Capítulo 8
Meus olhos ardem, mas não posso me entregar ao sono. Tento me concentrar em cada detalhe do mapa à minha frente, decorar cada relevo e passagem e ter o máximo de certeza possível de que sei o que estou fazendo. Eu obviamente não sei o que eu estou fazendo, mas eu sou a única pessoa que precisa saber disso. Me espreguiço desajeitadamente, esticando os braços acima da minha cabeça até estalar meus ombros. Preciso providenciar outra cadeira para o escritório, essa não é nada confortável. Meu pescoço dói. Bebo mais um gole do chá que o Ministro mandou entregar após todos terem saído. Me permito alguns biscoitos também.
O escritório parece grande demais agora que estou sozinha aqui dentro, mas agradeço os Deuses pelos minutos de silêncio e solidão. Esse cômodo se transformou no ambiente mais caótico em que já estive presente no segundo em que o Ministro terminou de recitar a Profecia. Encaro o estúpido pergaminho que está posicionado no canto esquerdo da mesa à minha frente. O papel está em excelentes condições para algo que foi escrito há tanto tempo. Suponho que os Deuses façam um bom trabalho quando lhes convém.
Esfrego os olhos e os percorro pela mesa, tentando organizar meus pensamentos com o que vejo a minha frente e com tudo que foi dito minutos atrás nessa mesma sala. Por fim, todos concordaram rapidamente em enviar alguém de seus Reinos para me acompanhar. Ao que parece eu sou a única que não está feliz com essa ideia.
Minha cabeça dói e eu só quero que esse dia acabe. Apoio os cotovelos na mesa e seguro minha cabeça com as minhas mãos. Como eu vim parar aqui? Me preparei minha vida inteira para ser Rainha do Norte. Contei os dias para poder finalmente começar a tomar conta do meu povo, fazer o que quer que fosse necessário para tornar o Norte um grande e poderoso Reino como nas eras passadas, e agora isso? Acho que todos tinham razão no fim das contas, os Deuses finalmente me puniram, é a única explicação.
Ouço uma batida na porta, e esta se abre antes que eu tenha a chance de responder qualquer coisa. Tobiah entra no escritório sem dizer uma palavra - e sem perdir premissão. Fecha a porta atrás de si e caminha na minha direção, puxando uma cadeira pelo caminho e posicionando-a em frente à mesa onde estou sentada. Olho-o, o queixo apoiado em uma das mãos, e espero.
— Esse vestido faz mais juz a sua beleza do que o que você estava usando durante a cerimônia. Não parecia você. Todas aquelas camadas e floreios. Todo aquele luxo combina mais com a sua irmã.
— Não acredito que você veio até aqui para questionar minhas escolhas de vestimentas e me dizer que minha irmã é mais bonita do que eu — digo, erguendo uma sobrancelha e me esforçando para manter a seriedade. Ele sorri em resposta, e me impressiona que ele saiba que foi uma brincadeira. A maior parte das pessoas — não, todas as pessoas — levaria a sério e entraria em pânico. Príncipe Tobiah me intriga algumas vezes; não lhe dei o devido crédito de início, vejo isso agora. Há alguma coisa nele que ainda não descobri o que é.
— Em momento algum disse que sua irmã é mais bonita, Majestade. Minha educação foi muito rígida e eu jamais mentiria dessa forma; minha mãe jamais me perdoaria. — ele responde sorrindo. Seu sorriso não dura muito, contudo, e desconfio que a razão para isso seja o real motivo que o trouxe aqui. Tobiah não pronunciou uma única palavra enquanto estávamos todos reunidos aqui no escritório para tentar colocar sentido nessa bendita Profecia. Não disse nada quando os outros representantes se mobilizaram para enviar alguém para o Norte. Não ouço sua voz desde que entramos no escritório, antes talvez, não ouço sua voz desde minha coroação.
— O que veio fazer aqui, Príncipe? — pergunto, tenho certeza de que alguma coisa está acontecendo. Ele se inclina para frente e pega o mapa que estava na minha mesa. Encara o mapa por alguns segundos, franzindo o cenho.
— Acredito que o melhor caminho seja adentrando o continente e atravessando pelo Reino de Dentro. A geografia do seu Reino não favorece que a travessia seja feita por aqui. Vai demorar um pouco mais para alcançar a Fronteira, mas acredito que seja o mais seguro a se fazer — diz, pragmático.
— O que veio fazer aqui?
— Oh, perdoe-me Majestade. Aqui — diz, colocando o mapa de volta na mesa em minha direção — A forma mais segura de atravessar a Fronteira seria pelo Reino de Dentro. A geografia do Norte não favorece a travessia e...
— Tobiah? — interrompo-o mais uma vez, ignorando o tom condescendente que ele acabou de usar, e ele finalmente olha na minha direção. Então eu espero. Ele solta o mapa na mesa e encosta na cadeira novamente.
— Apenas quero ter certeza de que essa viagem seja tão segura quanto possível, Majestade — diz, os olhos castanhos me fuzilando desconfortavelmente.
— Adaliz parece estar se encarregando de tudo com perfeição — respondo, surpresa de essa informação não ser mais óbvia dada as circunstâncias.
— Me surpreende você confiar tanto em alguém que mal conhece, isso é tudo.
— Eu a conheço tão bem quanto conheço você, e aqui estou eu, não é verdade? — respondo, ao que ele acena com a cabeça.
Não quero dar o braço a torcer, mas tenho que dar credibilidade às preocupações de Tobiah. Não há nada que possa fazer, de qualquer forma. Estou presa a essa Profecia, e minha melhor chance é me cercar de pessoas que saibam o que estão fazendo dentro de sua própria área de experiência e me esforçar para voltar viva para o meu Reino o mais rápido possível — seja lá qual o objetivo dessa viagem que estou a ponto de começar. A que Maldição os Deuses estão se referindo? Nunca ouvi falar de nada do tipo, e não encontro registro de nada semelhante no diário que a Sanatrix me entregou.
Adaliz está a caminho de volta ao Reino de Dentro, e enviou uma mensagem aos outros Comandantes que já estão providenciando mandar alguém capacitado para me acompanhar, segundo o que ela me disse. Pelo tempo de viagem, quem quer que esteja vindo, deve chegar aqui até o fim da manhã de amanhã.
Príncipe Hadaward não fez segredo de que desde que ele não tivesse que tirar seu precioso traseiro de ouro de seu Reino, mandaria quem quer que fosse e o que quer que fosse necessário para não despertar a ira dos Deuses. Pelo menos com esse eu não preciso me preocupar. A última coisa que precisava agora seria ter que negociar com um escravocrata; não tenho estômago para isso.
Não sei o posicionamento do Reino de Fora, percebo. Confiei silenciosamente que Tobiah se importaria o suficiente para garantir alguém qualificado para me acompanhar, o que pode ter sido um erro. Sinto que posso confiar nele, mas a realidade é que ele não me deu nenhum motivo para isso, e posso estar sendo imprudente ao arriscar o meu futuro e o do meu povo ao depositar minha confiança nele baseando-me apenas... Não posso chamar isso de instinto. Não sei nomear o que é que me leva a confiar em Tobiah.
— Alguma resposta de seu Reino até agora? — pergunto, para quebrar o silêncio que se fez e impedir minha mente de vagar por áreas desconhecidas; isso não vai me ajudar em nada agora.
— Meu pai não ficou muito feliz, mas não irá interferir — ele me responde, enquanto folheia o diário do Bibliotecário.
— Não... irá inteferir? Você está dizendo que seu Reino não está enviando ninguém, não há ninguém a caminho do Norte nesse momento? — pergunto, incrédula, ao que ele balança a cabeça negativamente, sem levantar seus concentrados olhos das páginas do diário.
— Desobedecer ordens diretas dos Deuses é punível com morte, tenho certeza que meus Mestres lhe ensinaram isso. Estamos falando do meu futuro e o futuro do meu Reino, Tobiah, então não importa a afeição que tenha por você, eu vou garantir pessoalmente que a punição seja aplicada se necessário for.
Ele levanta os olhos do diário os dirige a mim, inclina a cabeça levemente para a esquerda e abre um pequeno sorriso.
— Afeição? — pergunta, e eu tento ficar com raiva, mas o sorriso em seu rosto não é debochado como eu esperaria que fosse, então me contento em revirar os olhos. É inacreditável que de tudo que eu disse, isso seja o que ele prestou atenção.
— Meu Reino não está enviando ninguém porque eu serei o representante a cumprir as demandas da Profecia. Como disse, meu pai não ficou muito feliz com isso, mas confia nas minhas decisões. No fundo, acredito que ele pense que esse gesto servirá para que os outros Reinos nos vejam com bons olhos de alguma forma — ele explica, e eu demoro alguns segundos processando o que ele acabou de dizer. Ele perdeu completamente o juízo? Eu estou me submetendo a essa maluquice porque a Profecia caiu aos meus pés e foi marcada em minha pele, e não tenho como fugir disso. Daria metade dos meus anos de vida para que pudesse simplesmente assumir meu lugar no trono e comandar meu povo rumo à glória — não que isso seja o maior dos sacrifícios para alguém que já viveu 200 anos.
É completamente irresponsável enviar a pessoa mais importante do Reino em uma missão que sequer sabemos do que se trata! O que ele tem na cabeça?
— Antes que diga qualquer coisa, Alteza — ele diz antes que eu tenha a chance de responder — essa decisão não está em discussão. Não confiarei a vida de minha noiva nas mãos de ninguém mais além das minhas próprias. Você é valiosa demais para correr quaisquer riscos, Kya.
Fico atordoada por um segundo com suas palavras — e não gosto do efeito que elas têm sobre mim. Retiro o que disse, ele não me intriga, e está começando a me irritar. Quem ele pensa que é para me tratar pelo primeiro nome? Volto minha atenção para o mapa mis uma vez antes de responder.
— Noiva? Vejo que resolveu aceitar minha proposta, por fim — respondo o mais seca que posso, traçando os rios demarcados no mapa das Terras Distantes com meus dedos.
— O que há de errado com seu pescoço? — ele pergunta, ignorando completamente minha pergunta. Olho-o confusa — Seu pescoço. Você está mexendo o pescoço desde que entrei, o que há de errado? Está doendo?
Não percebi que estava mexendo o pescoço, talvez esteja inconscientemente tentando encontrar uma posição confortável , porque sim, está doendo.
— Não é nada — respondo, arrumando minha postura. Não tenho tempo para isso.
— Vamos, até mesmo a Rainha do Norte precisa descansar. Você será de nenhum uso se não estiver em perfeito estado quando estivermos todos prontos para partir. Posso estar me aventurando nessa jornada para protegê-la, mas tenho toda a intenção de voltar em um pedaço para casa. — ele diz, e levanta da cadeira.
— Não preciso de proteção, Tobiah — respondo rispidamente.
— Tenho certeza que não — ele responde, estendendo o braço e me oferecendo sua mão, que aceito e uso de apoio para me levantar. Com a outra mão, retiro a coroa da cabeça e desprendo o cabelo, sacudindo-o para que se solte do topo da minha cabeça. A coroa é linda, porém extremamente pesada. Layla a carregaria com muito mais maestria, tenho certeza; ela está muito mais acostumada a adornos do que jamais estarei.
— Deslumbrante — Tobiah sussurra, olhos brilhando fixos em mim, entrelaçando seus dedos aos meus, e me deixa nervosa. Era só o que me faltava. Puxo minha mão da sua e aliso meu vestido, antes de andar a passos firmes em direção à saída, deixando-o para trás. Não tenho tempo para essa bobagem.
— Você vem? — pergunto quando alcanço a porta, ao que ele responde positivamente.
Caminhamos pelo corredor em direção à sacada oeste do Palácio. A vista daqui é a minha preferida, o Sol pode ser visto se pondo em toda sua glória, se escondendo por trás das montanhas que fazem a fronteira do Reino. Assistimos o por-do-sol em silêncio, não por não ter nada a ser dito, mas porque não há necessidade de dizer nada. Estamos ambos prestes a deixar nossas vidas para trás e assumindo um risco que sequer sabemos a proporção — ainda que ele esteja fazendo isso por escolha própria.
Algo me diz que esse vai ser o último momento de paz e quietude a qual terei direito por muito tempo, então aproveito-o com todo meu coração.
***
Minha dor de cabeça piorou. Sei que deveria dormir, Tobiah tem razão ao dizer que preciso estar em perfeitas condições pela manhã, mas ainda assim me pego seguindo rumo ao escritório imediatamente após o jantar. Vou apenas pegar o diário do Bibliotecário e levá-lo para o meu quarto, isso é tudo. E então uma boa noite de sono, após um banho quente.
Talvez um banho quente seja realmente o que eu preciso para curar essa dor de cabeça. Como se não fosse o suficiente, uma onda de enjoo invade meu corpo e me esforço para não vomitar.
Quando alcanço a maçaneta da porta do escritório preciso parar por um segundo para respirar. Excelente momento para ficar doente. Empurro a porta de madeira que parece pesar uma tonelada e entro no cômodo frio. Para minha surpresa, me deparo com o Ministro sentado na minha mesa, estudando algum papel a sua frente. Ele levanta os olhos brevemente em minha direção.
— Majestade — cumprimenta, sem fazer qualquer menção a se levantar, voltando seus olhos ao que quer que esteja lendo. Não sei dizer do que se trata, minha visão está levemente embaçada, não me é possível ler o conteúdo do documento.
— O que faz aqui? — pergunto, enquanto caminho em direção à cadeira que Tobiah deixou próxima à minha mesa, apoiando minhas mãos em seu encosto.
— O que parece que estou fazendo, Kya? Alguém precisa manter esse Reino em ordem na sua ausência.
— Eu ainda não fui a lugar nenhum, e sugiro que me trate com o devido respeito — rosno, precisando recuperar o fôlego ao fim da frase. O que pelos Deuses há de errado comigo? Isso faz com que ele largue os papéis sobre a mesa e me encare.
— Ou o que? — pergunta, apoiando as duas mãos sobre o tampo de madeira e as usando de alavanca para impulsionar seu corpo. — Vai cortar minha cabeça? Me mandar para a forca? Sabe, Kya, quando você começa a ameaçar as pessoas o tempo todo e nunca cumpre essas ameaças, elas perdem o sentido.
Sinto um calafrio percorrer minha espinha, mas ignoro. Tusso, e o Ministro sorri em resposta.
— Você se diz tão boa Rainha, acredita que é a melhor solução para todos os problemas da humanidade mas é incapaz de sequer proteger a si mesma.
Sinto tudo rodar a minha volta, minhas pernas bambeiam e aumento o aperto de minhas mãos nas costas da cadeira na tentativa de me manter de pé.
— Os Deuses pessoalmente te mandaram um aviso dos céus alertando-a a não confiar nos que estão a sua volta, e ainda assim, você sequer sabe o que te atingiu não é mesmo?
Perco a firmeza em minhas pernas e desabo no chão. Meus joelhos atingem o chão de madeira em um baque surdo, e tento me levantar, apenas para falhar e usar a última gota de energia em meu corpo em vão.
— Como você acha que seria capaz de governar um Reino inteiro, se mal consegue tirar os olhos de seu umbigo por tempo o suficiente para prestar atenção às pessoas ao seu redor?
Sinto meu corpo desabar no chão e não escuto mais nada, um zumbido toma todo o som da sala. O sorriso de escárnio é a última coisa que eu vejo antes de ser devorada pela escuridão.
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