Cicatrizes e feridas

Das tantas realidades que sonhou um dia vivenciar ao vencer o Projeto, jamais passara por sua cabeça que seria ele que marcaria o fim de Amélia. Macerado, ele se apressou, enquanto a cena do ataque rodava diante da sua vista feito um filme em loop. A garota caída com o uniforme rasgado, o ventre mortalmente ferido, a carne viva e sanguinolenta contrastando com o tom fantasmagórico que se apossava da pele... Ainda via tudo com nitidez. Acostumara-se de tal forma a receber más notícias, que os músculos, numa espécie de rigor sedativo, preparava seu corpo para o pior dos piores instantes. Apesar disso, seguiu se aproximando da roda de adaptados e blacks. Abriram caminho para que passasse e ele entrou, ansioso, ignorando os olhares velhacos diante do grande animal e evitando encontrar nos rostos amigos a notícia inevitável. Apenas um milagre poderia poupá-lo naquela altura.

Por isso, ao vê-la viva, com os olhos ainda abertos e a respiração contínua, teve certeza de que o universo estava sendo bom demais para ele. Depois de tudo, aquilo era muito mais do que mereceria. Ele correu aos tropeços; um passo engolindo o outro. Precisava vê-la de pertinho, de uma distância que não ficasse dúvidas de que não admirava uma miragem, nem uma representação dos seus desejos mais profundos.

— Léo... — ela o chamou, erguendo a mão e acariciando o pelo. Como pudera duvidar de que ela era seu verdadeiro amor?

Embora viva, a palidez persistia. O toque gelado de seus dedos também era alarmante. Ele deitou ao seu lado, de modo a acolhê-la com seu calor. Se pudesse chorar, teria feito naquele momento.

— Afastem-se! — exclamou uma voz grave e imperativa.

Léo se assustou ao reconhecê-la. Jurava, por tudo que havia de mais sagrado, que se lembrava bem de ter abocanhado o braço do Comandante Amir e o deixado no chão, a minar o sangue incontrolavelmente. Mas não. O homem estava ali, de pé e exprimindo a mesma força de antes da batalha. A ausência do braço era o que não deixava o felino duvidar da sua sanidade. Apesar disso, o ferimento estava fechado e sadio. E, antes que ele pudesse criar teorias mirabolantes acerca do comandante, a resposta surgiu-lhe na forma de uma menina pequenina, magra e debilitada.

— Clara? — foi Amélia quem perguntou. — O que cê tá fazendo aqui?

Clara se aproximou devagar, balançando a cabeça em negação. Vestia a mesma camisola hospitalar que ele a vira usar na última vez que a tinha visitado, no leito do hospital, após ser baleada na última emboscada feita por Manuel e seus homens.

— Não se preocupe comigo — disse convicta. Se ajoelhou ao lado da amiga, disposta a não perder tempo.

— Como não!? — Amélia se sobressaltou, o que fez o ferimento expelir mais sangue. — Olha pra você! Não devia estar aqui!

Clara ignorou o sermão, começando a analisar o corte profundo. De todo modo, Amélia não deixava de ter razão; a curandeira estava murcha como as flores de um cemitério. Léo não saberia dizer qual das duas se encontrava mais pálida.

— Devia tá repousando — Amelia prosseguiu. — Cê só tá viva graças aos seus poderes, então precisa deixar que eles trabalhem pra te salvar!

Fora isso que a Doutora Andréia tinha informado, ele se recordou.

— Neste momento eu tô melhor que você.

— Ela insistiu em vir — declarou Márcia, prostrada em meio a roda de espectadores. — Meu plano era vir sozinha, mas ela é muito cabeça-dura e só me deixou sair se ela viesse comigo.

Amélia fez um gesto de objeção. Fitava a amiga com toda a indignação que podia demonstrar, como uma mãe que repreende o filho. Clara, por outro lado, não deu moral; seu foco estava na ferida e no fluxo preocupante que vertia dela.

— Por pouco não acertou um vaso importante, mas cê vai morrer se continuar sangrando.

O felino sentiu o coração parar ante o diagnóstico.

— Tem sangue no seu nariz, Clara. — Amélia tentou se levantar, fazendo com que o sangue coagulado saísse do lugar, dando nova força pra vazão.

Clara a impediu no mesmo instante.

— Não se mexa! — Limpou o filete que brotava do nariz e escorria, sinuoso, pelo canto da boca.

— Quantas vezes já usou os seus poderes aqui? — Amélia quis saber. Aguardou por uma resposta, porém Clara voltou à sua concentração novamente. Léo observou ao redor o aglomerado de soldados, se perguntando quantos deles, além do Comandante, Clara havia salvado naquele meio-tempo. — Desse jeito você não vai aguentar! Precisa repousar.

— Eu não vou deixar você morrer!

— E eu não vou deixar que você se mate! — Mais líquido escarlate extravasou do rasgo. Amélia sentiu a pressão cair; a cabeça tombando para o lado com a consciência lutando para se manter.

Léo sabia que Amélia não teria energia para continuar naquele impasse, contudo conseguia ver em seus olhos uma consternação que ele só havia presenciado uma única vez: no assassinato de sua família. Ele a conhecia bem o suficiente para saber que Clara era a pessoa mais importante que havia restado no mundo. Mas assim como Amélia se sentia no dever de proteger o único membro vivo da sua família, Clara se encontrava na mesmíssima situação. No fim das contas, elas tinham somente uma a outra.

— Três vezes — disse Clara. Os olhos estavam marejados. — Cê já salvou minha vida três vezes, Amélia. Eu sempre vou ser grata por isso. Essa é a chance d'eu pagar um pouco dessa dívida que eu sinto que tenho com você. — Meio trôpega, Amélia balançava a cabeça em negação. — Eu já tomei minha decisão. Eu... Eu te amo muito pra não fazer isso.

Sem esperar por outra torrente de resmungos da amiga, Clara posicionou as mãos sobre o largo ferimento e ativou sua adaptação. O brilho azulado que emanava de seus dedos era sempre uma visão etérea, como a luz de uma lua cheia; constante, suave e amenizadora. Havia junto à luz um leve calor, quente apenas o necessário para trazer um conforto que Léo só conseguia comparar à paz de um banho aquecido. Independentemente do bem-estar, Amélia continuava preenchida por sua indignação; chorava um choro contido e de olhos fechados, sabendo que era inútil protestar.

Léo só compreendeu a gravidade do ferimento quando notou o quão demorado seria o processo de cura. No primeiro minuto, o fluxo de sangue foi aos poucos se rareando, até que estancou por completo. Depois demorou um bom tempo para que ele conseguisse visualizar algum outro tipo de melhora. Isso porque os ferimentos internos precisavam de calma para se fecharem. Eram estruturas nobres, que num hospital demorariam semanas para completarem a cicatrização. Ali, longe de qualquer civilização, embrenhados numa reserva de Cerrado aos pés de uma serra de difícil acesso, dispondo apenas dos recursos de um Centro de Pesquisas que cheirava a tinta fresca e cimento úmido, ele entendeu que Clara não estava exagerando. Amélia se encontrava por um fio.

Cansada, a curadora forçou seus poderes, que já não tinham mais o mesmo vigor de outras ocasiões. Os músculos e tendões superficiais começaram, então, a se fechar após longos minutos de esforço. Sentindo o alívio aumentar a cada milímetro de pele que se fechava naquela sutura mágica, Léo encarou o círculo de pessoas ao redor e parou para observar pela primeira vez o estado dos demais amigos. Graziela tinha conseguido se manter com poucos arranhões durante a batalha. Os maiores rasgos estavam em seu uniforme, que havia perdido parte de uma das pernas. Sandro tinha sofrido um golpe contundente na cabeça; o sangue, felizmente, já estava seco sobre sua face, mas os cabelos pregados e endurecidos denunciavam que tinha sido um sangramento considerável. Ao seu lado, Alex estava praticamente nu, porém os inúmeros cortes na pele — que a fera havia produzido — já não faziam mais parte do seu físico. Mais uma benfeitoria de Clara, concluiu Léo. Do outro lado, próximo a um Comandante Amir que inspecionava minuciosamente o cotoco do braço e buscava lidar, incrédulo, com a sensação de ter um membro fantasma, Janaína acompanhava tudo com uma feição assustada. Parecia traumatizada, ainda em estado de alerta, revivendo diante dos olhos vagos as cenas de horror. Não seria fácil esquecer com as vítimas ainda expostas pátio a fora. Ao seu lado estava Márcia, a anjinha a quem Léo devia uma imensidão de agradecimentos. Não fosse pela sua chegada, Lucas teria conseguido executar o ataque final e tudo teria sido diferente. Onde estavam Pedro e Camila?

O odor de sangue fresco saltou diante de seu olfato antes que pudesse procurar o casal de amigos entre os rostos desconhecidos dos blacks. Ainda com seus instintos apurados de felino, ele acompanhou com o olhar o caminho até a origem: o nariz de Clara. O filete carmesim que antes sequer tinha potência para cruzar o queixo por inteiro da menina, agora gotejava, fluindo pelas duas narinas. Clara se perdurava na tarefa, ignorando as prováveis dores que sentia. O brilho de suas mãos permanecia aceso e intenso, e a pele do abdômen de Amélia, restaurada quase por completo, deixava para trás apenas a memória do ferimento grave na forma de uma cicatriz.

Amélia inspirou profundamente o ar. Permaneceu de olhos fechados, enquanto a dor, acompanhando os machucados que cicatrizavam, tornava-se meramente uma lembrança ruim. Ela soltou o ar, desafogada. Após tanto sofrimento, a presença do nada era uma das sensações mais gostosas que existiam. Só voltou a abrir os olhos quando sentiu o peso da amiga sobre si.

— Clara!

Num sobressalto, ela se ergueu e apoiou a cabeça de Clara em seu colo. Léo também levantou o grande corpo, notando que a pobre garota agora possuíam assustadores olhos revirados nas órbitas, brancos como marfim. As veias a mostra marcavam seu pescoço e testa, numa hipertonia que a fazia contorcer as mãos. A língua dava voltas em si mesma, ganhando novas conformações e alçando voo no céu da boca. Os pés começaram a se debater violentamente.

— Alguém me ajuda! — Amélia pediu, sendo prontamente socorrida por Grazi.

Léo se manteve perto, afoito para poder fazer alguma coisa, mas precisou acompanhar a difícil tarefa de imobilização sem poder interferir. Tudo que não ajudaria naquele momento era um animal gigantesco e fedorento.

O tempo passava veloz, e os espasmos não só persistiam como se intensificavam a cada segundo.

— Ela não tá respirando — Grazi notificou.

Amélia gritou, em prantos. Uma angústia atroz a invadiu ao perceber que não havia nada que pudesse fazer.

— Clara! Por favor! Não!

O felino miou, choroso, assistindo impotente e compartilhando do mesmo sofrimento que Amélia. Era desolador perceber que, naquele estado, sem o olhar decidido que sempre exibia, vestindo a camisola hospitalar que em nada se parecia com seus belos vestidos florais, a fragilidade de Clara ficava ainda mais evidente. Seu corpo até poderia se curar com maior velocidade, mas ela não deixava de ser um corpo com necessidades comuns. E tempo era uma preciosidade que não se podia ganhar com poderes e pesquisas científicas. Clara conhecia as próprias limitações — ele tinha certeza e sabia que Amélia também —, mas estivera disposta a ir até o fim mesmo assim. Para ela, a vida de Amélia era uma boa escolha a ser feita; diria até que um final feliz.

Os espasmos cessaram, mas não antes de trazerem consigo a certeza de que ela não estava mais ali. Seu pequeno corpo se acalmou, os olhos enfim se fecharam e a cabeça pendeu para o lado. Inconsolável, Amélia a abraçou, apertando-a contra seu tronco recém-curado. Deu um beijo em sua testa e ajeitou o cabelo, colocando as mechas nos lugares que ela recordava serem suas posições acertadas. Se pudesse devolver um pouco da sua saúde à dona, Léo sabia que ela faria sem pensar duas vezes.

— Eu também te amo — ela sussurrou. — Eu prometo que nunca vou te esquecer.

O que estava ao seu alcance no momento era cumprir com o último desejo de Clara: viver. E viver implicava em sentir toda aquela dor.

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