Capítulo 18
Deitada na grama, a mochila feita de travesseiro, o sol queima meu rosto, mas não quero me mexer. De olhos fechados consigo ouvir os passos do Príncipe, andando de um lado ao outro como uma barata tonta, perdida e sem saber o caminho de casa. O que não deixa de ser verdade. Me levanto e, ainda deitada e apoiada sobre meus cotovelos, observo-o vaguear, as botas pesadas batendo contra o chão, os dedos arrumando e bagunçando o cabelo. Ele senta em uma pedra, levanta, anda até outra pedra, senta, levanta, e repete esse ciclo como um ritual sem nenhuma utilidade, e tenho vontade de rir. Por fim, parecendo cansado da repetição, ele senta ao lado de uma das barracas e começa a re-arrumar uma mochila que já estava perfeitamente arrumada. É como se ele não tivesse nenhum outro problema para resolver e estivesse procurando por um. Realeza... Deito novamente e fecho os olhos, sinto o sol contra a minha pele, em silêncio, aproveitando as horas de folga como qualquer pessoa normal faria: descansando.
Acordo em um pulo quando ouço um barulho, sentando rapidamente e olhando ao redor, assustada. Vejo o Príncipe de joelhos, a cabeça enterrada nas mãos, um dos potes de porcelana que carregava em sua bolsa quebrado em pedaços pequenos agora espalhados pela grama úmida. Excelente, agora vamos ter que comer com as mãos. Sua respiração está pesada e seu corpo treme. Olho ao redor, para o acampamento mal montado, em busca de água, o ar abafado sem vento transformando o lugar em algo quase tão quente quanto o nível mais superficial das minas. Vejo um cantil perdido no meio do amontoado de bolsas e vou até lá, pegando o pequeno recipiente ovalado de couro e entregando ao Príncipe, que aceita com um sorriso fraco no rosto, os olhos avermelhados.
- Ela vai ficar bem - digo, as palavras saindo da minha boca antes que eu consiga pensar no que estou dizendo. Não gosto de mentiras bonitas, não acho que ajuda ninguém. A verdade é que a Rainha provavelmente está morta a essa hora, ou perdida para toda a eternidade. Mas enquanto eu puder ficar aqui e não precisar voltar para o Sul, não precisar voltar para as minas, por mim está ótimo. Passo mais um mês sentada nessa pedra esperando que Vossa Majestade volte em segurança se isso significar um pouco mais de liberdade e cheiro de grama molhada, ao invés do cheio nojento e doentio de metal e morte.
- Você acha? - Ele pergunta, levando o cantil aos seus lábios e encarando o nada.
- Sim. - Não.
- Eu também. - Ele diz, com um riso nervoso. - Na verdade tenho certeza. Onde quer que ela esteja nesse momento, ela está bem. - O Príncipe completa e eu fico esperando qualquer sinal de sarcasmo na sua voz, mas ele parece acreditar no que diz. Devo estar refletindo no meu rosto o tamanho da minha confusão, porque ele sorri na minha direção e continua falando.
- Não sei como são os Nobres de onde você vem, só conheço o Príncipe Hadaward e, bom. - Ele deixa a frase em aberto e balança a cabeça, e eu concordo. Todo mundo sabe como ele é. - Mas Kya é diferente. Ela é, de verdade. - Ele completa quando eu não consigo evitar uma careta. - Não sei qual sua história, Laurunda. Não sei o que passou, como é sua vida, de onde você veio. O Sul é um lugar muito grande e cheio de histórias mal contadas, então não sei. Mas Kya é diferente de todo governante que já vi. Ela é... mais. Tenho certeza que ela está bem. Ela vai cumprir o destino dela, seja ele qual for. Ela está bem.
A convicção na voz dele me abala por um segundo. Uma parte de mim quer acreditar no que ele diz e começar a ajudar de verdade, dividir as informações que tenho, informações que tenho certeza que poderiam ser úteis a eles. Mas não confio na Rainha. Não confio no Príncipe, embora ele pareça um homem decente. Não vou arriscar meu pescoço por engomadinho nenhum, gosto dele bem onde está: prendendo minha cabeça ao corpo. Preciso pensar na minha família que deixei para trás e fazer o que vim fazer aqui. Nada mais. Mas a sobrancelha enrugada e o olhar compenetrado no nada do Príncipe atiça minha curiosidade.
- Se tem tanta certeza que a Rainha está bem, por que tanta preocupação? - Pergunto.
- Não estou preocupado com ela. - Ele responde prontamente. - Estou preocupado comigo. Tenho certeza que ela está bem e vai cumprir seu destino. Mas se o destino dela não envolver voltar para cá e me levar junto com ela, eu não sei o que fazer. - Ele responde, medo e serenidade misturados nos seus olhos.
- Você está mesmo apaixonado por ela. - Eu digo, a constatação do óbvio. É claro que ele está, qualquer idiota consegue ver., mas a crueza de suas palavras é perturbadora. Solto uma risada. - Bom, agora ela tem uma pessoa a mais para protegê-la. - Divago.
- Apaixonado? - Ele pergunta, quase parecendo ofendido, enquanto brinca com um pedaço de porcelana quebrado entre seus dedos. - Não estou apaixonado por ela, e Kya sem dúvidas não precisa de ninguém para protegê-la.
Pisco algumas vezes, confusa, sem entender as palavras que ouço. Sua boca diz uma coisa, mas cada ato que presenciei desde que fui arrastada para cá grita uma coisa completamente diferente. Não sei o que ele ganha mentindo, não sei se está mentindo para mim ou se todo seu comportamento é falso para ganhar a confiança da Rainha. Qualquer que seja a resposta, agora estou interessada.
- Não está? - Pergunto, cutucando, tentando arrancar mais respostas. Ele suspira e muda de posição, saindo da pedra onde estava sentado e deslizando até alcançar a grama sob seu corpo. A calça preta está manchada em tantos pontos diferentes que é difícil imaginar com o que se parecia quando estava limpa.
- Já me apaixonei antes, algumas vezes. A Kya não é a primeira mulher bonita que aparece na minha vida. Posso ser novo, mas não sou tão inexperiente assim. - Ele diz e tenho a impressão de que ele cora, suas bochechas assumindo uma coloração rosada que é bonitinha e patética ao mesmo tempo. - Jamais abandonaria minha casa e meu povo, jamais colocaria o destino do meu povo em risco por paixão.
Ele pausa e suspira. Um suspiro profundo, e quando volta a falar, não acho que esteja falando comigo.
- Fé. Não em seus olhos verdes, mas em seu poder. Eu quero um futuro onde Kya comande. Quero um futuro onde meu povo esteja seguro com uma Rainha que os lidere para a glória. E sei admitir que eu não sou o escolhido para isso.
Encaro o homem na minha frente positivamente surpresa. Até aqui tive a impressão de que ele fosse um completo banana, submisso às vontades da Rainha, lambendo o chão que ela pisa. Mas ele é um homem com um propósito. Me pergunto até onde ele é capaz de ir para alcançar esse propósito.
- Não se engane, Laurunda. Eu a amo. A amo com cada célula do meu corpo, cada batida do meu coração. Então o que quer que esteja por trás desse sorriso esquisito no seu rosto, esqueça.
Me assusto com o seu tom de voz e praticamente pulo sentada no lugar, assustada com as palavras que não esperava sair de sua boca. Sempre tão educado e tão cavalheiro, o Príncipe me assusta com a seriedade e fogo em seus olhos.
- Você falou como ela. - balbucio, surpresa.
- Sinal que ela está trazendo o melhor de mim.
O sol está se pondo quando Cathal retorna, a Rainha pendurada em seu pescoço, mancando, e não consigo entender como o Príncipe chega a eles tão rápido, mas ele o faz. Em questão de segundos, a Rainha é transferida de ombros, passando a se apoiar em no outro, e eles cochicham alguma coisa que não sou capaz de entender. Olho para Cathal e ele balança a cabeça negativamente. Sinto como se houvesse um mundo a parte que envolve os dois Regentes, e apenas eles, e tenho medo do que isso significa - principalmente depois da ameaça do Príncipe.
- Ela torceu o tornozelo. - Cathal anuncia o óbvio quando a Rainha é posta sentada com o pé apoiado em uma pedra.
- Consigo andar perfeitamente. - Ela resmunga, dispensando com a mão qualquer comentário. - Precisamos pensar em como vamos sair daqui.
É irritante que ela fale como se fosse a primeira vez que alguém pensa nisso. Como se, caso ela não tivesse falado nada, nós fossemos simplesmente sentar aqui e esperar o mundo acabar. Respiro fundo. No tempo em que ela ficou desaparecida, consideramos todas as possibilidades, e a conclusão é que a única forma de sair é atravessando o outro rio. A única outra opção é a Floresta de Espinhos e eu prefiro passar longe de qualquer coisa que possa me espetar.
Ouço o Príncipe perguntar o que aconteceu durante todo esse tempo em que ela esteve longe, massageando delicadamente seu tornozelo inchado, provocando caretas de dor que não posso dizer que me dão pena. Não dão. Ela não responde a pergunta, em alguma espécie de comunicação silenciosa entre os dois, e imediatamente começa a discutir formas de sair desse lugar.
A pergunta é: sair para onde? As Ruínas desabaram nas nossas cabeças e essa era a única pista que tínhamos.
- Temos que chegar no extremo oeste. - Kya anuncia - A Profecia dizia que a Oeste meu destino seria encontrado, então para Oeste temos que seguir.
Oeste onde?
O dia amanhece rápido demais e parece que mal dormi por duas horas antes de começar a desmontar o acampamento e seguir viagem. A Rainha está descaradamente escondendo alguma coisa, seu comportamento é estranho e ela anda mancando de um lado para o Príncipe pendurado em seu encalço, aos cochichos.
Após comermos e empacotarmos todas as frutas e sementes que encontramos pela área, estamos prontos para partir. Será uma caminhada lenta, com o tornozelo danificado da Rainha, adicionado ao fato de que nossos cavalos foram perdidos com a queda das Ruínas. Kya resmungou alguma coisa sobre esperar que eles estivessem bem, e não consigo entender tanta preocupação com um animal enquanto tantas pessoas são exploradas, abusadas e assassinadas nas minas do Sul. E o Príncipe tem coragem de me dizer que os Governantes não são todos iguais?
- Vamos atravessar o rio e seguir até a margem do continente. De lá decidimos como prosseguir, mas parece que há uma ponte para cruzar para a ilha seguindo Norte. - Cathal orienta, seguindo com o dedo pelo mapa as direções das quais fala.
- Não existe a menor possibilidade de eu atravessar outro rio. - A Rainha, apoiando todo seu peso em um pé, retruca.
- A única outra opção é atravessar a Floresta de Espinhos, onde eu te encontrei, Majestade. Não acho que seja uma boa ideia, não sabemos o que há na parte mais densa da Floresta. - Ele aconselha, sabiamente. - Nós devemos ir pelo rio.
- Eu vou pela Floresta, vocês podem seguir por onde acharem melhor e nos encontramos lá. - Kya anuncia, dispensando as opiniões alheias, o olhar altivo desafiando questionamentos. Quando todos permanecem em silêncio, ela bate palmas. - Ótimo, Floresta será!
Ela vira as costas e começa a se afastar do grupo, mancando. Vai ser um longo dia.
Ainda vou estrangular essa mulher.
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