Capítulo 17
A pilha de documentos na minha frente é esquecida enquanto eu leio pela quinta vez a carta à minha frente. Já estou irritada o suficiente por ter sido encarregada de um trabalho administrativo que literalmente qualquer soldado do segundo ano de Estudos seria capaz de executar com o pé nas costas, e agora isso. Uma mensagem da Rainha do Reino de Fora endereçada ao Primeiro Comandante.
O único motivo de essa mensagem ter caído nas minhas mãos foi porque o Messageiro estava mais preocupado em se livrar do trabalho o mais rápido possível. Ele sequer disfarçou o interesse na Guarda Lora que estava de pé guardando a entrada do prédio. Pobre infeliz, ela vai parti-lo em dois antes de dar um sorriso.
Releio a mensagem mais uma vez, estranhando o fato de ter sido enviada pela Rainha. Em tantos anos como parte do Conselho nunca tive notícias de nenhum envolvimento político por parte da Rainha, muito menor requisitando a presença de um representante em seu Reino.
Levanto da cadeira e deixo o escritório mal iluminado, seguindo em direção às instalações centrais do prédio. Subo a passos largos a escadaria até alcançar o quinto andar, onde tenho certeza que vou encontrar o Primeiro Comandante. Não é surpresa quando abro as pesadas portas duplas de madeira encravadas com espadas cruzadas, símbolo do nosso Exército, e me deparo com o Primeiro e o Segundo Comandantes em uma reunião da qual eu tenho certeza que eu deveria ter sido informada.
Arthuro levanta os olhos dos livros abertos sobre a mesa e se vira na minha direção, em silêncio. Os cabelos grisalhos e as rugas em sua testa revelam a idade que ele tanto luta para esconder com sua postura altiva e tom de voz assertivo. A mim ele destina apena um sutil levantar de sobrancelhas.
— Não estava sabendo de nenhuma reunião — eu disse, as duas mãos atrás do corpo, a carta dobrada por entre os meus dedos.
— Se você não estava sabendo de nenhuma reunião, é porque você não precisava saber de nenhuma reunião — responde ele, secamente. Com um suspiro de frustração e esfregando os olhos antes de apoiar as mãos com os dedos enlaçados sobre a mesma, ele continua. — Adaliz, você não é mais nenhuma garotinha. Já passou da hora de tomar um rumo na vida. Nunca casou, mas isso já era de esperar — e diz, movendo a mão em desdenho, o veneno destilando em sua voz.
— Eu preciso discordar e dizer que minha vida está muito bem encaminhada, Comandante — respondo, me esforçando ao máximo para manter minha voz firme mas respeitosa. E então ele ri.
— Querida, todos nós sabemos que você só está aqui porque seu pai foi incapaz de gerar herdeiros homens para substituí-lo no Conselho. Você deveria para de brincar e desperdiçar nosso tempo como tem feito nos últimos cinco anos e fazer algo de verdadeiramente útil para esse Reino. Comandar algumas tropas em um dos outros Reinos seria mais apropriado para sua... Realidade — ele diz a última palavra como se fosse ácido queimando em sua língua. — O que veio fazer aqui, afinal? — ele pergunta, em um suspiro cansado.
— Recebi uma mensagem do Reino de Fora. Parece que houve alguma espécie de rebelião nas plantações de milho e os soldados estão requisitando reforço — minto, ainda que parcialmente. A melhor forma de mentir é embutir verdades em seu discurso. Assim, se Arthuro ouvir algo sobre o Mensageiro não terá motivos para desconfianças.
Eu sei que deveria entregar a carta à ele, independente das minhas motivações pessoais. Foi assim que fui criada, foi assim que fui treinada. Mas conheço Arthuro o suficiente para saber que ele não dará importância a uma mensagem vinda da Rainha. E eu tenho certeza da importância das palavras contidas nesse recado.
— Perfeito —ele diz levantando as mãos. — Veja que oportunidade perfeita para você — ele diz, um sorriso debochado nos lábios.
— Partirei imediatamente — respondo, deixando a sala, rápido o suficiente para que ouvisse apenas um murmúrio saindo da voz de Arthuro. "Mulheres" , bufou, sendo acompanhado de uma risada vinda do Segundo Comandante.
Desço a escada a trote, indo diretamente aos meus aposentos. Não perco tempo olhando ao redor do quarto confortável que tenho nas instalações, a única regalia que verdadeiramente recebi por ser parte do Conselho que governa o Reino. Vou direto para a mesa ao lado da cama e, com a chave que carrego em um cordão ao redor do pescoço, destranco a primeira gaveta, encontrando a pequena caixa de madeira que vim buscar. Jogo a caixa no fundo de uma bolsa, juntamente com algumas trocas de roupa e parto para o estábulo, para buscar meu cavalo e me dirigir ao Reino de Fora.
Dentro da pequena embarcação que me transporta do continente para a ilha onde o Palácio do Reino de Fora está sitiado, observo a paisagem ao meu redor e aprecio a gritante diferença com o que eu estou acostumada em casa. A brisa fresca faz com que o clima seja muito mais agradável do que o calor provocado pelo ar parado e sol constantemente que assola a terra dada a nós pelos Deuses. Ao longe posso ver o Castelo, muito maior do que o necessário, talvez o mais vistoso de todos os Reinos, mas não esbanja os adornos em ouro e mármore como faz o Castelo do Reino do Sul. Não há nada de opressivo na construção. Desembarco na ilha e sou pessoalmente recebida pela Rainha, o que me causa estranheza.
— Seja bem vinda ao nosso lar. — a mulher vestida em verde me saúda, os cabelos negros presos em tranças complicadas no topo de sua cabeça. A Rainha tem olhos gentis, castanhos como os de seu filho, cercados por pequenas rugas que começam a surgir, fruto de sua maturidade. Não deve ser muito mais velha do que eu, com meus quarenta anos.
— Majestade. — cumprimento, com uma reverência curta, a qual ela dispensa, estendendo a mão em minha direção, enlaçando meus dedos com os seus e um sorriso acalorado.
— Fico feliz que tenha vindo tão prontamente, aprecio o gesto — ela diz, me indicando o caminho para dentro do Castelo. — Perdoe-me mas precisarei pular as formalidades. O assunto é da máxima urgência e preciso que me acompanhe, por favor. Concordo com um aceno silencioso e sigo-a por entre os corredores recobertos por tapetes esverdeados, cerceados por paredes adornadas com fotografias e pinturas. Redireciono meu olhar para a Rainha que anda na minha frente, o pescoço esguio exposto por sobre a gola do vestido, a pele negra destacando-se sob a luz.
— Estava no Reino do Norte na ocasião das despedidas do Rei, correto? — a Rainha pergunta, olhando-me por sobre o ombro por um segundo, e me distraio com seus olhos por um momento antes de responder.
— Sim, uma perda trágica.
— Trágica, de fato — ela responde, parando de andar e abrindo a porta para um cômodo à esquerda. Agradeço com a cabeça e adentro o salão, e vejo que ela confere o corredor antes de fechar as portas.
Permaneço de pé e rapidamente olho ao redor, apenas o suficiente para fazer um reconhecimento básico do local. É um cômodo não muito grande, com alguns cavaletes de pintura em uma extremidade, tintas e pincéis espalhados por uma mesa. A Rainha indica para que eu me sente em um sofá e me acompanha, sentando-se ao meu lado.
— Majestade — começo a dizer e sou interrompida.
— Samantha. — ela corrige. — Chá? — nego com a cabeça
— Fiquei surpresa de o contato partir da senhora, Maj- Samantha — digo, e vejo a mulher colocar uma mecha solta do cabelo atrás da orelha e suspirar.
— O Rei não está a par dessa conversa, Comandante, e gostaria que assim continuasse.
— Certamente.
— Meu filho enviou-nos uma carta, antes de partir para cumprir a Profecia ao lado da Rainha do Norte, e fez um pedido em nome dela — Samantha explica, nervosa, e eu espero. — Me diga o que sabe sobre a Rainha Kya, Adaliz — ela pede, lágrimas acumulando no fundo de seus olhos — Diga-me que ela não vai jogar meu filho de cima de uma ponte na primeira oportunidade que tiver.
Penso no tempo que passei no Reino do Norte, antes e depois da Profecia ser decretada. A Rainha do Norte não é a pessoa mais amorosa que conheci, tampouco se deu ao trabalho de muitas formalidades na tentativa de agradar seus hóspedes, isso foi função de sua irmã. Mas não tenho dúvidas de sua integridade, não tive em nenhum momento e agora, com a caixa de madeira que ela me entregou pesando na bolsa em meu colo, após nossa conversa algumas horas antes de que eu partisse de volta ao Reino de Dentro, ainda tenho certeza disso, e repito essas palavras para Samantha. Ela explica que, na carta que o Princípe mandou a eles, entre outros detalhes pessoais, Tobiah comunicou a decisão de se unir à Rainha em Matrimônio e pediu que os pais jurassem lealdade ao Reino do Norte, e à Kya diretamente acima de tudo, atendendo aos seus chamados quando necessário fosse.
— Criei Tobiah para ser um homem sensato e fazer boas escolhas para sua vida e para esse Reino, e preciso confiar que fiz um bom trabalho — ela suspira. — Mas tenho medo de onde ele está se metendo com essa união. Meu marido está... Extasiado com essa notícia. Está certo de que esse casamento fará com que nossos domínios aumentem e ele mal pode esperar para que a Rainha entregue o governo do Norte para Tobiah quando retornarem — ela divaga, e eu rio.
— Perdoe-me Majestade, mas é mais fácil o Príncipe entregar o Reino aos comandos dela do que o contrário. — a notícia da união dos dois Herdeiros não foi oficialmente anunciada, mas já é notícia antiga pelos Reinos a essa altura. Samantha arregala os olhos e parece a ponto de desmaiar.
— Desde os primeiros dias em que chegamos, ela e Tobiah ficaram... Próximos. Não de um jeito romântico, até onde vi, mas parecia haver muito respeito e admiração de ambas as partes. A Rainha é uma mulher justa, e ela parece confiar no Príncipe. Tenho certeza que seu filho não corre nenhum perigo, pelo menos não nas mãos dela — asseguro, antes o Samantha colapse. — Jurei minha lealdade a ela antes de partir. Não pude fazer esse juramento em nome do meu Reino mas eu, Adaliz, Jurei minha lealdade a ela. Conversamos durante o jantar no dia em que a Profecia foi revelada, ela estava com medo do rumo que o Norte tomaria com sua ausência, estava com medo de sua irmã ser usada como um peão em jogos políticos mais complicados do que a Princesa poderia entender.
Princesa Layla é uma mulher doce e inocente. Ela não foi criada para governar e não tem a postura rígida que é necessária para ser levada a sério como uma governante mulher em meio a tantos Reis e Príncipes. Inferno, nem eu tenho, por isso confio em Kya para liderar o Norte.
— Vejo fundamento nas preocupações da Rainha — Samantha diz — Recebemos essa manhã uma mensagem anunciando o casamento da Princesa Layla do Norte com o Príncipe Hadaward, Herdeiro do Sul — ela explica e o silêncio que cresce no cômodo é o suficiente para refletir o sentimentos de nós duas diante dessa notícia. Esse casamento não pode acontecer, ou vai ser o fim do Reino do Norte.
— Tobiah foi muito específico quando pediu lealdade à Kya. — ela constata, o cenho franzido e vejo o exato momento em que ela chega à mesma conclusão que eu: esse casamento não pode acontecer.
Abro a bolsa e retiro a caixa de madeira que a Rainha me entregou naquela ocasião. Destravo o pequeno trinco dourado e pego as cartas seladas com o Selo Real do Norte, uma endereçada a cada Governante de cada um dos Reinos. Ela me pediu que enviasse essas cartas caso se fizesse necessário reafirmar o Pacto, o Tradado de Paz entre os Reinos. Há uma carta extra, endereçada ao Reino de Fora, que deveria ser entregue mesmo que não se faça necessário. Retiro esta e entrego à Samantha, explicando o que se trata. Acredito que seja algo relacionado à união dos dois Reinos ou qualquer coisa do tipo que reforce os laços.
A mulher quebra o lacre e começa a ler em silêncio e, por mais que eu queira saber o conteúdo, me contenho e não pergunto. Ela percorre os olhos pelo texto e abre um sorriso em um momento, e eu relaxo. Não é nada preocupante então. Ela solta uma discreta risada por fim, e deposita o papel sobre a mesinha. Olho para ela e espero que diga alguma coisa, e ainda com um sorriso nos lábios, ela explica.
— A Rainha considera traição qualquer tentativa de posse do Trono do Norte de forma permanente em sua ausência. — ela ri, uma pontada de histeria surgindo em sua voz — Ela quer começar uma guerra se preciso for. E já que meu filho jurou lealdade a ela, quer que meu Reino lute em seu nome.
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