Capítulo 25

Lembro-me do exato dia do enterro de meu pai. O dia da cerimônia, o dia que que tudo em minha vida começava a tomar um rumo completamente diferente do que eu esperava. Lembro de estar de pé no topo do monte, encarando a imensidão azul do mar aberto à minha frente, me perguntando o que existiria depois do horizonte. Ainda não sei que mistérios estão escondidos para além do que a vista pode alcançar por sobre as águas tranquilas que isolam as nossas terras, mas descobri muito mais do que jamais pensei para o outro lado.

A cor âmbar dos homens à minha frente é fascinante. Brilham, como o sol. Sua postura ereta parece não aceitar questionamentos, mas tenho a sensação de que não apresentarão qualquer resistência se eu decidir virar as costas e voltar pelo caminho por onde eu vim. Vejo Tobiah à minha frente, prostrando-se entre mim e os dois desconhecidos, e suspiro. Não sou capaz de sequer começar a pôr ordem no emaranhado de sentimentos que assolam meu peito agora. A verdade é que quero chorar. E rir. Rir da ironia ridícula que foi ser traída a essa altura da jornada.

Estendo meu olhar para além do horizonte, o horizonte oposto ao que eu estava encarando naquele dia, de pé naquele morro. Pela janela do meu quarto, via o sol nascer, brotar pelas águas cristalinas, subindo ao céu, imponente. Agora, vejo o sol se pôr, a exato oeste, por detrás da grande construção que parece tão perto a ponto de eu poder tocá-la. Me pergunto o que é aquele castelo que, olhando agora, de perto, parece tão similar ao meu castelo. Sei que vou ter a resposta para isso logo.

Toco o ombro de Tobiah, que me olha assustado. Bufo e reviro os olhos. Ele me encara como um animal acuado, como uma presa esperando o bote do predador faminto, e é bom saber que restou um mínimo de bom senso nele. A minha vontade é, sim, gritar e ameaçar arrancar sua cabeça fora pelo que fez, pela completa ausência de explicação, por ter me tomado por tola e ter, de fato, feito eu me sentir assim. Tudo que consigo sentir agora é um misto de decepção e raiva, mas não dele. De mim. Não deveria ter esperado nada além disso, e esse é um erro que me recuso a cometer novamente.

Sem olhar em sua direção, sem me dar ao trabalho de encarar o que eu sei que são olhos pedantes, aceno para que ele saia da minha frente, e ele obedece.

São gêmeos. Os homens á minha frente são gêmeos. Como demorei tanto a notar? São a cópia perfeita um do outro, em postura e aparência. É engraçado pensar como Layla e eu somos tão diferentes assim. Quase não faz sentido. Ela, com seu sorriso fácil, personalidade doce, longos cachos dourados e coração inocente, sempre perfeitamente adornada, fazendo de sua beleza seu cartão de visitas à qualquer coração disponível; eu, bom... eu. Não preciso de um espelho para saber que minhas mexas escuras estão embaraçadas o suficiente para serem a casa perfeita de uma família de ratazanas desabrigadas. E eu realmente não me importo. A única coisa que me importa, a única coisa que sempre me importou, é fazer o que quer que seja preciso para, finalmente, sentar no meu trono.

E está claro que, nesse momento, o que precisa ser feito é seguir a dupla de homens desconhecidos que sequer se deram ao trabalho de apresentar-se para o que eu suponho ser um barco que vejo à distância.

- Bem, – respondo – estou aqui. Agora o que?

- Temos ordens para garantir que sua travessia seja feita em segurança. – o gêmeo da direita responde, ainda sem que qualquer apresentação seja feita. Olho novamente para a ilha distante e solto um grunhido de insatisfação. Mais água. Uma faixa gigantesca de água dessa vez. Espero que a madeira dessa embarcação seja feita de algo resistente o suficiente para não desintegrar em contato com a água, ou eu estou condenada à morte mais patética da história da humanidade.

- Ordens de quem? – arrisco perguntar, e eles se limitam a continuar me encarando sem qualquer expressão facial. Ótimo. Se querem assim, que assim seja. – O que estamos esperando então?

O gêmeo da esquerda indica com a mão o caminho a ser seguido, mas eu não me movo. São poucos metros de caminhada e, comparado com tudo que andei até chegar aqui, esse distância não é nada. Mas eu estou tão cansada. Minha perna dói o suficiente para que eu queria arrancar aquela faca de aparência enferrujada da mão de um dos gêmeos e arrancar meu tornozelo fora. Malditos espinhos. Maldita escolha errada que fiz. Quando a Profecia falou da necessidade de eu tomar cuidado com minhas escolhas, imaginei uma catástrofe em grande escala, chuva de cacos de vidro ou infestação de pragas nas lavouras. Não imaginei que a consequência seria tão pontual, um lembrete torturante de que, no fim das contas, o que está em jogo aqui é a minha vida.

- Acha que é uma boa ideia ir com eles, Majestade? – Cathal sussurra em meu ouvido, e posso sentir a tensão em sua voz. Não vou culpa-lo, nem mentir dizendo que esse pensamento não cruzou minha mente. Mas não acho que eu tenha nenhuma escolha além dessa. O sol vai nascer em bolas de fogo púrpura antes de eu sequer considerar atravessar a nado. Limito-me a balançar a cabeça positivamente e coloco-me a andar com um grunhido de dor.

- Kya... – ouço Tobiah sussurrar, exitante. Sem olhar para ele, levanto a mão fazendo-o calar-se. Sei que vai oferecer ajuda, e eu quero aceitar. Mas não sou capaz de olhar em seu rosto. Não acho que vou ser capaz nesta vida.

- Não se atreva. – rosno e, mancando, forço meu corpo a seguir andando em linha reta.



- Isso é ridículo. E uma perda de tempo sem tamanho! – vocifero, em minha voz infantil presa em um corpo de criança teimosa.

- Não vou me dar ao trabalho de tentar te explicar de novo, Kya. Apenas aceite que precisa ser feito e pare de reclamar. – Zader, cansado e claramente frustrado, apertando os olhos com os dedos, profere em um sussurro resignado. Eu bufo, mas aceito. Não tenho mais do que dez anos, e tudo parece muito grande. As árvores parecem se estender até tocar o céu e meu olhos doem pelo brilho do sol intenso sobre mim. Quero voltar para a biblioteca e terminar a leitura dos manuscritos que encontrei perdidos por entre as prateleiras.

- Mais uma vez, Kya. – Zader tenta e eu reviro meus olhos, mas pego novamente a faca sem ponta surrupiada da cozinha. – Segure com o lado certo virado para cima. – ele orienta.

- E qual o lado certo? – pergunto, olhando para o talher.

- É exatamente isso que você precisa descobrir, Kya. Eu não vou estar lá para te dar a resposta quando for a Adaga na sua mão. Decida sozinha qual o lado certo e arremesse.

Tento abrir os olhos, sonolenta, tentando escapar de um sonho vívido ao mesmo tempo em que me esforço para prendê-lo em minha memória. Me reviro na cama e sinto uma mão quente tocar meu rosto antes de ser sugada mais uma vez por imagens perdidas.

- Ela está crescendo rápido demais. – ouço Arath sussurrar em uma altura que ele acha que não é alto o suficiente para que eu ouça. Mas eu escuto mesmo assim. Estou concentrada na leitura da minha tarefa do dia e não tiro os olhos do livro à minha frente. A última coisa que quero é que Neka, a Deusa e senhora suprema de todo o conhecimento existente no universo conhecido, comece outro de seus sermões sobre como ela sabe o que é melhor para mim. Sobre como ela sabe de tudo o tempo todo.

- Eu sei. – Neka responde, sentada a algumas cadeiras de distância da mesa onde estou alocada na grande biblioteca do Reino. – Tenho medo de que ela não tenha tempo para aprender tudo que precisa ser aprendido. – ela suspira. – Resta confiar que fizemos a escolha certa. Ela é o futuro que o Reino precisa. Ela tem que estar pronta.

Desperto, mas não o suficiente para conseguir obrigar meu corpo a sair do lugar quente e confortável em que estou deitada. Esse cheiro... Cheiro de sal, de mar. Estamos navegando? O barco, devo estar no barco.

- Tem certeza que ela está bem? – conheço essa voz. Um nome me vem à ponta da língua mas o perco tão rápido quanto ele surge.

- Ela está bem. Esse lugar não se chama Baía dos Sonhos apenas porque é um nome bonito. – essa voz eu não conheço. Ou conheço? Posso tê-la ouvido antes, mas não tenho um nome para associar. – Não se preocupe. Ela está apenas recuperando memórias perdidas de vidas distantes. Sonhos são instrumentos poderosos, são ferramentas importantes para entender o que vivemos antes desse tempo. Mas você já sabe disso.

- Eu sei? – a voz conhecida parece confusa.

- Você. Você tem uma lembrança importante de outra vida que vem comandando suas ações por muito tempo.

Quero perguntar sobre o que estão falando, quero levantar e participar da conversa. Poucas coisas me frustram mais do que não saber o que está acontecendo, mas não tenho forças. Sou novamente arrastada para a escuridão.

- Qual é o seu problema comigo? – grito, com as mãos para o lado. Posso sentir lágrimas em meus olhos, mas me recuso a derramá-las.

- O meu problema – Arath rosna em resposta, dando um passo ameaçador em minha direção. – é que você se comporta feito uma garotinha mimada que tem todas as respostas para tudo quando na verdade não tem ideia do que está acontecendo bem debaixo do seu nariz. Você tem responsabilidades a cumprir! Pare de achar que pode fazer o que quiser!

- Como se atreve? – brado em resposta, virando as costas para sair do escritório, pisando forte no chão, levantando poeira do tapete que há muito não é limpo. Paro de costas para ele, uma mão tremendo e a outra segurando pobremente o batente da porta. – Esse Reino é tudo para mim. Minha vida inteira. Eu morreria para mantê-lo seguro. – completo com a voz trêmula, verdadeiramente machucada pela acusação injusta.

- Eu sei que é. – ele admite, sua voz agora mais contida. – Mas a minha existência também depende de que você faça as escolhas certas, e não acho que você esteja pronta para tomar as decisões difíceis que estão à sua frente. Me desculpe se não estou confortável em confiar a minha eternidade nas suas mãos sem saber se você está disposta a sacrificar o que mais ama.

Fico em silêncio encarando o corredor. Não digo nada por um minuto inteiro, e Arath mantem-se em silêncio igualmente, deixando claro que quis dizer cada palavra proferida.

- Eu estou. – respondo com mais convicção do que meu coração de fato contém.

- Espero que sim.

Uma mão desconhecida me sacode com nenhuma delicadeza, arrancando-me de minha prisão em sonhos. Abro os olhos e ponho-me sentada em um movimento brusco que faz com que eu fique tonta por um segundo. Me deparo com Laurunda que é, de todas as pessoas, a última que imaginava estar aqui.

- Chegamos. – ela anuncia e eu aceno com a cabeça. Olho pela janela e vejo a costa rochosa da ilha que há pouco observava à distância. O que parece ser uma vila se estende por toda a extensão do que posso ver aqui, construções simples perfeitamente organizadas e, nas docas, três pessoas estão de pé. Dois homens e uma mulher observam em silêncio a pequena embarcação atracar.

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