Capítulo 26

- Pelos Deuses, me deixe em paz! - respondo rispidamente Tobiah após ele chamar meu nome na tentativa de fazer com que eu mova. Não consigo me mover, não quero me mover. A visão das terras a minha frente me tira o ar. É uma réplica perfeita da minha casa, do meu Reino. O Castelo, que agora posso ver melhor, de perto, é exatamente igual ao castelo construído no Norte. Castelo esse onde não dormi por sequer uma noite após receber o título que esperava desde criança.

É trágico como a vida segue por caminhos completamente diferentes do esperado. Estou tão cansada que sequer consigo me permitir aproveitar, ou me espantar, com o cenário a minha frente. Só quero que isso tudo acabe para que eu volte para casa.

Começo a caminhar lentamente em direção aos três que estão parados com seus pés fincados na grama verde clara. É a primeira vez em dias que não vejo nada de coloração arroxeada, ou árvores espinhentas, ou horizontes a perder de vista. É estranha a sensação de não questionar mais para onde devo ir, onde está esse Oeste que nunca chega. Eu cheguei, e quase inteira. Laurunda machucou o braço nas Ruínas, mas, fora isso, todos os outros também estão inteiros. No fim das contas, correu tudo bem. Estamos a tão oeste quanto oeste pode estar e acabo de ser transportada por homens que estavam à minha espera, o que significa que minha jornada está no fim. E foi... fácil demais. Não parece certo.

A pergunta agora é: o que vem pela frente?

- E o que exatamente nós vamos fazer com os outros três? – Ouço um dos homens perguntar no ouvido da mulher que está entre eles. Seus pés descalços tocam o chão e sua vestimenta não é nem de longe tão requintada quanto a dos outros dois. Sinto um arrepio percorrer-me a espinha. Reconheço esse homem. Ele não se dá ao trabalho de disfarçar o tom de provocação e vejo a mulher dispensá-lo com a mão em um gesto de desdenho. Esses olhos. Olhos julgadores que agora miram em minha direção. Arath, O homem que gritou comigo em meu sonho no barco, dizendo que não confiava sua vida a mim. Porque sua vida estaria em minhas mãos? Quem é ele, afinal?

- Bem-vinda, querida. – A mulher, com seus longos cabelos negros enrolados em um coque complicado no topo de sua cabeça me recebe com um sorriso acolhedor e o sentimento de familiaridade se estende a ela também. Mas não mantenho meu olhar preso à sua pele cor de oliva por mais do que dois segundos. Minha atenção é diretamente atraída ao outro homem, que até então se manteve de cabeça baixa e não olhou em minha direção.

Meu peito se enche com um sentimento de familiaridade e amor até então desconhecidos. Adormecidos. Zader. Seu nome brota no fundo da minha mente e sinto meu coração acelerar sem que eu faça qualquer coisa para isso. Me sinto impelida em sua direção, memórias silenciosas invadem minha mente, inundando com cores, sons e cheiros minha mente confusa. Lembro-me dos sonhos. Lembro-me de outra vida. Uma vida em que não houve um dia em que aquele homem, parado, de pé, olhos encarando os próprios pés, não estivesse ao meu lado, e uma saudade intensa e inexplicável me consome.

- Zader – sussurro seu nome, mais para mim mesma do que para qualquer outra pessoa. Ou acho que sussurro, porque é o suficiente para que ele olhe em minha direção, assustado. Seus olhos violetas estão arregalados, sua boca cai aberta. Meus olhos se enchem de lágrimas e, em um impulso, corro em sua direção e pulo em seu colo.

Ele me segura, firme, protetor, e me envolve em seu abraço quente. Afundo meu rosto em seu pescoço e me entrego às lágrimas. Permito-me chorar por todas as perdas, por toda a dor, por todo o sofrimento. Me isolo do mundo, bloqueando minha mente contra todo som. Não quero pensar em mais nada. Não quero pensar na Profecia e todo o tempo que eu tenho sido forçada a ficar longe de casa. Não quero pensar em Tobiah partindo meu coração contra todas as expectativas e todos os cuidados que tomei no caminho. Quando soluço e sinto meu corpo inteiro tremer, ele me abraça, mais forte, prendendo-me contra seu corpo.

- Você está em casa agora, Kya – ele sussurra com a voz embargada, acariciando meu cabelo. – Você está comigo.

Me liberto de seu abraço apenas o suficiente para olhar em seus olhos e contemplar o sorriso acolhedor em seu rosto.

- Senti tanto sua falta – ele sussurra. Abro a boca para responder, mas as palavras fogem de minha boca. O que posso responder? Que senti sua falta também? A verdade é que, até dois minutos atrás, sequer sabia se sua existência. Não tenho certeza do que é esse sentimento avassalador de proximidade que me toma o peito e me faz querer estar perto desse homem que não sei quem é. É como uma conexão antiga, que dispensa explicações racionais. Como se minha alma estivesse entregue em suas mãos e a ele coubesse a decisão sobre minha vida e minha morte. E, ainda assim, sei com todo meu coração que posso confiar nele com tudo que tenho e tudo que sou. Ele sorri.

- Você não se lembra de mim – constata e, apesar de um sorriso ainda estampar seu rosto, posso ver tristeza em seus olhos. Quero consertar isso, quero mentir e dizer que lembro. Sinto meu coração apertar em meu peito. – Está tudo bem – ele garante, como se lesse meus pensamentos turbulentos. – Sua mente ainda não lembra de mim, há muito que você ainda precisa aprender sobre si mesma. Mas seu coração me reconhece e te trouxe até mim, e isso é tudo o que importa. Não consigo evitar de sorrir. Sequer tento.

Quando ele me solta, é como se a realidade me atingisse novamente de uma vez. Tomo consciência das pessoas ao meu redor e viro-me a tempo de ver Tobiah desviar os olhos de mim e caminhar para longe, de volta para o barco, parando no caminho para dizer algo a Cathal, que acena com a cabeça em concordância.

- Fico feliz que vocês tenham se reencontrado – a mulher diz, mas consigo perceber uma nota de irritação em sua voz. – Sei que fez uma longa viagem, mas não temos tempo para que eu conceda a você os confortos desse lugar. Precisamos continuar caminhando.

- Espere – peço, e ela me olha dessa vez com irritação mal disfarçada. Começo a me preocupar com sua postura hostil disfarçada sob um sorriso educado. Conheço esse sorriso. É a mesma expressão política falsa que vi estampada no rosto de dezenas de homens durante toda a minha vida, uma falsa áurea de respeito para me manter calada e incapaz de reclamar de falta de cordialidade. – Tudo isso, toda essa jornada – começo a falar e me perco em meus pensamentos por um segundo antes de colocar em ordem o que precisa ser perguntado. – O que é esse lugar, quem são vocês, e o que, em nome dos Deuses, eu preciso fazer para acabar logo com isso?

A mulher sorri, um sorriso debochado, e, dando um passo em minha direção, segura minhas mãos. Ela me encara como se estivesse a ponto de explicar algo para uma criança de cinco anos de vida que é incapaz de entender o mundo por si só.

- Este lugar é a sua casa, nós somos os Deuses e você vai fazer exatamente o que eu mandar.

Percebo que não sinto mais dor alguma em minha perna após caminharmos por quase uma hora. A marca ainda está aqui, como uma cicatriz mal curada em meu tornozelo, dormente, sem tato. Essa ilha, esse pedaço de terra isolado ao extremo Oeste, não parecia tão grande quando a vi de longe, do outro lado da Baía dos Sonhos, quando toda minha atenção estava voltada àquele castelo que agora parece tão perto a ponto de eu poder tocá-lo. A mulher, que descubro se chamar Neka, aponta com a mão por cada lugar em que passamos. Uma plantação de algum vegetal desconhecido à esquerda. Uma pequena comunidade de tecelões em algum ponto onde minha visão não alcança. Uma vida estável e completamente harmoniosa em uma comunidade não tão pequena assim.

Tudo parece calmo demais, pacífico demais, perfeito demais. Me pergunto que tipo de podridão se esconde nas camadas mais profundas dessas vielas colorida. Me esforço para prestar atenção a cada passo que damos, para absorver os detalhes únicos e inéditos que surgem à minha vista a cada segundo, mas a verdade é que tudo parece imensamente familiar. As palavras da mulher ecoam na minha mente. Essa é sua casa. Como pode ser minha casa se toda memória que tenho é de uma vida construída no Norte, há quilômetros de distância daqui?

Nós somos os Deuses. Percorro meus olhos por Neka que, de costas para mim, andando na minha frente, segue a apresentar cada pedaço dessas terras em um texto rapidamente recitado como se estivesse se preparando para isso por anos. Quem é ela? Quem é ela de verdade? Me irrita o fato de ela, claramente, esperar que eu simplesmente aceite todas as explicações dadas como se tudo isso não fosse o maior absurdo que já me aconteceu. A irritação mal contida a cada vez que pergunto algo, questiono algo, me dispara um sinal de alerta no fundo da mente. Não consigo confiar nela.

Olho por sobre o ombro e me deparo com Laurunda entusiasmadamente conversando com Zader, que me olhar com um sorriso encorajador antes de voltar sua atenção para ela, sem poupar esforços em responder todas as perguntas feitas por ela, cujo os olhos brilham, como uma criança que vê o mar pela primeira vez. Ela é curiosa, essa mulher. Sempre impetuosa, beirando a fala de educação, sem disfarçar por um segundo a repulsa que sente por mim. E aqui está ela a ponto de dar pulos de felicidade.

Cathal está ao seu lado, sua postura militar impecável, percorrendo com olhos ferinos os arredores, como se estivesse fazendo anotações mentais para cada coisa que vê. O que esse homem está fazendo aqui, é um mistério para mim. Uma das perguntas muitas sem resposta que assolam minha mente. Mas no momento, não está no topo da lista de preocupações que me consomem. Estou agitada, sinto meu corpo inquieto, como se preparada em antecipação para um terremoto prestes a criar rachaduras irreparáveis nas terras sob meus pés.

Não me atrevo a olhar para Tobiah. Não atrevo a dar a meu coração força para desestabilizar o pouco controle emocional que me resta a essa altura da caminhada. Não posso lidar com isso agora, e não quero lidar com isso nunca. Ele terá que arcar com as consequências de suas escolhas e não vou me punir por isso. Já é punição o suficiente ter que admitir a mim mesma que me permiti envolver quando tinha certeza que detinha todo o controle sobre meu próprio coração. Ele está apenas colhendo o fruto de seu próprio trabalho de plantio mal feito. Sorrio. É um pensamento irônico que o herdeiro das terras responsáveis por cultivos seja tão falho quando posto em uma situação em que ele próprio precisa comandar uma colheita, a única diferença sendo não se tratar de espigas de milho e sim de sentimentos mal resolvidos e escolhas pobremente feitas.

O sorriso escorrega do meu rosto no exato segundo em que percebo que realmente não faz sentido alguém treinado a vida inteira para analisar cada detalhe e consequência de suas escolhas ter optado por um caminho tortuoso como ele fez. Ergo os olhos em sua direção. Algo não está certo. Pelos Deuses Tobiah, o que você fez?

Viro-me em sua direção, decidida a, finalmente, confrontá-lo, mas sou interrompida quando Neka retoma a fala.

- Acredito que isso seja tudo o que precisa ser mostrado por hora. Se tudo correr como o planejado, terá tempo de sobra para conhecer cada pedaço dessa ilha – anuncia e minha atenção é, contra minha vontade, voltada a ela. Aceno positivamente com a cabeça, concordando. Estou ansiosa. Nervosa. Confusa e agitada. Incerta sobre como devo me sentir. A antecipação corrói meu juízo e desestabiliza minhas certezas, e quero gritar. Gritar, berrar, fugir, implorar para que tudo acabe de uma vez por todas, implorar para que eu faça o que precisa ser feito e volte para minha vida.

- Imagino que você esteja esperando por respostas, querida – a mulher diz. – E eu estou pronta para dá-las a você. Não foi por hospitalidade que os trouxe até aqui; a explicação para todos os seus dilemas encontra-se logo à frente, alguns metros de distância de onde você está. – Quando abro a boca para dizer a ela que devemos prosseguir, então, e acabar de uma vez por todas com esse pesadelo, ela sorri um sorriso pesaroso. – Só tem um problema, Kya.

- Que problema? – pergunto em um suspiro cansado. Tivemos paz pela última hora, já deveria ser óbvio que algo estaria errado, que há um preço a ser pago.

- Essa é a sua Profecia e você já carregou peso extra por tempo demais. Você vem conosco, mas deve vir sozinha. Precisa escolher entre me acompanhar para além do monte à sua frente e enfrentar o seu destino ou permanecer onde está. Mas seus amigos não vêm conosco. Eles precisam ser descartados. É hora de decidir o que é mais importante para você. Hora de decidir onde sua lealdade está.


Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top