Capítulo 16
- Kya!!
Ouço meu nome ser gritado por uma voz masculina familiar.
Você está indo bem, querida, continue andando. Venha, Kya. Continue andando.
A voz suave e delicada em minha mente me impulsiona para frente, apesar de eu querer voltar. Quero voltar para as Ruínas, quero seguir a voz que chama meu nome. Mas continuo andando em frente. Em direção à Floresta de Espinhos. Tenho calafrios a cada passo que eu dou em direção ao lugar nada convidativo à minha frente. Percorro os olhos pelos troncos secos e pontiagudos das árvores que formam uma parede intransponível.
Intransponível. É essa a palavra. É como se uma névoa cobrisse parte da paisagem e o restante, visível aos olhos, parece saído dos romances de terror que li. A grama escura, quase negra, cobre o chão como um manto impregnado com o cheio de morte, árvores retorcidas de troncos secos saindo da terra como dedos de uma mão estendida para o alto, fugindo de um caixão, clamando por ajuda. A brisa gélida toca minha pele e eu sinto um arrepio, não apenas na minha pele, mas também na minha alma. Por um segundo, tenho a impressão que aquelas árvores vão criar vida e me embrulhar em seus braços afiados.
Sinto meu corpo dar passo após passo em direção aos espinhos, e algo no fundo da minha mente incentiva a continuar, desafiando a lógica.
Você está quase lá, Kya. Vamos. Só um pouco mais.
Pouso a palma da minha mão sobre um tronco seco e sinto infinitas picadas contra minha pele maltratada, invadindo meus sentidos, como uma dor aguda, mas fraca. Uma dor que traz memórias. Uma dor familiar. Dou um passo à frente e tropeço não sei bem em que, e, na tentativa de estabilizar meu corpo, torço o pé. Ouço o estalo antes de sentir a dor, que então me arrebata como um soco, se espalhando por todo meu tornozelo e um palavrão escapa dos meus lábios. Com o pé levantado, pendendo enquanto apoio o peso do corpo na outra perna, não consigo evitar uma risada. O Rei teria um ataque se me ouvisse falar dessa maneira, não importa a ocasião.
Me lembro de uma vez, quando tinha meus dez anos, em que saí para cavalgar com Layla - ela nunca foi muito boa com animais. Obviamente, não demorou cinco minutos para que despencasse de cima do animal. A queda não foi ruim, ela mal se machucou; um arranhado na perna e um roxo no braço, e foi isso. Minha irmã soltou uma reclamação chorosa e eu xinguei sua má sorte, recebendo uma reprimenda em resposta por parte de meu pai. "Uma princesa jamais deve falar assim", ele disse.
Na verdade, a parte estranha aconteceu depois. Eu desci do meu animal para ir ao seu resgate, e o cavalo em que ela estava montada veio desenfreado em minha direção. Naquele momento, tive certeza que morreria. Sendo sincera, foi só a primeira de muitas vezes em que tive certeza que morreria. Admito que nunca facilitei as coisas nesse quesito, mas acredito que acumule uma porção de acidentes acima da média. Na ocasião do cavalo, e em algumas outras que posso me lembrar, não tenho uma memória clara de como me safei. Uma hora o cavalo estava indo na minha direção, Layla gritando desesperadamente, na outra eu estava acordando deitada na grama, tonta, mas em segurança.
Aconteceu a mesma coisa quando estava a ponto de ser picada por uma Coral, ou quando eu inventei se pular de um dos penhascos do Reino de Fora em um desafio idiota com alguns meninos na época da escola, e me vi indo em direção a um pedregulho, a gravidade me puxando cada vez mais rápido.
Olhe ao redor, querida, apenas olhe, sim?
A única lembrança minimamente nítida que tenho é da vez em que estava em um dos arsenais do Reino de Dentro, e alguém derrubou uma bombinha. Não foi nada com potencial de destruição em massa, mas o suficiente para que os Comandantes quisessem minha cabeça. Não vi quem foi, sequer havia notado que alguém estava lá comigo, então obviamente eu levei a culpa pelo estrago. Custou muita conversa e muitos acordos políticos para que a história fosse esquecida.
Nessa ocasião, eu lembro. Lembro de uma mulher, longos cabelos castanhos esvoaçando ao vento. Não me lembro de seu rosto, não sei se cheguei a vê-lo e esqueci ou se nunca tive a oportunidade de avistar seu semblante. Tudo que lembro é de sua mão calorosa de pele macia segurando meus dedos e me arrastando para fora de lá antes que pequenas explosões começassem. Lembro de, atordoada, receber um beijo no topo da cabeça e uma reprimenda antes que ela desaparecesse no ar e eu caísse, desmaiada. Lembro principalmente de sua voz, uma voz doce mas firme chamando meu nome.
- Finalmente você voltou para casa, Kya.
A voz que antes estava escoando pela minha cabeça, a voz da mulher que me tirou do arsenal, está agora soando alta e clara em meus ouvidos. Segurando o tornozelo ruim, giro a cabeça ao redor e é quando vejo. Sentada no chão negro e com as costas apoiada nos espinhos, uma mulher. Como reflexo, dou um passo para trás e espeto minhas costas em um galho afiado. Encaro a mulher à minha frente, dentro de um vestido perfeitamente branco, os grandes olhos cor de esmeralda me encarando e longos e esvoaçantes cachos castanhos emoldurando seu rosto. Ela se parece...comigo. Abro a boca para formar uma pergunta, mas o som não sai, e ela sorri.
- Estava me perguntando quanto tempo você levaria para me encontrar. Para encontrar esse lugar - ela diz, mas não se move. Tenho a impressão de que ela está presa àquela árvore, mas a completa ausência de desconforto em sua feição me faz não ter tanta certeza e decido não contar com a sorte. Permaneço onde estou.
- Quem é você? O que está fazendo aqui? - pergunto, olhos fixos nos dela, e parece que estou me olhando em um espelho. - O que é esse lugar?
- Você sabe o que é esse lugar, Kya - ela diz, acenando com a mão como quem dispersa a pergunta no ar. Percebo que ela ignorou completamente minhas outras perguntas quando continua falando. - A pergunta que importa é: como você vai sair daqui?
Sinto um misto de fúria e confusão crescer em meu peito e, pelos Deuses, eu estou tão cansada disso tudo. Olho ao redor em silêncio antes de recair meu olhar sobre a mulher na minha frente. É ridículo que eu tenha chegado a um ponto em que encontrar uma estranha que se parece comigo, sentada no meio dos espinhos em uma Floresta que mais parece um cemitério, no meio de um território do qual nada se sabe seja algo que sequer me surpreenda mais.
Eu deveria estar com um desses espinhos em minha mão, apontando para o pescoço dela e exigindo respostas. Mas vejo seus olhos refletindo os meus, espelhando verdades que eu desconheço e algo borbulha dentro de mim. A familiaridade e sentimento de reconhecimento me invadem e me cortam as palavras, e, como se lesse meus sentimentos, ela sorri.
- Com o tempo, eu prometo, você se lembrará de tudo. Não falta muito para você alcançar seu destino, querida. Lembre-se dos versos da Profecia, está tudo lá. Palavra por palavra, as instruções cristalinas como diamantes.
Não consigo evitar uma risada de escárnio. Para ser sincera eu nem mesmo tento evitar.
- Essa Profecia não me trouxe nada até agora além de dor de cabeça, experiências de quase morte e um tornozelo quebrado. - debocho, e a mulher misteriosa sorri. Rugas se formam ao redor de seus olhos quando ela faz isso e me pergunto sua idade.
- Experiências de quase morte? - ela pergunta, uma sobrancelha arqueada, ao que eu reviro os olhos e confirmo com a cabeça. - Ah, verdade! - ela diz, movendo a cabeça como se subitamente lembrasse de algo. - "O Fim dos Tempos em suas mãos está, fogo terra água e ar" - ela recita. - A água já foi. A terra também, se não estou enganada? - ela pergunta, no que posso dizer ser uma pergunta retórica, inclinando a cabeça levemente para o lado.
Lembro das Ruínas desabando por todos os lados ao nosso redor, Tobiah me puxando pelo braço, desesperado, enquanto as paredes de tijolo vinham abaixo com uma nuvem de poeira espessa. Tobiah. Foi ele quem me arrastou para fora das Ruínas, assim como foi ele que me resgatou do rio. É como se ele estivesse um passo à frente de tudo que está tentando me matar. Uma parte de mim está com raiva por alguém se sentir na obrigação de me resgatar, como se eu não fosse capaz de cuidar da minha própria vida e precisasse de um príncipezinho que mal saiu das fraldas para garantir minha segurança. Mas essa parte é bem menor do que eu esperava que fosse, especialmente porque ele nunca se colocou em posição de herói protetor; pelo contrário. Na nossa última conversa ele me jurou sua lealdade e proteção. Proteção é diferente de resgate, e com isso eu posso lidar. Isso eu posso apreciar. E sua lealdade estava entregue a mim, disso não tenho mais dúvidas. Todos os seus atos, cada passo e decisão dele, a carta que enviou aos seus pais. Me permito sorrir por um segundo e apreciar o fato de que, talvez, eu realmente não esteja sozinha.
Sozinha em sua Jornada não estará, mas quem lhe será leal?
Os versos da Profecia ressoam em minha mente, e eu começo a questionar minhas decisões. O que eu estou fazendo? E, droga, é impossível avaliar a precisão de minhas decisões sem saber exatamente qual o objetivo, sem saber para onde estou indo.
- Esse cordão em seu pescoço - a mulher diz, me tirando de meus pensamentos e me fazendo lembrar que não estou sozinha. Olho em sua direção e toco no pingente com uma das mãos. - Queime-o - ela diz, categoricamente, em um tom de voz que diz que é uma ordem e não está aberto a discussões. Semicerrando meus olhos, analiso a figura à minha frente.
- E por qual motivo eu faria o que você diz? Sequer sei quem você é, por que confiaria em você? - pergunto o óbvio, e ela sorri. Não um sorriso afiado ou debochado, mas um sorriso cansado, que adiciona centenas de anos à sua feição.
- Talvez não devesse confiar - ela diz. - Mas você sabe quem eu sou. Procure dentro de si mesma e você vai encontrar a resposta. Todas as respostas, na verdade. Essa jornada é sobre você, Kya. Nada nem ninguém mais; você. Você é o centro do mundo, nunca se esqueça disso. Aquele rapazinho já percebeu isso, e está fazendo todas as escolhas certas. Espero que você saiba fazer as escolhas sensatas quando a hora chegar.
- Do que é que você está falando? - pergunto, olhando-a como se ela estivesse louca. Era muito mais provável que eu esteja louca, penso, mas afasto o pensamento tão rápido quanto ele vem.
- Feliz aniversário, Kyara. - a mulher diz, no mesmo segundo em que sinto uma mão pesada se fechar em meu ombro. Como reflexo, viro minha mão aberta no rosto do homem que se prostrou atrás de mim, para só depois me dar conta de que era Cathal.
- Majestade - ele diz, levando a mão à sua face onde eu o acertei.
- Pelos Deuses, Cathal, você quer me matar de susto? - eu grito, o coração acelerado o suficiente para que eu possa senti-lo bater forte em meu peito. - Desculpe - sussurro.
- Sem problemas, Majestade - ele responde, recompondo a postura. - Fico feliz que a encontrei. Estávamos perdendo as esperanças - ele responde, e olha para onde eu estou segurando minha perna e, avaliando a situação em silêncio, oferece-me seu ombro como apoio.
Eu olho para trás e encontro apenas o vazio onde a mulher estava sentada antes. Ela simplesmente desapareceu, e não deixou nenhum vestígio. Feliz aniversário, Kyara. Suas palavras ecoam em minha mente enquanto me deixo levar por Cathal, mancando. Não lembro a última vez que alguém se dirigiu a mim pelo meu nome completo. O Rei disse, no meu oitavo aniversário, que foi minha mãe que escolheu esse nome e eu quis guardá-lo para mim, como nosso segredo e presente particular. Dali em diante, virei Kya para tudo e todos, até que meu nome original foi esquecido. Como ela poderia saber? E hoje não é meu aniversário, meu aniversário é em...
- Que dia é hoje? - pergunto a Cathal, tentando fazer mentalmente a conta dos dias desde que saímos do Norte.
- Dia doze, sexta feira - ele responde e eu o encaro boquiaberta. Isso não pode estar certo.
- Você sumiu por três dias, Majestade.
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