória algo além de estranhos pedaços de carne: a visão da mulher bonita e sorridente que, há poucos minutos, tinha entrado naquele covil. Estava com sono, no entanto tinha certeza de que não conseguiria pregar os olhos naquela noite. 

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