Capítulo 15

— Algo está errado com ela — digo, o pedaço de mandioca em minha mão parado no ar a caminho da minha boca. Encaro Neka, que para de escrever naquele caderno que carrega debaixo do braço a todo momento e olha na minha direção. Ela solta a pena sobre a mesa e enlaça os dedos, apoiando os cotovelos na mesa de modo a firmar o queixo sobre as mãos.

— O que está errado? — Neka pergunta, e é engraçado ver a Deusa da Sabedoria fazer perguntas. Normalmente é ela quem tem as respostas e teorias e recomendações. Mas quando se trata de Kya, a responsabilidade recai sobre as minhas costas. É minha função vasculhar sua alma e tentar guia-la para o carinho correto. Mas é claro que ela nunca obedece. Por que facilitar minha vida?

— Não consigo encontrá-la — respondo, o cenho franzido, tentando me concentrar no pulsar de energia que ela emana. Espero que não seja desagradável para ela toda vez que eu tento me conectar, mas não posso fazer muita coisa. É o meu trabalho.

— Como não consegue encontrá-la? —a voz de Neka sai um pouco mais estridente do que o normal, o que por si só já seria irritante, mas a preocupação embutida na pergunta me desestabiliza por um momento e preciso voltar a me concentrar na minha busca. — Ela não está... morta, está? — pergunta, receosa com a resposta que posso dar.

— Eu não sei — respondo francamente. Procuro por toda a extensão do nosso território e não consigo encontrá-la. Deveria ser mais fácil de senti-la aqui, em nossos domínios. Fecho os olhos e os aperto com os dedos, me esforçando ao máximo para aumentar o alcance da minha busca. Encontro Laurunda primeiro, está machucada. Isso não é trabalho meu. Cathal está com ela, parece bem o suficiente. Tobiah é o mais fácil de sentir, sua alma pulsa e grita e posso sentir seu desespero, o que aumenta minha preocupação. Decido guardar esse pedaço de informação para mim.

— Os outros três estão bem, mas não encontro Kya.

— Bom, procure-a então! — Neka esbraveja, levantando da mesa e recolhendo seu caderno consigo. — Encontre-a! Sabe o quanto está em jogo.

Neka sai do cômodo e bate a porta atrás de si. Consigo entender seu descontrole momentâneo, ainda que não seja de seu feitio. Ela sente muito mais profundamente do que o restante de nós, é o lado negativo de toda sua sensibilidade. Levanto da mesa e apago a luz. Sento em um canto tranquilo do cômodo e fecho os olhos. Respiro e procuro por ela.

Vejo Tobiah em frente às ruínas caídas gritando por seu nome. Laurunda e Cathal estão com ele, caminhando à esmo pelos arredores. Observo a cena de cima, como um pássaro voando no céu espreitando sua presa. E não consigo encontrá-la.

Frustrado, esfrego os olhos e encaro a escuridão do cômodo. Ela não pode estar morta, eu saberia. E ninguém a quer morta. Talvez machucada e sofrendo, mas não morta. Suspiro e ouço minha respiração ecoar no quarto vazio. Decido vasculhar pelo Reino. Não que ela tenha subitamente se teletransportado para o Norte, mas pode ser que algo esteja acontecendo por lá.

Fecho os olhos novamente e me concentro, tento buscar sua energia mais uma vez, e nada. Com um suspiro de insatisfação, me transporto para o Reino do Norte. Me vejo transpassando os rios, montanhas e vales que me separam das almas do meu povo. Sei o exato segundo em que alcanço o Reino pelo barulho. O burburinho incessante de cada uma das almas se conectando com a minha essência, as orações e clamores, os agradecimentos e lamentações. É difícil me concentrar em buscar por uma pessoa específica quando por todo lado meus filhos pedem atenção. A conexão é especialmente forte no Norte porque o Reino é nossa casa original.

Antes de sermos obrigados a deixar os Reinos, antes da Guerra, o pedaço de terra que hoje é o Norte era nosso lar, era de onde cuidávamos e zelávamos por cada alma vivente no território. Como consequência, aqueles que nasceram nessas terras após a nossa saída receberam um agrado especial de Neka, um toque de sabedoria a mais em sua existência como agradecimento por assumirem o controle quando nós falhamos em fazê-lo. Eu, pessoalmente, não deixei de fazer minha parte e os abençoei com longevidade. Arath é um babaca e decidiu não favorecer nossa terra querida, distribuindo riquezas, recursos naturais e organização militar "igualmente" entre os outros cantos do território. Jamais vou entender.

Percorro as ruas das cidades e vilas, tomo mais tempo do que é sensato. Sinto falta de casa e vou me permitir essa pequena indulgência. Já posso ver o Palácio se erguer em toda sua imponência quando me sinto impelido a uma casinha modesta perto da praça com chafariz. É um sentimento estranho, dúbio, e me deixa confuso e curioso o suficiente para que eu faça um pequeno desvio.

Ah, pequeno Pietro acabou de nascer. No quarto úmido nos fundos da casa humilde, sua mãe dá a luz ao pequenino com o auxílio de uma parteira. Vida nova surgindo, um pedaço de mim sendo doado a esse novo ser que crescerá e dará frutos. Sem conseguir evitar um sorriso nos olhos, observo a cena que se desenrola à minha frente, a aura de felicidade sendo exalada por toda a família ali presente. Haverá comemorações essa noite, para agradecer e festejar a chegada do menino. Mas não foi só isso que me puxou até aqui, tenho certeza. Nascem crianças o tempo todo, tenho certeza que três estão nascendo nesse momento. Não, quatro. Há algo a mais.

E é quando eu sinto. Sinto antes de ver, mas quando meus olhos batem sobre o homem, tenho certeza. Não foi só o surgimento de uma vida que me trouxe aqui, mas o fim de outra. A alma do pai da criança pulsa e se remexe, como que pedindo para ser levada, me dizendo que sua hora chegou e que quer partir comigo. Mas isso não faz sentido. O homem não tem mais do que trezentos anos, deveria viver pelo menos mais um século confortavelmente antes de sua alma começar a dar sinais de envelhecimento.

Não. Não vou levá-lo, não agora, não hoje. Não só porque tenho urgências a cumprir — onde raios Kya se enfiou? — mas porque me recuso a aceitar que a longevidade de meus filhos esteja caindo assim tão rápido. Tenho recebido almas muito precocemente nos últimos tempos e o sinal de alerta pisca na minha mente. É como se estivessem fugindo de algo. Bom, essa alma vai ter que segurar as pontas por um pouco mais de tempo.

Deixo a casa e me encaminho direto ao Palácio, sem paradas e sem distrações dessa vez. Vasculho por entre os infinitos cômodos e corredores e sou puxado para a grande cozinha da construção. O que eu estou fazendo na cozinha? Será que é porque esse corpo mortal que estou usando para acomodar minha essência divina foi interrompido no meio de uma refeição? As vezes essas necessidades primitivas carnais são irritantes!

Então vejo um homem sentado terminando sua refeição, a postura firme, mas um sorriso descontraído nos lábios enquanto conversa com os ajudantes de cozinha que se encarregam das louças. Willahelm, o guarda. Foi por isso que vim parar aqui, as almas puras são sempre as mais fáceis de localizar. Aqueles que não se escondem atrás da escuridão da maldade e exalam vida têm um magnetismo forte e me atraem para si. Isso explica porque vim parar aqui e não com o Ministro — homenzinho insuportável. Sinceramente não entendo essas pessoas que escolhem desperdiçar suas vidas sendo tão desagradáveis!

— Vossa Alteza — ouço um dos ajudantes dizer, nervosamente, quando Layla adentra a cozinha. Willahelm imediatamente levanta da cadeira, derrubando-a no processo. Pobre homem.

— Boa tarde — ela responde com um sorriso nos lábios. Como sempre. — Será que vocês ainda têm um pedaço daquele bolo de laranja maravilhoso que serviram no café da manhã? — ela pergunta, um brilho travesso em seu olhar como uma criança fazendo alguma coisa errada. Rapidamente o ajudante se encarrega de cortar uma fatia generosa do bolo e servi-la em um pratinho de porcelana.

Layla então se encaminha para a mesa onde o guarda estava sentado e o cumprimenta. Com um sorriso no rosto, ele senta de volta em seu lugar, depois de resgatar a cadeira que havia derrubado no chão.

— Aceita um pedaço? — ela oferece, o garfo levantado na metade do caminho. Ele recusa, envergonhado. Tão bonitinho. — Posso te perguntar uma coisa? — ela questiona e ele acena positivamente com a cabeça. — Você está aqui e ali todo o tempo, conhece todos os segredos desse lugar... O que pode me dizer sobre o Príncipe Hadaward?

Willahelm hesita, e posso ver que ele não tem ideia do que dizer. Talvez por não querer dizer nada desrespeitoso. Talvez simplesmente porque fica sem palavras toda vez que ela está por perto.

— Príncipe Hadaward é um homem inteligente e forte, Vossa Alteza — ele responde. Esperto, não vai se comprometer e falar mal daquele ridículo. Layla levanta uma sobrancelha de forma inquisitiva.

— Você está mentindo — diz, um sorriso no canto dos lábios. Com um suspiro, ela pousa o garfo no prato e fecha a cara. — O Ministro acha que devo me casar com ele. Pelo bem do Reino, ele diz. Precisamos do ouro. Eu não quero. Mas então me pergunto o que Kya faria e... Nós dois sabemos que ela faria qualquer coisa pelo Reino. Talvez eu devesse ser um pouco mais como ela... — conclui, dando os ombros e esmigalhando o pobre pedaço de bolo no prato.

Quando Willahelm abre a boca para responder, ouço uma batida forte na porta e um facho de luz invade o quarto. Perco a concentração e sou trazido de volta para onde comecei o dia.

— O que quer dizer com ela está sumida? Você está louco?! O único trabalho que você tem é manter Kya sob supervisão e não deixar que nada aconteça a ela e você a perde? — Arath entra no cômodo aos berros, esbarrando em tudo que vê pela frente. Irritado, reviro os olhos e bufo.

— Oh, pode parar de me olhar com essa cara feia e me encarar como se esses seus olhos violetas fossem fazer alguma coisa comigo! — ele debocha, levantando as mãos para cima dramaticamente.

— Eu estava tentando encontrá-la quando você entrou feito uma manada de hipopótamos fugindo de um leão faminto! — berro de volta, como uma criança birrenta, e ele me olha com uma careta, abrindo e fechando os dedos da mão esquerda e moldando "blá-blá-blá" com seus lábios sem emitir nenhum som. Quando termina, suspira fundo e passa as mãos nervosamente pelo cabelo.

— Ela tem que estar bem — profere, seriedade fluindo de seus olhos pela primeira vem em séculos, pelo que eu posso me lembrar.

— Ela está — respondo, apesar de não poder ter certeza.

Ela tem que estar.





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