Campo minado

    – Quem mais vai? 

    — Bom… — Léo refletiu. — Acho que quatro pessoas é o suficiente. 

    Sandro concordou: 

    — Certo. Talvez o Alex seja uma boa opção. 

    — Não — Léo mais que depressa se opôs. Rápido o bastante para que Sandro arqueasse uma das sobrancelhas, curioso. 

    O garoto de luvas fitou o amigo, enquanto Léo se xingava por dentro por ter sido tão impulsivo.

    — Algum problema? — Sandro enfim perguntou. 

    — Não, claro que não — tentou reverter a situação. — Acho que o Pedro deve ir nessa missão de hoje, ele ainda não participou de nenhuma. 

    Sandro olhou para as pessoas no pátio, havia mais gente do que naquela manhã, quase todo mundo aproveitava a tarde de sol, que, embora quente, mantinha  temperaturas amenas devido à umidade. Um grupinho tinha se formado debaixo de uma das árvores, longe demais para que pudessem ouvir o que falavam. Um pouco mais perto, para a infelicidade dos nervos aflorados de Léo, Alex e Amélia continuavam a prosear, sorridentes, acompanhados de Clara. Pedro, por sua vez, havia finalmente largado os gravetos, contudo permanecia aproveitando apenas a própria companhia, sentado em alguns degraus de concreto, que, forrados de musgo e ervas daninhas, mais se assemelhavam a poltronas felpudas. 

    — O Pedro? — indagou Sandro, com evidente descrença. — Pensei que a ordem era deixar ele quieto por enquanto. Cêis…? 

    — Já conversamos? Não, ainda não. — Suspirou, imitando as tantas outras vezes em que aquele assunto era tocado. — Mas tá na hora já. Não podemos ficar postergando essa conversa por muito mais tempo. 

    Por algum motivo, Léo esperava que Sandro fosse aconselhá-lo do contrário. Estava pronto para ouvir mais algumas das frases de efeito do amigo, que sempre vinham em excelente hora, dizendo para que aguardasse as coisas se aquietarem por mais alguns dias. Contudo, o que se seguiu do garoto moreno foi um olhar condescendente e um gesto parcialmente concordante com a cabeça. Talvez, Léo refletiu, ele soubesse que suas palavras não surtiriam nenhum efeito ou tivesse enfim desistido de dar sempre o mesmo concelho. Não importava muito, todavia. A decisão estava tomada e Léo guardava consigo um arsenal de argumentos para usar caso Sandro se contrapusesse. 

    Léo se levantou, economizando suas armas políticas para a próxima vez que precisasse, o que sabia que não demoraria muito a chegar. 

    — Então vamos lá, né? — Encarou Pedro. — Tirar de uma vez o curativo. 

    — Boa sorte. Não fala nenhuma merda, por favor — ouviu Sandro pedir, entretanto sua atenção já se voltava completa para o outro rapaz. 

    Léo caminhou pelo pátio sentindo a tensão se espessar a medida que se aproximava de Pedro. Os passos eram mansos, cautelosos como se o piso de concreto guardasse grandes minas, que explodiriam diante de qualquer menção de pressa. Ele era capaz de sentir a curiosidade nos olhares, podia imaginar os comentários sutis dos outros adaptados, enquanto o seu caminhar se tornava o centro das atenções. Não precisava ver Amélia para saber que estava a reprovar com veemência a sua decisão. 

    Não demorou muito para que Pedro também percebesse a sua aproximação. O comportamento rapidamente mudou, o corpo se ajeitou sobre os degraus, a feição branda  ganhou um ar mais fechado. Estava entrando na defensiva, Léo percebeu. O olhar, contudo, permaneceu baixo, evitando ao máximo encontrar o loiro em seu campo de visão. 

    Léo parou, deixando uma distância estratégica entre os dois. Doía ver o amigo amargurado daquela forma, queria abraçá-lo e apoiá-lo; ver o riso escancarado e as piadas imbecis uma outra vez. Queria o seu perdão. Porém conteve-se. As minas não haviam acabado e qualquer ação errada, até mesmo uma palavra mal dita, poderia custar muito. 

    O medo, então, deu vez a um silêncio constrangedor. Crescendo… Ganhando forma... Criando vida… Até se tornar insustentável. 

    — O que foi? — Pedro perguntou; a voz espinhosa. 

    — É… Bem… — Limpou a garganta. — Precisamos da sua ajuda hoje, na próxima missão.  

    Ele refletiu por um instante mínimo. 

    — Tudo bem — respondeu com um tom amigável, como se quisesse deixar claro que estava aberto a ajudar no que fosse preciso. Porém, a expressão se enrugou em uma carranca logo depois; não queria mais conversa. 

    Meio sem jeito, Léo ficou parado no mesmo lugar a contar os segundos. As palavras vinham a boca, porém, ariscas, corriam para longe, se amarravam aos dentes em um greve de silêncio e escorregavam garganta adentro para nunca mais serem ouvidas. No fundo, questionava-se do porquê era tão sem jeito com as pessoas, porquê de não conseguir se expressar ou se relacionar bem com nenhum daqueles que tanto amava.  

    — Mais alguma coisa? — mais uma vez, Pedro fez as honras. 

    — É só que… — Sentiu a trégua das palavras. — Eu acho que a gente precisa conversar… 

    — A gente já conversou.  

    — Conversar direito sobre o que aconteceu. — O corpo de Pedro se mostrava longe de se abrir para um diálogo calmo, contudo Léo resolveu insistir: — Pedro, eu sei que tá sendo difícil pra você, mas cê precisa entender o que aconteceu naquele… 

    — Eu entendi muito bem o que aconteceu, Leonardo — expurgou a frase da boca, enquanto se colocava de pé. 

    — Cê não me deu chances de explicar. 

    — Não precisa, deixa que eu mesmo explico. 

    — Pedro… 

    — Cê me impediu de entrar no Centro de Pesquisas, me prometendo que faria de tudo pra salvar ela. Eu confiei em você, cara… — As primeiras lágrimas brotaram de imediato e se entregaram a gravidade. — Eu entendi muito bem que cê deu meia-volta assim que encontrou sua Amélia, que deixou ela lá dentro, pra morrer queimada como se não fosse ninguém. 

    Léo sentiu o peito apertar. 

    — Cê tá sendo injusto comigo. 

    Pedro riu ironicamente. 

    — Injusto? 

    — Sim. Eu fiz o máximo que eu pude, Pedro. O máximo para salvar ela… Eu realmente não sei o que mais cê queria que eu fizesse. 

    — Que tivesse me deixado ir! — A voz falhou, entretanto ele não se rendeu. — Que tivesse me deixado morrer tentando! Agora a Camila tá morta, Léo… Morta! E eu não posso mais fazer nada. 

    Léo não sabia mais o que dizer. Pedro ainda se encontrava inflamado demais, qualquer coisa que ele dissesse seria combustível para uma discussão maior. Olhava para o amigo com um misto de pena por todo o sofrimento que ele sentia, remorso por não ter tido a chance de salvar Camila e raiva, muito raiva. Não era justo que Pedro jogasse em cima dele todas as amarguras, como se ele fosse um ser divino capaz de qualquer coisa, de solucionar tudo. 

    — Chega disso. — Sentiu ser puxado por Amélia, que sem demora o levou para longe. — Cê não me ouve mesmo, hein? 

    Ele finalmente deu atenção para as pessoas em volta, e não se surpreendeu ao enxergar os rostos colocados em roda, como se sua discussão fosse um grande evento circense. 

    — Ele precisa de um tempo maior, Léo! — Amélia continuava com seu sermão, a medida que o levava em direção aos seu grupo de amigos: Clara e Alex. 

    Tudo o que ele não precisava naquele momento era conversar com Alex. Travou os passos, assustando a menina no processo. 

    — Eu… — resmungou, fitando Alex mais a frente, e depois balançou a cabeça procurando clarear os pensamentos. — Eu preciso ficar sozinho um pouco. 

    Desvencilhou-se dos braços de sua namorada e deslizou para dentro da primeira porta que encontrou. O frio da umidade abraçou seu corpo e o cheiro de mofo invadiu as narinas, enquanto ele deixava para trás o afago quente do Sol. Todos os cômodos ali eram demasiadamente fechados e escuros, a fiação elétrica tinha sido saqueada há muito. Algumas partes guardavam um cheiro inconfundível de fezes de morcego, a acidez dos dejetos se tornou quase inebriante. A regra para todos era permanecer longe de qualquer canto que pudesse trazer doenças, contudo não se tratava de uma tarefa muito fácil com as atuais instalações. 

    Respirou fundo, trazendo a razão para perto de novo. Nas horas conturbadas, era o momento que Camila e seu espírito natural de liderança faziam mais falta. Por um instante, pensou que explodiria em fúria; o coração acelerado era a prova de que havia ficado por um triz de perder o controle, porém tinha sido capaz de domar os instintos daquela vez. 

    Demorara a perceber que sua adaptação não agia somente quando estava transformado na fera. Tinha ficado irritadiço, esquentado e impulsivo desde que descobrira os seus poderes, e por isso tinha tomado decisões que, ele tinha certeza, tinham colaborado e muito para estarem naquele lugar. De forma definitiva, não estava inclinado a deixar sua adaptação comandar suas ações, transformado em fera ou não. 

    E a medida que o coração voltava ao compasso adequado, escutou alguém se aproximar em meio ao breu; o andar cadenciado não lhe era estranho.  

    — Acalmou? 

    Suspirou com pesar ao reconhecer a voz. 

    — Cê não tava no pátio — pontuou ele. 

    — E nem precisava… — Janaína se aproximou, contudo manteve distância o suficiente para que a pouca luz não revelasse totalmente seu rosto. — Deu pra ouvir a briga de longe. 

    — Nunca achei que ele fosse reagir desse jeito. 

    Ela riu. 

    — Ela amava ela, Léo. Não é só você que consegue se apaixonar pelas pessoas. 

    Léo percebeu que ela fazia menção de se aproximar um pouco mais. O seu cheiro suave cobriu o ar fétido com um aroma feminino, contudo aquilo só fazia seus nervos ficarem à flor da pele. Definitivamente, preferia mil vezes o cheiro da bosta de morcego. 

    — Se não se importa… — falou, decidido. — Não quero conversar agora. 

    Entendendo o recado, Janaína parou. O timbre de suas palavras soou um pouco mais afetado quando voltou a falar: 

    — Vai fugir dos acontecimentos também? 

    Ele ainda não estava em um local propício para se acalmar, entendeu. As minas se mantinham ali, sob as sombras, prontas para levar seus miolos para os ares. Teve que, mais uma vez, respirar fundo antes de responder: 

    — Não tô fugindo de nada, eu apenas tô evitando mais um mal pra minha vida. 

    — Bom, espero que repita isso até cê mesmo acreditar — ela zombou. — É tão difícil assim acreditar no que eu falo? Confiar em mim é um mal tão grande? 

    — É. — Ele a olhou nos olhos; era incrível como o azul permanecia vivo até mesmo longe dos raios do dia. — É sim. Cê hipnotizou os seus próprios pais, Janaína, para poder manipular os sentimentos deles… Cê tem noção do quanto que isso é grave? 

    Ela se calou por um breve momento, como se precisasse de um tempo para digerir a pontada de decepção presente nas acusações. 

    — Se cê tivesse uma oportunidade de manter sua mãe longe disso tudo ao máximo, o que faria? 

    O peito do rapaz novamente se retorceu diante da lembrança de sua mãe. Os acontecimentos da tarde tinham levado sua mente para longe e por algumas horas a data parecera mais um dia comum. Porém o luto estava de volta; mais forte do que nunca. 

    — Tô vendo que não se arrependeu. 

    — Só me arrependo de não ter sido forte o bastante pra manter a hipnose até o fim disso tudo. 

    — Pois, bem. — Os olhos de gruta ainda lhe davam medo, e ainda lhe chamavam para um mergulho profundo e sem fim, entretanto precisava manter o olhar fixo se quisesse deixar claro o que pensava. — Quem me garante que o que eu senti ou sinto por você não é fruto de mais uma hipnose sua? Como eu posso confiar no que sinto se eu já vi você manipular as pessoas que mais te amam? 

    Seguiu-se, então, o silêncio na sua forma mais crua e nítida; uma ausência de som tétrica, que fez Léo refletir se o mundo fora daquele cômodo escuro e mal-cheiroso continuava mesmo existindo. A indústria de papel pareceu realmente abandonada. 

    — Como?! — ele insistiu. 

    — Não sei. 

    — Acho que a gente não tem mais o que conversar então. — Virou-se em direção a saída. Se a loira não estava disposta a sair, sairia ele. — Única coisa que importa agora é a missão de hoje, não posso ficar gastando neurônio com esse tipo de coisa. E nem você.

    Faltavam apenas algumas horas para o início da noite, contudo sabia que o tempo passaria arrastado depois daqueles últimos atritos. O melhor que tinha a fazer era ficar sozinho por um tempo, impedir a cabeça de vaguear pelas palavras de Pedro e Janaína e, dessa forma, manter a paciência intacta para o que se seguiria. Só temia que aquele esforço mental não surtisse efeito, o que o deixaria despreparado para lidar com os possíveis imprevistos da missão. E um dia de missão era sempre imprevisível. 

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