Capítulo 27
Aquela garotinha insolente!
Mesmo há milhas de distância, continua atrapalhando minha vida. Seria engraçado se não fosse trágico. Bebo um gole generoso de vinho antes de levantar da cadeira, arrastando-a contra o chão de maneira audível.
Não consigo decidir o que fazer. Continuo a encarar o pedaço de papel esverdeado enviado pelos governantes do Reino de Fora e odeio a forma como tudo foi orquestrado. Minhas opções são duas, somente. Posso expor sua conspiração e iniciar uma guerra entre os Quatro Reinos, ou posso fingir que nada aconteceu e prosseguir com meus planos iniciais.
Não me importo com a guerra, deixe que se matem. Menos pessoas em meu caminho. O problema com isso é que se o resto do mundo souber que Kya, mesmo estando tão longe, possui tanta influência sobre governantes dos outros Reinos, minha cabeça estará à prêmio.
Não consigo entender. Não consigo entender como essa garotinha conseguiu fazer tudo isso em menos de um dia. Foi todo o tempo que ela teve entre a Cerimônia e ser retirada arrastada para fora do meu Reino como uma boneca de pano. Como, Kya? Como?
E o problema em simplesmente ignorar o que está acontecendo é que existe a possibilidade monstruosa de tudo isso explodir em cima de mim mais cedo ou mais tarde. Se estão dispostos a sequestrar um rei, Lorenzo e Samantha estão claramente dispostos a ultrapassar todos os limites aceitáveis no nome de Kya. Tudo bem. Gosto de jogar contra pessoas que possuem as mesmas regras que eu: nenhuma.
Faltam quatro dias para o casamento. Tudo que eu preciso fazer é manter tudo sob controle por quatro dias.
Malditas tradições demoradas. Eu não tenho quatro dias, preciso disso para amanhã. Para hoje.
Exasperado, caminho em direção a porta e a abro quando ouço batidas firmes contra a madeira. Estou pronto para gritar, rechaçar quem quer que seja pela intromissão, quando vejo Hadaward do outro lado do batente. Suspiro, irritado, e abro caminho para que o príncipe entre.
- Precisamos conversar – ele diz, sentando-se na cadeira, uma perna cruzada sobre o joelho, as mãos entrelaçadas em seu colo, postura ereta. Paraliso por um segundo. Algo não está certo. Além, é claro, de todo o resto que já está errado. Algo na postura dele não está certa.
- Pois não, Alteza – respondo, cuspindo falsa cordialidade, caminhando em sua direção. Mudo de ideia e atravesso o escritório, sentando-me atrás da mesa. Ele pode ser membro da família real, mas esse ainda é meu escritório. Não vou me privar de deixar claro que as decisões são tomadas por quem está sentado do lado de cá da mesa. E somente eu sento nessa cadeira.
- Preciso que esse casamento seja realizado o quanto antes – ele diz, direto, sem rodeios. Concordo com a cabeça, satisfeito por estarmos na mesma página. Preciso lembrá-lo das complicações, contudo.
- Eles estão com seu pai, Alteza, e-
- Que matem o velho então. Não me importo. É um favor que me fazem, aliás. O Sul passa para o meu comando mais rápido, e posso, sem dúvidas, usar aquelas minas ao meu favor. Meu querido pai, por algum motivo, nunca explorou aquelas terras em sua máxima potência, e não vejo a hora de corrigir seu erro.
Encaro-o, usando de todo meu autocontrole para não deixar meu rosto externar toda minha incredulidade. O que é esse discurso agora? Desde quando o principezinho do Sul está interessado em quaisquer dessas coisas? Desde que chegou aqui, Hadaward fizera questão de deixar claro que não tinha qualquer interesse em política, que só o que queria era uma vida fácil, rica e com uma bela mulher ao seu lado, sem que tivesse qualquer trabalho para manter isso. Estava mais do que feliz em entregar o governo nas mãos de outra pessoa para manter seu estilo de vida irresponsável.
Será que esse infeliz estava fingindo o tempo todo?
- Certo – digo, com um pigarro. – Talvez não seja tão simples assim aumentar a produtividade das minas, contudo. Você tem um conselho, um Parlamento, para respeitar. Foi assim que vocês organizaram o poder em seu Reino, você não pode simplesmente tomar decisões e passar por cima do poder dos representantes escolhidos.
Ele se levanta, abruptamente da cadeira. Arruma a roupa e passa a mão pelo cabelo, frustrado.
- Os Reinos estão em guerra, Ministro – ele sibila, e eu balanço a cabeça negativamente.
- Não, não estão – pondero. Ainda.
Ele caminha em direção à porta e, segurando a maçaneta, vira-se para mim.
- Vão estar quando eu anunciar publicamente o sequestro de meu pai pelo Rei do Reino de Fora – ele ameaça, e eu me arrumo na cadeira. Era só o que me faltava. Me livro da Kya e arrumo outro louco com sede por sangue e desgraça. Qual o problema dessa nova geração que não sabe resolver as coisas por baixo dos panos? Qual a necessidade de explodir o mundo em chamas e destruição a cada oportunidade que aparece?
- Mas você não vai fazer isso – afirmo, vencendo a vontade de perguntar o que no inferno está passando pela cabeça dele.
- Não vou. Desde que esse casamento ocorra como planejado – ele diz e sai da sala, batendo a porta em um estrondo.
Ele tem razão. Precisamos que esse casamento aconteça, mas não somente pelos motivos infantis e voluntariosos de Hadaward. A aura de Kya ainda plana por sobre todos nós. Ela sempre foi a grande promessa do Norte. O futuro do governo. A esperança do povo. A verdade é que aquela garota impetuosa se fez querida por muitos em suas andanças. E mesmo os que desgostam de sua postura não podem negar sua competência, mesmo com o antigo Rei ainda no governo. Sempre foi de conhecimento público, ainda que não oficialmente, que Kya era o verdadeiro braço direito de seu pai, não eu. E o Reino de Fora está ao seu lado agora. Se esse casamento falhar, é como se o Norte inteiro estivesse falhando, e a presença de Kya vai parar de ser apenas esperada, e começar a ser demandada. Ela vai provar sua força, a força de seus aliados, mesmo em sua ausência. E se, no pior dos cenários, ela voltar viva, minha chance de assumir o trono passa a ser inexistente.
E isso não pode acontecer.
Preciso convencer Layla a adiantar esse casamento, e preciso fazer isso agora. Não temos quatro dias. Não podemos nos dar ao luxo de esperar o tempo passar e torcer pelo melhor. Não aguento mais torcer para que Kya esteja morta. Preciso ter certeza de que ela está, mesmo que isso signifique matá-la com minhas próprias mãos.
Saio do escritório e caminho apressadamente pelos corredores, seguindo em direção aos aposentos de Layla. Estaco no caminho quando a vejo parada à sua porta, seu corpo recoberto com um roupão de fina seda, seus cabelos despenteados, um sorriso sonolento em seu rosto. E, parado no corredor, olhando em sua direção, Willahelm.
Inacreditável.
Essa garota consegue me surpreender todas as vezes. Quando eu acho que sua estupidez atingiu o limite máximo, aqui ela está. Com esse sorriso idiota, flertando com um guarda.
- Boa noite, Alteza. – A voz grossa de Willahelm mostra reverência, coisa que ele nunca conseguiu esconder. Qualquer idiota consegue enxergar o amor platônico que sente pela princesa. Quem pode culpá-lo, afinal?
Layla tem esse poder que faz todos caírem aos seus pés, o que é muito, muito útil para mim. Kya é respeitada, sim. Aqueles que prestam um pouco mais de atenção ao mundo lá fora conseguem entender sua importância. Mas Layla... A adoração por Layla é unânime. Por onde passa, sua presença é idolatrada. Ela sorri, e uma multidão cai aos seus pés. O único motivo para não ter esse Reino submetido às suas vontades é que ela verdadeiramente acredita que sua irmã é a merecedora. Ela não tem qualquer interesse no trono. Mas eu tenho. E ela não vai estragar tudo tendo um caso com um guarda qualquer. Mando esse homem de volta para o Reino de Dentro antes do raiar do dia se for necessário.
- Layla, querida – chamo seu nome quando ela começa a voltar ao quarto, após o homem partir. Ela se assusta com a minha presença e me olha com os olhos arregalados, como uma criança que foi pega no ato de alguma travessura. Ela desajeitadamente tenta arrumar o cabelo e enrola o roupão mais apertado ao redor do corpo, na tentativa de cobrir cada centímetro de pele exposta. – O que Willahelm estava fazendo aqui? – pergunto, sem rodeios. Ela gagueja e, por fim, não me responde, o que apenas prova que minha percepção estava correta. A princesa e o plebeu. Era tudo o que eu precisava. Balanço a cabeça, deixando clara minha decepção.
Ela abaixa a cabeça, envergonhada. Rubor toma conta se sua face, colorindo suas bochechas com um tom rosado. Suspiro, irritado.
- Precisamos adiantar a data do seu casamento, Layla – anuncio, e ela levanta a cabeça em um só movimento, os olhos arregalados. – O mais rápido possível.
- De forma alguma, Ministro – ela responde, enfática. – Celebrações são muito importantes para esse Reino e faremos tudo como manda a tradição. As preparações já foram reduzidas à metade do tempo, é o máximo que posso aceitar.
- O Reino está em risco, Layla – insisto, exasperado.
- Nada está em risco, Ministro! Nada! – ela eleva o tom por alguns segundos, sua voz fina alcançando decibéis agudos que me tomam de surpresa. Jamais imaginei que viveria para ver o dia em que ela elevaria a voz para alguém, muito menos para mim. Ela esfrega as mãos no rosto e, quando olha novamente para mim, posso ver o cansaço em suas feições. – As tradições serão seguidas. Se você conseguir fazer com que tudo fique pronto da maneira como deve ser em menos de quatro dias, então o casamento pode ser adiantado. Caso contrário, essa é a última vez que temos essa conversa.
Ela vira de costas para mim e adentra seus aposentos. Bloqueio a porta com a mão, impedindo-a de fechar.
- E no meio tempo você alimenta alguma espécie de romance tórrido com um membro da guarda – alfineto – Vou precisar transferi-lo para outra função, Layla? Contar a Hadaward e deixar que seu futuro marido o confronte em um duelo por sua honra? O execute por atrever-se a adentrar aposentos de uma dama da família real? – pergunto, enraivecido. Uma fúria súbita toma conta de seus belos olhos esverdeados e ela dá um passo em minha direção.
- Minha vida particular não diz respeito a você, Ministro. Isso passa completamente dos limites – ela sibila, inquieta, deixando claro que não vê a hora de se livrar de mim. Dou um passo para trás, liberando a porta para ser fechada. Ela me encara por um segundo a mais.
- Me diz respeito a partir do momento em que selamos um acordo político com outro Reino e a punição por trair esse arranjo é a morte – ameaço. Me esforço para deixar clara cada palavra que digo, para que ela entenda a gravidade da situação e não se atreva a rompantes irresponsáveis a essa altura do jogo. Ela inclina a cabeça levemente para a direita, apoiando os cachos presos em um coque contra a porta, me fuzilando com o olhar.
- Sorte a minha que quem selou o acordo foi você, então – ela rebate, e eu congelo. O que ela está insinuando? É claro que o portador da mensagem fui eu, mas por ordens dela, ninguém mais.
E é, então, que a realidade me acerta como o coice de um cavalo arredio. Todas as comunicações escritas foram assinadas por mim, todos os acordos verbais foram selados por mim. E a única testemunha de que Layla me autorizou a tudo isso é Willahelm.
Pelos Deuses, Layla.
Boquiaberto, dou um passo para trás. Primeiro Hadaward, subitamente interessado em sua posição no trono. Agora Layla, nascida e criada para ser uma bela dama domesticada, puxando da manga uma cartada inesperada. Para meu alívio, a seriedade em suas feições é desarmada apenas alguns segundos depois e seus olhos começam a encher de lágrimas. Ela suspira e abaixa a cabeça.
- Minha irmã se foi. Meu noivo se foi. Você está tentando me forçar em um casamento político com um homem que eu desprezo – ela levanta a cabeça em minha direção e vejo lágrimas escorrendo por suas bochechas, borrando levemente sua maquiagem. – Não me tire a última coisa boa que tenho nesse Castelo. Faço o que você quiser, o que for preciso para manter o Reino. Mas não o afaste de mim – ela implora, a voz trêmula indicando toda sua instabilidade emocional. Suspiro aliviado e aceno positivamente com a cabeça.
- Vá dormir, Layla – digo, enquanto viro as costas, caminhando para meus próprios aposentos. Ouço a porta de fechar com um clique atrás de mim.
Um drama a menos para lidar.
Talvez seja uma boa coisa que ela se ocupe com esse romancezinho proibido. Assim, sua linda cabecinha fica concentrada nisso, e não em ficar no meu caminho.
Agora preciso descobrir como fazer todas as ofertas aos Deuses o mais rápido possível para que esse casamento se celebre antes que tudo comece a fugir do meu controle de vez.
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