A chegada

     A manhã do outro dia veio com ares de renovação. O sol reinava sozinho no céu, sem que houvesse um fiapo de nuvem para barrar seu espetáculo, quando a vida na indústria abandonada ressurgiu dos cômodos sombrios. O desjejum foi distribuído com um espírito de comemoração; contido, porém presente mesmo assim. O resto da noite, após o burburinho no pátio central, não tinha sido dos mais propícios ao sono. A ansiedade para que o novo dia se iniciasse logo se mostrara a melhor das cafeínas e não foi difícil ouvir sussurros aqui e ali durante a noite, ou até mesmo passos vagando sem rumo pelos quartos desolados. 

    O dia, no entanto, chegara correspondendo a todas as expectativas: solar, colorido e revigorante. Um clima perfeito para o que estava por vir. 

    A conversa de Janaína e Carlos, com a menina mais calma e disposta a escutar, tinha sido longa e pacífica. E como Léo previa, os frutos de um bom diálogo não poderiam ser mais doces. Janaína logo aceitara a ajuda vinda de seus pais e, então, o segurança partira para o ajeitar dos detalhes. Carlos precisaria ser rápido para encontrar um veículo que pudesse tirá-los dali, juntos, e levá-los para longe da capital, para um fim de mundo qualquer, onde o Projeto não tivesse pleno domínio sobre eles. Era um plano grande e ambicioso, entretanto o rapaz sabia que estava distante de ser algo impossível para os Sonnenberg. Dinheiro não seria um problema. 

    O segurança tinha deixado claro que tudo estaria pronto naquele mesmo dia e que, a eles, restava apenas esperar pela sua visita. Sem pressa. Sem ansiedade. 

    Era um pedido feito em vão para Léo, que agora andava de um lado para o outro, descendo e subindo os degraus do pátio, entrando em todos os cômodos habitados e se certificando de que todos estavam cientes do que a chegada do segurança significava. Haviam, todos, concordado com o plano, o que não deixava de ser uma grata surpresa. Seu ânimo para discussão tinha se esgotado no dia anterior e o encontro com sua mãe lhe dera a paz que tanto precisava para prosseguir. Era um momento de bandeira branca e, por isso, deixou que o quarto de Amélia, Clara, Alex e Sandro ficasse por último. Precisava daquela conversa. 

    Adentrou o cômodo decidido, mas não sem antes tomar fôlego e se preparar mentalmente; as falas repassadas dezenas de vezes na cabeça, como um script irretocável. Porém, quando entrou em cena, encontrou apenas dois dos atores presentes. Sandro e Alex se recostavam em umas das paredes próximas ao carvão da antiga fogueira. Um assunto qualquer foi interrompido assim que avistaram o loiro. 

    Léo olhou em volta. 

    — Onde estão as meninas? 

    — Foram escovar os dentes — Alex respondeu. 

    Não era em nada o que ele queria encontrar ali. Girou o corpo, ensaiando uma saída, mas barrou os passos; optou por esperá-las chegar. Estar ali, contudo, não queria dizer que tinha disposição para conversar com Alex. Manteve certa distância do rapaz, abaixou os olhos e colocou as mãos dentro do bolso da bermuda, fechando-se dentro de seu mundinho particular de um modo que ficasse claro que se acomodaria no silêncio até que as meninas aparecessem. 

    — Léo? — chamou Alex, depois de um tempo de profunda quietação. — Não acha que devíamos tratar as coisas com a Amélia com menos criancices? 

    Léo observou o garoto-gigante com um pouco mais de atenção. Enganava-se quem achava que era um menino fraco, ou mesmo abalado por seu porte físico com um certo sobrepeso. Alex demonstrava uma expressão sempre decidida, as palavras não eram emitidas sem que houvessem sido banhadas em tom ácido, a cabeça constantemente erguida em um postura valente. Tinha lá sua beleza, Léo era obrigado a admitir; os fios loiros e os olhos um pouco mais claros que os seus dava-lhe uma beleza de aspectos germânicos, que diferia muito da descendência italiana dos Casteliori. Tinham muito em comum, todavia Léo estava mais inclinado a ver as diferenças. 

    — Não existe normas de etiqueta para lidar com esse tipo de situação, eu tenho quase certeza — Léo retorquiu, salgando cada sílaba com a mesma ironia que o outro rapaz tanto gostava de usar. Guardaria a bandeira branca para declarar paz mais tarde. 

    Sandro assistia a tudo em seu canto; não iria se interpor entre os dois, nem tomar partido a favor de ninguém. 

    Alex balançou a cabeça, discordando, antes de continuar: 

    — Achei que fôssemos ser amigos depois de tudo que aconteceu no primeiro Centro de Pesquisas… 

    Era uma lamentação, Léo entendeu. Haviam realmente se aproximado um do outro dentro do Centro de Pesquisas, e por um tempo tinham construído um laço forte, que floresceria em uma amizade se cultivado. 

    — Isso foi antes dos últimos acontecimentos, infelizmente — argumentou Léo, com sinceridade. 

    — Eu e ela somos apenas amigos, cara. Não tem motivos para essa ciumeira. 

    Léo riu. 

    — Então vai me dizer que cê não gosta dela? 

    — Ela gosta de você, é isso que importa, não? — Alex jogou as mãos no ar, em um gesto de desistência. — Ela é uma garota incrível, cara, e é meio impossível não gostar de alguém assim… Mas ela gosta de você. E não merece ser deixada em segundo plano, se é que cê me entende. 

    Antes que Léo proferisse qualquer resmungo de protesto, e apontasse um dedo para o menino, acusando-o de em nada ter a ver com o relacionamento dele com Amélia, a menina adentrou o salão em ruínas acompanhada de sua melhor amiga. As duas pararam próximas a entrada, de modo a fitar os três rapazes diretamente nos olhos. Clara guardava a feição branda, de quem, assim como Sandro, não estava disposta a levantar um grito de guerra a favor de ninguém. Amélia, entretanto, expelia da face uma expressão de raiva contida, parecendo entender de cara o assunto debatido ali dentro. Não precisou dizer sequer meia-sílaba para repreender Léo; os olhos grandes e harmoniosos à face transbordaram uma faísca de ira que o fez engolir em seco. Depois, fez o mesmo ao se voltar para Alex. E, enquanto o sermão mudo se extendia no tempo, a tensão entre os dois rapazes se tornou uma vergonha constrangedora pelo comportamento infantil. 

    A bronca teria continuado com repreensões verbais, caso mais alguém não tivesse tomado a atenção dos quatro para si. Com um tom de urgência e antes mesmo de aparecer na porta, Victor anunciou: 

    — Léo! Tem alguém chegando. 

    E num piscar de olhos, nada do que acontecia dentro do cômodo manteve a mesma importância. Léo se voltou totalmente para a nova informação que chegava, certo de que ciúmes — bobos ou não —, discussões de relacionamento e brigas por território eram reações humanas que podiam esperar um momento mais propício. 

    Partiu para o pátio com um misto de surpresa e alívio; não esperava que o segurança fosse aparecer antes que o sol se centralizasse no céu, mas respirava melhor com aquela notícia. Não podia negar que a estratégia que o grupo de adaptados tinha arrumado, com as constantes exposições ao mundo exterior, logo se tornaria insustentável. E, por mais que só tivesse conhecido o pai de Janaína hipnotizado, o empresário aparentara ser um homem de princípios, confiável, capaz de mover quantos pauzinhos precisassem para resguardar a vida de sua filha. 

    — Onde ele tá? — Léo quis saber, assim que alcançou a porta. Não precisou de respostas; os olhares vidrados na porta principal da indústria abandonada lhe afirmaram que o homem entrava naquele exato momento. 

    A ansiedade bailava solta pelo grande espaço aberto, angustiando os quatorze corações ali presentes. Apesar de tudo, mantinham a aparente calma com maestria, sabidos de que não havia por que desesperar-se. 

    Até que Carlos apareceu. Passos lentos, os ombros tensos, a mandíbula travada… Parou em frente a entrada assim que avistou todos os adolescentes, desconfortável com algo, como se o ferimento em cicatrização tivesse voltado a incomodar. Não deu sequer mais um passo, nem moveu um músculo da face. Um comportamento estranho para o que Léo conhecia do brutamonte. 

    E como se percebendo algo que ninguém mais via na estranheza do segurança, Graziela girou o corpo para Léo. De onde estava, ele conseguiu identificar o alerta nas rugas de expressão da menina, um espanto incomum, como se uma assombração tivesse acabado de sussurrar em seu ouvido um decreto de morte. 

    — Não estamos seguros aqui! — ela externou, em um timbre arrepiado, antes mesmo que ele perguntasse. 

    Captando a mensagem embutida no sentido de sobrevivência de Grazi, Léo não conseguiu barrar o arrepio que escalou as suas pernas, atravessou a espinha e pousou na nuca. A estranheza do segurança tinha motivo, obviamente, e o desconforto em seus olhos estava longe de ser de uma ferida há muito fechada. Era uma dor nova, recém-nascida. Era culpa o que ele sentia. 

    — Fujam! — Carlos gritou, sentido, enquanto uma sombra cinzenta emergia de seu encalço, crescendo e ganhando forma. O homem balançou a cabeça em negação, dizendo para si mesmo que não era daquela forma que as coisas deviam acabar. — Eles me  seguiram! — explicou-se. Lucas se colocou atrás do segurança, já transformado em lobisomem; o sorriso de superioridade não tardou em aparecer. — Fuj… 

    Carlos não conseguiu ar para terminar o que dizia, as garras do lobo adentraram suas costas, tirando os órgãos do lugar, rompendo as vias de sangue, músculos e nervos. O homem gritou de dor, o que abafou o grito de protesto de Janaína. O corpo foi içado do solo — os pés buscando se apoiar em algo sem nunca encontrar — e, aos poucos, foi amolecendo. A hemorragia traçou o caminho até alcançar a boca e, antes mesmo que Léo entendesse totalmente o que estava acontecendo, Lucas soltou o corpo a dar os últimos suspiros no chão. 

    As íris negras do animal encontraram Léo entre os mutantes. Para a sua felicidade, o loiro estava surpreso demais para conseguir esconder. Via pavor em cada ação do rapaz; dos lábios entreabertos ao suor que minava na testa, das órbitas arregaladas ao peito arfante. 

    — Que cena mais linda… — zombou ele; a voz capaz de arranhar os tímpanos de quem escutasse. 

    Como se tivessem ensaiado a entrada triunfante, João se colocou ao lado do amigo com o grande ferrão aracnídeo a valsar acima de sua cabeça. O mesmo riso de poder, o mesmo reboco de psicopatia, que ganhava um traço ainda mais sinistro com os bráquetes ortodônticos distribuídos em todos os dentes. E, do outro lado, a criatura reptiliana em que Tomás se transformava tomou seu lugar de direito. O trio de traidores. 

    — Ah, vamos lá! — Lucas levantou os braços. O sangue de Carlos empapava a sua mão direita, gotejando no corpo inerte no chão. — Não estavam ansiosos para esse momento? 

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