Cobaia final

    Era inegável que estava sendo tragado pela ansiedade do grande momento. Parecia até um jovem prestes a encontrar o seu primeiro amor, com a respiração alterada e o coração palpitante. Os pés iam e voltavam no centro da sala, formando um círculo incansavelmente. Os braços jogados para trás, com as mãos entrelaçadas sobre o quadril, e a cabeça baixa, repassando de forma infindável os passos que precisavam ser dados dali para frente. 

    Manuel assistia aos movimentos do chefe sem proferir nenhuma palavra, certo de que qualquer coisa que fosse dita poderia elevar os nervos do pesquisador. Era um instante decisivo para quem não podia mais errar; uma noite que poderia definir os vencedores daquele jogo de poder. 

    Paulo Ricardo só parou quando finalmente escutou os passos vindo dos corredores escuros. Endireitou a postura e deixou que a face voltasse ao seu habitual tom de ironia, superioridade e arrogância. E quando o garoto apareceu diante de seus olhos, não havia mais nenhum indício da ansiedade que deixava transparecer segundos antes; qualquer demonstração de fraqueza seria capaz de nutrir a vitória de seus inimigos, ele tinha certeza disso. 

    — Me chamaram? — perguntou João, meio sem jeito diante dos dois homens. 

    O cientista analisou o jovem de cima a baixo. Era evidente que era o elo mais fraco entre os três adaptados que permaneciam do lado do Projeto. Apesar dos belos poderes, João não chegava aos pés de ter a força brutal de seu amigo, Lucas, muito menos a perspicácia do outro membro, Tomás. No entanto, era mais do que suficiente para o que Paulo queria. 

    Sorrindo, o geneticista respondeu: 

    — Sim, meu rapaz, te chamei. Se aproxime mais, por favor. Precisamos conversar. 

    João deu o primeiro passo, no entanto o segundo foi travado. Olhou em volta, como se lembrasse de algo importante. 

    — E os outros? — questionou. — Cadê o Lucas e o Tomás? 

    — Não estão aqui — disse de maneira seca, mas não tardou em complementar a fala com mais sorrisos e palavras cordiais. — Nossa conversa é em particular hoje. Sei que já está anoitecendo, mas garanto que é algo que não podemos esperar. 

    Fisgado pela curiosidade, João não mais exitou em se aproximar do doutor. Manuel, no seu canto, continuou na tarefa de ser espectador. Com o chefe sendo capaz de domar a situação com rédeas firmes, restava ao comandante apenas assistir ao show. 

    — Acho que nunca conversamos direito, né? — Paulo disse, enquanto apontava uma cadeira para que o menino se acomodasse. João respondeu a pergunta com um aceno negativo e se sentou. — Há tantas coisas a se fazer dentro desta pesquisa, que é difícil arranjar um tempo para conhecer melhor as peças mais importantes dela: vocês. Não é falta de interesse, espero que entenda a minha situação. 

    O cientista riu, fingindo estar envergonhado, e João deixou transparecer os fios metálicos nos dentes, entregando-se às palavras amigáveis do homem. 

    — Entendemos sim, senhor. 

    — Que bom, isso com certeza me deixa mais… aliviado. Mas saiba que não é porque não converso diretamente com vocês, que não estou a par da evolução que cada um está alcançando em campo de batalha, nem do aprimoramento constante de suas adaptações. Tenho acesso aos relatórios feitos pelo comandante Manuel e posso garantir que estou muito satisfeito com o que recebo. — Paulo analisou o efeito das palavras sobre o garoto, que aos poucos deixava a barreiras de lado e se sentia à vontade na conversa. — Sente essa evolução? 

    Refletindo, João demorou alguns segundos para chegar a sua conclusão: 

    — Posso dizer que sim, senhor. No começo era difícil lidar com a calda de escorpião, ela parecia uma mão sem coordenação motora. Hoje em dia, nem mesmo me lembro de qual era a sensação de não conseguir controlar, faço todos os movimentos, atinjo qualquer alvo que tiver a meu alcance! 

    — Excelente! — O pesquisador se deixou levar pela animação ingênua do menino. Era como uma dança, na qual o segredo era não ir contra a corrente de vento para que ela o levasse onde queria. Estava quase lá. — Sabe, sempre digo para o comandante que vejo em você o melhor que o Projeto Gênesis poderia criar. 

    — Sério? 

    — Sim! Mais que em seus amigos, até. Não conte isso a eles, ficarão chateados. — Riu, satisfeito com o brilho de orgulho que despertava nos olhos de João. — Sei que sua situação com sua família não era das melhores quando te encontramos, fiquei sabendo das marcas… Não deve ter sido fácil aguentar aquilo por tantos anos sem fazer nada, né? — Os olhos do menino, de repente, perderam totalmente o brilho e o corpo se encolheu na cadeira. — Mas o seu passado te moldou, e hoje você tem força, tem determinação e não foge das suas obrigações como parte integrante dessa equipe. É o soldado perfeito! 

    — Obrigado, senhor, tô muito feliz. 

    — E é por isso que te chamei aqui hoje. — Com o terreno preparado, estava na hora de ir direto ao ponto. — Tenho uma tarefa pra você, meu rapaz, de extrema importância. 

    O doutor ligou o imenso monitor de sua sala, deixando que imagens aéreas de uma grande área verde fossem exibidas, gravadas de um satélite. 

    — Estamos aqui. — Ele apontou para uma mancha acinzentada escondida em meio a vegetação, e depois apontou para uma pequena região onde as árvores rareavam e dava espaço para o capim. — E aqui estão nossos inimigos, perto o bastante para alcançarem as nossas instalações em menos de vinte e quatro horas. Precisamos impedi-los antes que seja tarde demais, destruir as chances de chegarem aqui bem organizados. 

    A face de João foi tomada pelo medo, ao passo que a cabeça formulava a próxima dúvida:  

    — Mas sozinho? — Vasculhou novamente os corredores, como se esperasse que Lucas e Tomás fossem aparecer a qualquer instante. — Acha que consigo derrotar todos eles sozinho, senhor? 

    — Sim! Não estaria nessa reunião se não acreditasse nas suas habilidades — mentiu. — Porém você não estará sozinho. 

    De maneira misteriosa, o homem andou até sumir da visão do garoto, deixando para trás um silêncio inquebrantável. João manteve-se imóvel, fitando vez ou outra o comandante, que mais parecia uma estátua dentro daquele lugar. Apenas depois que o rapaz tinha fantasiado dezenas de significados para as palavras do geneticista, foi que ele retornou; os passos tão despreocupados quanto na ida. 

    — Você terá isto em suas mãos — Doutor Paulo concluiu, entregando-lhe uma caneta injetora com uma solução de cor avermelhada a dançar no interior do invólucro. O garoto a pegou com a expressão abarrotada de novas questões. — Trabalhei os últimos dias nessa substância, aprimorando-a. O que você agora tem em mãos é o Efetuador de Adaptação Constante. Já usamos em outros colegas seus antes, durante os testes do Centro de Pesquisa, no entanto agora temos uma versão ainda mais eficaz do produto, capaz de torná-lo imbatível. — Os olhos de João se arregalaram e irradiaram o brilho de empolgação. — Ele irá te ajudar na tarefa de hoje, fortalecendo a sua adaptação. 

    Segurando o frasco com maior propriedade, o menino-escorpião conseguiu esboçar um breve sorriso de contentamento. Com o ego inflando diante da missão nobre e da confiança depositava sobre suas costas, perguntou: 

    — E o que eu tenho que fazer? 

    — É simples. Se certifique que ninguém daquele acampamento, seja adaptado ou não, tenha condições de chegar até nosso lar. Mate todos se for preciso. — O garoto concordou sem exitar; um sinal de que, para a felicidade do pesquisador, iria até o fim sem fazer mais nenhum questionamento. — Agora vá se preparar. Sairá daqui a pouco, após Manuel te passar os detalhes da ação. 

    Com um gesto concordante quase militar — apossando-se da pose que acreditava ser sua por direito a partir daquele momento —, João partiu de volta para os corredores escuros, dando espaço para que finalmente Doutor Paulo pudesse esboçar o seu riso de satisfação. 

    Precisava saber na prática os resultados das melhorias feitas no Efetuador de Adaptação Constante e não existia outra forma de descobrir senão entregando a substância a um de seus adaptados. Os resultados poderiam ser surpreendentes, mas nada garantia que a dose acabasse por ser letal a seres humanos. De qualquer forma, fosse o que fosse, João era a peça que menos doía sacrificar. Não acreditava que o rapaz teria forças o bastante para vencer todo um batalhão de ataque, com adaptados e soldados desertores do Projeto, porém qualquer dano causado a seus inimigos seria bem-vindo. 

    O cientista fitou seu comandante e com uma erguida de queixo ordenou que o homem seguisse o garoto e terminasse de aprontá-lo para o experimento final. Manuel obedeceu prontamente, saindo de seu estado de inércia e partindo pelo mesmo corredor de João. Estava feito. Não restava nada mais a não ser esperar, assistir e analisar os resultados de sua última e mais importante pesquisa. Ampliou a imagem em seu monitor, focando-a no acampamento dos invasores: o palco do espetáculo. 

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