Capítulo 20
Não sei dizer o que dói mais: os espinhos cortando minha pele em todas as áreas possíveis ou a admissão silenciosa de que cometi um erro. A Floresta de Espinhos é um erro, sempre foi um erro, e corrói minha alma admitir que optei por esse caminho porque estava com medo de encarar as águas traiçoeiras do rio. Foi uma escolha estúpida, tenho certeza disso. Mas vou morrer antes de admitir em voz alta.
Percorro meus olhos discretamente ao redor, absorvendo a visão dos galhos pontudos que parecem se mover de modo a tornar cada passo mais difícil. Meu tornozelo dói, uma dor aguda e constante, me lembrando a cada passo da decisão ruim que foi tomada. A luz do sol mal penetra por entre a copa enegrecida de folhas mortas que recobre o percurso e, por isso, não consigo evitar o sorriso de contentamento quando vejo o feixe de luz branca ao fim do que parece ser um túnel entre galhos deformados que formam uma passagem estreita.
Ouço xingamentos incessantes vindos de Laurunda e, por mais que queira me permitir ficar com raiva da completa falta de colaboração da mulher, não posso dizer que não dou razão ao seu descontentamento. Ela não devia estar aqui, nem ela, nem Cathal. Muito menos Tobiah.
Gostaria de poder dizer que eu não deveria estar aqui, mas a cada minuto que passo nesse lugar tenho menos certeza disso. Lembro-me dos livros empoeirados da sessão leste da biblioteca, aqueles que contam história e lendas, se inventadas ou não jamais saberei. Histórias relatando grandes aventuras e desafios, e pareciam todas ter o mesmo rumo: no momento em que o personagem aceitou seu destino, as coisas começaram a entrar em ordem. Meu destino é o trono, sempre foi e sempre será. Mas talvez já tenha passado da hora de aceitar que os percalços para isso não sejam os que eu planejei, não sejam os que eu treinei para seguir. Fui preparada para guerras, para acordos políticos, treinada com minha mente e não com uma espada. Não fui treinada para espinhos afiados cortando minha pele e deixando rastros de sangue escorrerem por meus membros.
Rio.
Não consigo controlar o riso histérico que escapa da minha garganta. Parando de andar, apoio as duas mãos em galhos afiados e, ignorando a pontada que alfineta minhas palmas, eu rio. Meu cabelo, suado e sujo, gruda na minha testa e pescoço, embolado e cheio de nós. Olho para frente, a passagem a apenas algumas passadas de distância e tudo que consigo fazer é rir. Rir do desastre que minha vida se tornou, rir das decisões que foram tomadas alheias à minha vontade, rir do rumo que tomo a cada dia. Tão rápido quanto vem, o riso se esvai e é substituído por uma onda de lágrimas enraivecidas. Não preciso olhar para os outros para sentir seus olhares preocupados queimando em minhas costas. Tenho certeza que pensam que perdi a cabeça, e talvez tenha perdido.
Perdi a cabeça há muito tempo, perdi a cabeça no Norte. Só demorei tempo demais para aceitar isso. Caminho a passos lentos e certeiros, sequer tento desviar dos espinhos a essa altura. Deixe que cortem. Me espremo pela abertura diminuta estacando um grito de dor em minha garganta quando forço meu corpo para frente. A claridade alaranjada me cega por alguns segundos, me forçando a piscar desordenadamente enquanto minha vista, que havia se acostumado à escuridão da floresta, retorna aos poucos.
Meu olhar se prende ao horizonte, tão longe quanto minha vista pode alcançar. Mal noto a extensão de terra à minha frente nem a grande faixa de água que a procede. Tudo que consigo ver é o Castelo. Não consigo distinguir suas formas ou tamanho, ao longe não passa de uma construção cercada por água cristalina que brilha sob a luz do sol poente, como se suas gotas dançassem ao som de uma música silenciosa.
— Majestade? – Cathal chama e me limito a apontar em direção ao castelo que parece sorrir para mim e, sem qualquer explicação prática, tenho certeza de que é para lá que tenho que ir. As palavras da mulher misteriosa perdida da floresta ecoam em minha mente, seu discurso sobre como as palavras da Profecia são claras.
Castelo de Ruínas à Oeste.
O que ela havia dito sobre terra e água?
O que é a Maldição dos Deuses? A única que parece estar sendo amaldiçoada sou eu, com essa jornada sem direção.
Uma onda de ânimo me invade com a perspectiva de, finalmente, estar chegando a algum lugar. Sinto meu corpo todo arder e, ao olhar ao redor, vejo que os outros três não estão em um estado melhor.
— Quanto tempo até chegarmos à margem? – Pergunto a ninguém em específico, tentando ignorar o pânico que cresce com a ideia de ter que entrar na água outra vez. O fim dos tempos em suas mãos está, fogo terra água e ar. Repito para mim mesma que a mulher-fantasma presa à arvore que desapareceu sem deixar rastros não era fruto da minha imaginação perturbada, não era uma alucinação, e ela estava certa sobre a parte de a água já ter ido, ao mesmo tempo que espero que ela esteja errada quanto ainda falta fogo e ar.
— Algumas horas, não mais do que isso. – Cathal responde. – Acredita que essa é a direção correta, Majestade? – Ele pergunta e eu me limito a acenar com a cabeça. Fecho os olhos e repasso mentalmente o mapa. Não é uma faixa de terra contínua, um feixe de água separa suas partes. Há uma ponte, ao Norte. Abrindo os olhos, me viro naquela direção e perco o ar. Ao Norte, há também a Cordilheira das Almas Perdidas. Esse nome não me agrada em nada e preferiria não ter que passar por lá, mas não parece haver muita escolha.
— Precisamos ao menos cuidar dos ferimentos antes de partir. – Cathal interrompe meus pensamentos e aceno com a mão para que prossiga, enquanto encaro fixamente a cadeia de montanhas ao longe. Uma aura negra recobre os picos arredondados e irregulares que se estendem por sobre as nuvens e quase posso ouvir gritos de dor. Fecho os olhos e balanço a cabeça. Não acordei preparada para escalada hoje. Uma mão quente toca meu ombro e não preciso abrir os olhos para saber que é Tobiah.
— Posso? – ele pergunta e aceno com a cabeça, procurando algum lugar para sentar e, então, estendendo meu braço em sua direção. Ele esfrega delicadamente um pano úmido e sinto cada um dos meus cortes pararem de pulsar e minha pele ficar dormente. Éter. Não é até apoiar minha perna direita em seu joelho que eu vejo o corte profundo em minha panturrilha. Ele suspira e levanta os olhos pesarosos em minha direção. Sabe que precisa ser cauterizado. Cuidadosamente, repousa minha perna de volta no chão enquanto levanta-se e caminha até sua mochila. O sol está se pondo e não vamos sair daqui hoje e, apesar de não querer perder nem mais um segundo para chegar ao castelo, sei que a decisão de tomar o caminho mais doloroso foi minha e agora tenho que arcar com o tempo de espera. Cada dia que passa uma bola de preocupação toma conta de mim, sem saber o quão perto estou, sem saber como o Norte está.
Me pergunto se Adaliz entregou à carta aos pais de Tobiah, e se eles vão aceitar meu pedido. Se meu Reino está em boas mãos e se minhas instruções foram claras o suficiente para serem seguidas sem consequências desastrosas. Não posso me permitir questionar o quão confiáveis eles são, não agora, não a essa altura. É a última esperança que tenho de que vou ter um Reino para governar quando voltar para casa.
Vejo ao longe Tobiah esquentar uma faca sobre o fogo crepitante da fogueira recém-montada, o ferro assumindo uma coloração avermelhada que me arrepia. Com cuidado, ele retorna até onde estou e me entrega um cantil, que recuso. Suco de cicuta, tenho certeza. Não sei quem preparou a mistura e prefiro não arriscar que uma dose letal do analgésico me seja dada displicentemente. Estendo novamente a perna para ele, controlando a careta de dor que teima em escapar agora que meu corpo esfriou.
— Teimosa. – Ele mal sussurra, os olhos amendoados presos aos meus por um segundo, e sorri. Sorrio de volta, apenas para que meus lábios sejam separados em um grito de dor quando a lâmina quente chamusca minha pele sem aviso, o cheio de carne queimada invadindo minhas narinas. Ranjo os dentes, na tentativa de evitar outro grito, e não consigo impedir lágrimas de rolarem por meu rosto enquanto as queimaduras se formam ao redor do ferimento. Mal sou capaz de prestar atenção ao que quer que ele despeja sobre minha pele ao retirar a lâmina. Me sinto tonta e a ponto de desmaiar tamanha a dor que percorre meu corpo, mal lembro do tornozelo torcido a essa altura. Não sei quanto tempo passo ali, de olhos fechados e dentes cerrados, mas, quando os abro, encontro Tobiah com o olhar fixo em mim, a cabeça inclinada, em silêncio. Espero um pedido de desculpas pelo procedimento feito sem aviso prévio, mas este nunca vem. Em meio à dor, aprecio o homem à minha frente e, apesar de ver em seus olhos o menino tímido que recusou minha proposta de casamento por achar que estaria brincando com meus sentimentos, vejo também um homem que não pensou duas vezes antes de fazer o que precisava ser feito. Como um Rei deve ser.
— Obrigada. – Sussurro em uma voz engasgada pela dor latejante em minha perna e ele acena positivamente com a cabeça. – Não acho que consigo andar agora, e é provável que eu não deva.
— Vou trazer o que precisa para que passe a noite aqui. – Ele anuncia em concordância, delicadamente repousando minha perna em um embolado de panos que serve de almofada e se retira. Cathal e Laurunda conversam em sussurros agitados e me pergunto o que se passa entre os dois e, o que quer que seja, não gosto. Fecho os olhos e respiro fundo.
Deuses, não sei muito bem como funciona a comunicação. Não sei se orações chegam a vocês e alimentam suas almas como nos é ensinado. Não sei se podem me ouvir. Mas se puderem, quero dizer uma coisa. Eu estou chegando. Não sei onde, mas estou chegando. E quando eu chegar, vou chutar a bunda de vocês.
Em poucos minutos, Tobiah retorna com mantas e travesseiros improvisados e me ajuda a, mancando, sentar sobre o amontoado de panos que me serve de cama. Ele me entreva um cantil com água e uma porção de frutas secas e carne salgada que são bem-vindos ao meu estômago vazio. Conversamos amenidades por alguns minutos, ele me conta histórias sobre sua infância no Reino de Fora e eu o atualizo com meus pensamentos sobre a Profecia. Ao longe, o sol termina de se pôr e leva consigo mais um dia, mais um dia longe do meu povo, e menos um dia até meu destino. Ali, com a dor pungente circundando minha perna, a porção precária de comida a ser servida antes que Cathal volte com a caçada da noite, sob o céu escurecendo e o Castelo misterioso ao fundo, sorrio.
Percebo que o caminho a ser percorrido na vida não é da forma planejada, e pode não ser aquilo que sempre sonhei, mas claramente é aquilo que preciso viver.
— Precisa de mais alguma coisa para passar a noite, Kya? – Ele pergunta com meus dedos enlaçados aos seus, e sequer sei como chegamos a isso. Suspiro, cansada de tentar deter controle de tudo à minha volta e falhar a cada passo. Se é esse o caminho que os Deuses querem que eu percorra, então que assim seja. Mas que assim seja a partir do raiar do sol, amanhã, naquela que agora tenho certeza ser a jornada final dessa Profecia, rumo ao Castelo de Ruinas.
— Você. – respondo.
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