Capítulo 3

Corro pelo corredor. Acho que corro. Sinto meu corpo flutuar sem tocar o chão, sinto meu corpo sofrer com cada impacto de cada pisada agressiva dos meus pés contra o chão de mármore. Talvez esteja correndo. Talvez esteja letargicamente arrastando meu corpo enfurecido e anestesiado em direção ao quarto onde o corpo sem vida daquele que me deu a vida é preparado para se despedir deste mundo.

Sinto a presença de Layla em meu encalço. Ou talvez ela nunca tenha deixado o Salão. Ouço seu choro indecoroso dominar o ambiente, penetrando minha mente e partindo meu coração em pedaços minúsculos. Talvez esteja ouvindo sua risada desabalada, seu riso fácil e contagiante, talvez sua leveza e petulância estejam acalentando meu coração. Talvez seja apenas o silêncio preenchendo o ambiente e sufocando minha alma.

Talvez tudo isso não tenha passado de um sonho. Talvez uma brincadeira de mal gosto do Ministro para me punir por... o que quer que seja que ele ache que eu preciso ser punida, tenho certeza que ele tem uma lista enorme.

Forço meu corpo a continuar seguindo em frente - esse tem que ser o corredor mais longo que já foi construído na história da humanidade. Imploro mentalmente aos Deuses que isso não seja real.

Alcanço a entrada do salão de trabalho da Sanatrix, e o tempo parece parar. Encaro a porta dupla de correr à minha frente, os detalhes em violeta esculpidos sobre as margens da madeira, as três semi-espirais trianguladas entalhadas na madeira - o símbolo do nosso reino. Pouso minha mão na maçaneta, sinto o ferro frio sob minha palma, e abro a porta. Abro a porta de olhos fechados, implorando aos Deuses que isso seja apenas um pesadelo.

O cheiro me atinge primeiro. Ainda de olhos fechados tenho minhas narinas invadidas por camadas de ervas e éter, corantes e alguma outra coisa que não consigo identificar. Forço meus olhos abertos e imediatamente percebo que não foi um pesadelo. Deitado em uma mesa de madeira no canto direito da sala descansa o corpo sem vida daquele que há algumas horas foi o homem mais importante de um Reino.

Adentro a sala a passos curtos, demorando o máximo que posso, adiando o inadiável, só por mais alguns segundos. Concentro meu olhar no manto violeta que cobre seu corpo, nos detalhes em ouro bordados pelo tecido. Alcanço a mesa e toco o manto, sinto o tecido grosso e macio entre meus dedos.

-Vossa Alteza - cumprimenta-me a Sanatrix - Perdoe-me, não tive a intenção de assustá-la - diz, quando eu dou um salto ao ouvir sua voz. Não tenho certeza se ela sempre esteve na sala e eu não notei ou se apareceu sabem-se os Deuses de onde. Aceno com a cabeça em resposta.

- Sinto muitíssimo pelo Rei. Ele era um grande homem - diz, e novamente apenas aceno. Não acho que há nada a ser dito de toda forma. Ela me oferece uma cadeira, que aceito de bom grado. Sinto meu corpo todo tremer e não sei por quanto mais tempo posso me forçar a ficar de pé.

- Sabe o que aconteceu? - pergunto no que suponho não ser mais do que um sussurro.

- Gostaria de vê-lo? - pergunta. Gostaria? Aceno que sim com a cabeça, mas não tenho tanta certeza da minha resposta. Ela lentamente levanta a manta e remove a porção de tecido que recobre o rosto do Rei. Seus cabelos castanhos são revelados primeiro, e então o restante de seu rosto. Sua feição parece em paz e isso serve como o pouco de consolo que sei que é tudo que vou conseguir.

- Não sei ao certo ainda, mas acredito ter a resposta em breve - diz - Ele foi encontrado em seus aposentos pela manhã pelo Ministro, depois de não ter comparecido a uma reunião -Não posso evitar bufar à menção do Ministro. Se ela percebe, não parece se abalar, e continua - À primeira vista parece não ter tido a influência de nenhuma causa externa. É provável que tenha sido a idade.

Ouço cada palavra que ela diz sem tirar os olhos do Rei. Sua sobrancelha está desarrumada. O nariz levemente torto para o lado esquerdo. Parece estar dormindo. Como se fosse acordar a qualquer minuto agora. Mas não está dormindo. Está morto. Morto, com a idade de 376 anos. Sua expressão é tão jovial quanto na última vez que o vi. Tão jovial quanto aos seus 35 anos. Como todos nós. Vivemos nossos primeiros anos como todas as outras pessoas dos outros Reinos, mas paramos de envelhecer por volta da quarta década de vida e vivemos os séculos seguintes com a mesma aparência. A velhice nos alcança e arrebata nos últimos sessenta anos de vida. É como sabemos que a morte se aproxima. Ouvi cada palavra da Sanatrix sem tirar os olhos do Rei. Não há qualquer sinal de velhice em qualquer lugar. Morrer de velho não faz sentido simplesmente porque ele não estava velho. Tinha pelo menos mais um século de vida pela frente. Isso não está certo.

- De qualquer forma - continua, com um suspiro - vou ser capaz de lhe fornecer respostas mais precisas em alguns dias. Após a autópsia.

- Autópsia? - dou um pulo da cadeira e olho em direção à porta para ver minha irmã, acompanhada por um guarda, boquiaberta, olhando incrédula para a Sanatrix. Se ela se assustou com o grito de Layla, não demonstrou em nenhum momento.

- Princesa - cumprimenta - Sim, estava explicando para a sua irmã que teremos mais resposta sobre a morte do Rei depois de mais exames, e uma autópsia.

- Você não vai encostar no corpo dele! - rosna.

Mantenho minha posição, encostado na parede da extremidade esquerda da Sala do Trono. De onde estou não posso ver muito, mas não preciso. A entrada do salão está devidamente guardada, bem como todos os arredores do Castelo. A escala foi montada com perfeição, como sempre é. Minha função hoje é garantir a segurança das Princesas. Não que alguém ache que a Princesa Kya precise da proteção de alguém. Meus olhos hoje estão voltados para a Princesa Layla.

Ela adentra o salão, altiva. Como sempre. Seus longos cabelos dourados balançando graciosamente conforme anda.

Ambas as Princesas estão agora diante do Ministro, para o que eu sei que será uma das piores notícias de sua vida. O Ministro se reuniu conosco mais cedo esta manhã para anunciar o falecimento do Rei. A notícia tomou todos nós de surpresa. Não havia quaisquer indícios de que o Rei estivesse doente; a alternativa seria que alguém teria sido capaz de passar pela segurança real e atentar contra a vida do Rei. E isso não é possível. Uma fatalidade terrível. O Ministro se fez muito enfático de que essa notícia não deveria em nenhuma hipótese deixar os muros do Castelo. E então as Princesas foram trazidas aqui.

Princesa Layla desata a chorar. Princesa Kya discute com o Ministro por alguns segundos e sai em disparada pelo corredor norte. Layla desaba no chão, o corpo tremendo, incapaz de controlar seu choro e tudo o que quero é ir até ela e abraçá-la.

A Princesa desperta esse tipo de reação em todos que estão ao seu redor. Princesa Kya é forte e determinada, considerada arrogante e prepotente por alguns, mas não concordo. Ela é esperta e preparada para o cargo que está prestes a ocupar e sabe o que precisa ser feito. Admiro sua força. A Princesa Layla, ao contrário... toda a população a ama, por sua doçura e carisma. Parece frágil aos olhos e todos queremos protegê-las. Eu quero protegê-la. É surpreendente como irmãs podem ser tão diferentes quanto o dia e a noite. A única coisa em comum entre as duas são os olhos cristalinos como os rios do Reino de Fora.

O Ministro ajoelha-se em frente à Princesa e sussura alguma coisa em sua direção. Ela acena com a cabeça e enxuga as lágrimas. O Ministro acena com a mão direita na minha direção, e não demoro mais do que dois segundos para chegar onde eles estão.

- Acompanhe a Princesa até o salão de trabalho da Sanatrix, por favor - diz, e ofereço meu braço, que ela aceita timidamente e usa de apoio para se levantar.

- Obrigada, Willahelm - diz, ao se levantar. Solta o meu braço e usa as duas mãos para arrumar o vestido perfeitamente arrumado, o tom rosa suave mergindo com sua pele branca. A Princesa seca suas lágrimas gentilmente e eu regozijo-me por dentro por ela lembrar meu nome. Layla sorri tristemente na minha direção e sei que está esperando que eu mostre o caminho. Aceno com a cabeça e indico o caminho ao corredor norte com o braço, e sigo-a quando ela começa a caminha na minha frente.

A Princesa anda a passos constantes à minha frente e tento manter uma distância respeitosa. Layla anda de cabeça baixa, mexendo distraidamente com o anel em formato de flor que usa na mão direita. À distância é possível ouvir as vozes da Sanatrix e da Princesa Kya. A conversa fica mais clara quando chegamos à porta do salão.

- De qualquer forma - ouço a Sanatrix dizer, olhando para a Princesa Kya, que escara fixamente o corpo inerte do Rei sobre uma grande mesa de madeira. Faço uma rápida oração aos Deuses, traçando desajeitadamente em meu peito o símbolo do Deus da Vida e da Morte - vou ser capaz de lhe fornecer respostas mais precisas em alguns dias. Após a autópsia.

- Autópsia? - Princesa Layla grita em uma voz esganiçada, fazendo com que sua irmã salte assustadamente da cadeira. Fica claro que ela não havia notado nossa presença até esse momento. A Sanatrix, contudo, apenas olha em nossa direção e acena para mim com a cabeça, gesto que retribuo.

- Princesa. Sim, estava explicando para a sua irmã que teremos mais resposta sobre a morte do Rei depois de mais exames, e uma autópsia.

Layla enrijece o corpo levemente e levanta a cabeça, olhando fixamente para a mulher mais velha.

- Você não vai encostar no corpo dele! - rosna.

- A autópsia é essencial para determinar a causa da morte do Rei, Princesa - explica calmamente. A Sanatrix é uma mulher já no fim de sua vida. Ninguém sabe ao certo há quanto tempo presta seus serviços ao Palácio, mas as marcas da idade já são visíveis em seu corpo não tão forte quanto um dia foi. Cabelos brancos podem ser vistos nas laterais de seu rosto, o brilho começa a se esvair de seus olhos. Nem por isso apresenta uma postura frágil, talvez exatamente o contrário. Os anos vividos fizeram com que sabedoria e experiência se acumulassem até seus ossos e exalassem em cada palavra calmamente dirigidas a quem fosse. Soldados ou Reis, ninguém questionava sua sabedoria. Sorte têm aqueles com a oportunidade de aprender com ela.

- Kya - Layla choraminga olhando suplicante para a irmã - Você não pode permitir isso!

O desespero é palpável na voz da Princesa mais nova e sinto minhas mãos inquietas, uso toda minha força de vontade para não tocá-la e ampará-la. Princesa Kya olha genuinamente confusa em direção à irmã. Levanta da cadeira e dá um passo em direção à porta onde estamos.

- Nós precisamos saber - ela diz gentilmente. A conversa ao redor do Reino é que a futura Herdeira ao trono não tem coração, mas um bloco de gelo no peito, incapaz de qualquer sentimento em relação à qualquer um. Fama que obteve por sua objetividade na hora de tratar qualquer assunto, fazendo o que precisasse ser feito. A prova que todos estão errados é a forma como ela trata a irmã, o carinho evidente em sua voz e a preocupação em cada movimento. Princesa Kya de dirige à Layla como se ela fosse um bibelô, frágil e a ponto de ser quebrado a qualquer sinal de movimento brusco. Não há dúvidas de que está sofrendo com a morte do Rei tanto quanto, mas suprime o sofrimento, em nome do dever ou por preocupação com a irmã, não sei dizer.

- Nós não precisamos saber! Nós precisamos respeitar o descanso do nosso pai! - brada.

- Layla...

- Não! Eu não aceito isso! Eu não concordo com isso! Essa mulher não vai abrir o corpo do Rei e profanar sua eternidade em nome de um reposta que não é necessária!

- A autópsia será realizada, Layla. Sinto muito se não está feliz com isso. Eu também não estou. Daria tudo para não estar nessa situação, para não precisar passar por isso. Mas estamos aqui! E isso precisa ser feito. E vai ser feito - Princesa Kya diz, ainda gentilmente mas em um tom de voz que não permite questionamento. Não permitiria questionamento de qualquer outra pessoa, mas no entanto Layla não desiste.

- Não! - brada mais uma vez - Eu não vou permitir isso!

Vejo as feições da Princesa Kya enrijecerem quando Layla diz que não permite. A Sanatrix olha em nossa direção com a sobrancelha levantada em questionamento silencioso, e nós dois sabemos qual o problema.

O Rei está morto. Kya é a Rainha do Reino do Norte agora. E não importa o quanto ame sua irmã, ela foi criada para isso e treinada para esse dia pelos últimos duzentos anos.

- Minha decisão está tomada - diz, quase por entre os dentes - Comece o quanto antes, por favor, Sanatrix. Cuide disso como se fosse o seu próprio pai.

Sanatrix acena com a cabeça e se dirige ao canto do salão para o que eu suponho que sejam os preparativos iniciais.

- Os Deuses não concordariam com isso! - Layla grita no que posso ver que é um último recurso desesperado para chamar atenção de sua irmã e manter a integridade do corpo de seu recém-falecido pai. Lágrimas começam a brotar da lateral de seus olhos. Kya começa a andar em direção à saída da sala.

- Os Deuses podem vir reclamar comigo - diz, encarando-a fixamente por um segundo antes de sair pela porta, cumprimentando-me no caminho.

- Eu não concordo com isso - Layla choraminga, baixo demais para ser ouvida pela irmã, que não está mais em nenhum lugar que possa ser vista.

Rainha Kya se foi, sua palavra final foi dada.

Layla olha para o corpo do Rei a distância por alguns segundos, levanta a cabeça e ajeita a postura. Alisa o vestido com a duas mãos, dá meia volta e sai da sala.

Sou deixado sozinho, de pé na entrada do salão, com nada além de uma névoa do doce perfume de Layla embriagando meus sentidos.

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